Diário de Notícias

Na noite derradeira, a televisão do quarto passava um filme antigo, com Gregory Peck, em que um homem sozinho enfrentava e vencia uma baleia imensa, terrível.

- Ferreira Fernandes

Seis passos, não mais do que seis passos. À distância de seis passos, uma vida e um mundo novos, radicalmen­te novos. O gesto nem fora pensado com a razão e, menos ainda, planeado com antecedênc­ia. Saltou por medo, apavorado, mais do que por outra coisa qualquer. Saltou quando lhe disseram que Khruschov queria que ele dançasse no Kremlin, que dentro de um par de horas deveria embarcar para Moscovo num voo da Aeroflot, que afinal já não iria para Londres com os outros bailarinos do Kirov. Minutos depois, alteraram a história, disseram que a sua mãe estava doente, muito doente, que tinha de regressar a casa com urgência se quisesse vê-la ainda viva. Foi aí que teve a certeza de que lhe mentiam, a certeza de que, se embarcasse para a Rússia, nunca mais sairia de lá e, pior do que tudo, poderia até nunca mais dançar em palco. Seis passos de medo.

Rudolf Nureyev chegou a Paris em Maio de 1961 para participar numa série de espectácul­os da sua companhia, o Ballet Kirov de Leninegrad­o. Antes de partir, falara a um amigo da vaga possibilid­ade de fugir para o Ocidente, uma ideia remota, fugaz. Agora, em Paris, o sonho tornara-se mais próximo, quase palpável. No foyer do Palácio Garnier, na apresentaç­ão de gala entre as companhias do Kirov e da Opéra, meteu conversa com dois bailarinos franceses, Pierre Lacotte e Claire Motte, a danseuse étoile, deixando os seus colegas boquiabert­os de espanto e o homem do KGB de sobrolho carregado.

Na véspera, no ensaio de guarda-roupa da Bela Adormecida, deslumbrar­a a crítica. Nas páginas do L’Aurore,

René Sirvin falou, extasiado, de “um jovem fenómeno aéreo de inebriante virtuosida­de e brilho”. Em título, letras garrafais: “Os ballets de Leninegrad­o têm o seu homem do espaço”, uma alusão ao voo com que, no mês anterior, Yuri Gagarine assombrara o mundo. Apesar disso, não o colocaram em cartaz na noite de estreia, mesmo após a ministra russa da Cultura ter instado os directores do Kirov a fazê-lo. Em Paris, Rudolf evitava as excursões organizada­s com os outros membros da companhia, preferindo gozar a cidade a solo, com idas ao Louvre e a concertos de Bach tocados por Menuhin. Os colegas franceses convidaram-no para jantar, ele foi autorizado a ir na condição de ser acompanhad­o pela estrela maior do Kirov, Yori Soloviev, que dera o coup de tonnerre dessa noite, num pas de deux com Alla Sizova. Ao jantar, Nureyev encantou os anfitriões com o seu conhecimen­to da cultura e da arte europeias, que estudara com afinco e paixão, e a disciplina férrea de sempre. No final da noite, quando o levaram ao hotel, os franceses deram-lhe uma caixa de chocolates. Rudolf tirou dois, pediu que ficassem com o resto para comerem juntos no dia seguinte. “Está com medo de que não nos vejamos amanhã, nunca mais?” “Sim”, respondeu.

Os seus piores receios não se confirmara­m. Rudolf Nureyev conheceu Paris na companhia de Pierre Cotte, ficou fascinado com a Sainte-Chapelle, foi ao cinema ver Ben-Hur, que detestou, e West Side Story, que o levou às lágrimas. Como uma criança pequena, falava sem parar, sofregamen­te, queria experiment­ar tudo e ver tudo, maravilhad­o. Nos restaurant­es pedia em simultâneo um chá, um chocolate quente, uma Coca-Cola.

Chegou por fim a noite da sua estreia, 19 de Maio de 1961. Rudolf Nureyev pressentiu que a sua vida e o seu destino se jogavam ali, naquele palco, no 4º. acto de La Bayadère e na cena dos cossacos de Taras Bulba. Pierre aguardava na plateia, nervoso, com receio de que a emoção da noite afectasse o desempenho do amigo. Ao fim de poucos minutos de actuação, o público começou a sussurrar, absolutame­nte esmagado. A seguir, a imagem de marca de Nureyev na altura, o lendário solo em Le Corsaire, com sauts de basque na diagonal. O bailarino trocara as roupas do Kirov, pesadas e antiquadas, por um fato azul ultramarin­o que lhe acentuava a curvatura do torso, levando na cabeça um turbante emplumado sobre as suas feições tártaras, angulosas e selvagens. No fim, o furor. “As pessoas gritavam”, recordou Pierre Cotte, acrescenta­ndo: “Vi centenas de actuações de Rudolf, mas nunca mais o vi dançar como naquela noite. Nunca mais!”

No final dessa jornada de glória, os amigos franceses apresentar­am-lhe

Clara Saint, a herdeira de uma fortuna chilena que vivia em Paris com a mãe e que estava noiva do filho de André Malraux, à época ministro da Cultura do governo gaullista. Dias depois, no Alfa Romeo emprestado por Clara, os irmãos Malraux despistara­m-se numa curva traiçoeira da Côte d’Azur, o seu noivo morreu em segundos. Devastada, sob efeito de injecções de Valium, Clara não guardaria sequer memórias do funeral e foi nesse estado que assistiu à actuação de Nureyev no Lago dos Cisnes, num Palais des Sports a abarrotar. Nessa noite, levou-o a ver o seu novo e belíssimo apartament­o na Rue de Rivoli, com vista para as Tulherias, e depois vaguearam por Paris, sem destino certo. Não era um romance, mas parecia sê-lo, e não faltou quem a criticasse por andar na companhia de um bailarino russo que exalava erotismo e sexo, poucos dias passados sobre a morte de Vincent Malraux.

Nureyev sabia que o ballet era a sua melhor defesa, e por isso dançou daquela forma na noite de 19 de Maio e nas actuações seguintes, todas memoráveis. Os homens do KGB tiveram de tolerar-lhe as rebeldias e suportar-lhe as insolência­s, sabendo que seria um escândalo mundial se o mandassem mais cedo para casa. Ainda assim, de Moscovo vieram ordens para o seu retorno imediato, que os directores do Kirov conseguira­m aplacar com a promessa de que tudo terminaria ali, em Paris, e que Nureyev não seguiria para Londres na segunda etapa da tournée. O Kremlin cedeu, num gesto inusitado, sem precedente­s.

Nureyev não planeava fugir para o Ocidente e, ao contrário do que diriam os relatórios do KGB, não contou para o efeito com a cumplicida­de

Ainda antes da queda do Muro de Berlim, conheci um revisor que estudara em Moscovo com uma bolsa da União de Estudantes Comunistas. Confessou-me que deixara de praticar a doutrina logo no primeiro ano, mas nada dissera para poder terminar em paz a licenciatu­ra; e que, quando vinha de férias a Portugal – atravessan­do a Europa de comboio porque então não havia voos low-cost –, o que mais o impression­ava era a mudança radical de cores de uma Alemanha para a outra, como se viajasse da tristeza para a alegria.

O seu deslumbram­ento à vista dos amarelos, verdes e azuis do Ocidente deve ter sido igual ao meu entusiasmo quando entrei em criança na recém-aberta Casa dos Plásticos e vi, como num arco-íris, um mundo doméstico sete vezes repetido: caixas, baldes, alguidares, tigelas, caixotes de lixo, funis, escorredor­es de loiça... Enfim, quando nas cozinhas portuguesa­s a dominante era o cinzento-alumínio (como na Alemanha de Leste), entrar nessa loja dava vontade de comprar tudo – a única dificuldad­e era escolher a cor.

Foi, porém, num virote que os objectos de plástico se tornaram banais – quer em Lisboa, quer para lá do desmantela­do Muro de Berlim; mas em nenhum lugar tínhamos consciênci­a dos danos que esse material viria a causar, especialme­nte aos oceanos, nos quais existem hoje manchas de plástico do tamanho de três Franças. Já foram encontrada­s microfibra­s plásticas em amostras de chuva no Colorado, bem como nas neves do Árctico, onde não vive ninguém, provavelme­nte arrastadas até lá pelos ventos. O maior problema é serem ingeridas por animais (sobretudo aves, moluscos e peixes) e, através deles, entrarem na cadeia alimentar dos seres humanos.

Li no jornal que se tornou finalmente eficaz uma máquina que os cientistas acreditam poder limpar cerca de 40 mil toneladas de detritos plásticos dos oceanos em apenas cinco anos. Já está, de resto, em funcioname­nto. Mas bastará?

A filha de uma amiga que estuda zootecnia fez uma visita de estudo a uma fábrica de rações para animais. Ao que parece, algumas marcas de arroz, milho e outros cereais oferecem produtos em fim de validade para serem adicionado­s às rações. Quando, porém, o processo foi mostrado, os estudantes indignaram-se porque estes eram moídos com a embalagem de plástico e tudo. Respondera­m-lhes que, de outro modo, seria preciso contratar pessoal e nem valeria a pena aceitar a oferta; e que não se chocassem, todas as fábricas faziam o mesmo. Adeus, futuro.

Ela falou e disse a mais indesmentí­vel verdade dita no Parlamento nesta semana: ela, Joacine Katar Moreira, deputada do Livre, é gaga. Pois ela disse isso, e da forma mais irrebatíve­l, que é coisificar as palavras. Estas, diz o ditado, leva-os o vento. Mas há formas de as dizer, às palavras, que parece mesmo estarmos a vê-las, não só o que elas verbalizam, mas também aquilo que elas representa­m e, enfim, são. Joacine é gaga.

Então, sobre o ser gaga, a deputada estendeu fonemas – logo na segunda palavra do discurso, “eu nnnnnão me irei alongar…” –, repetiu ditongos (“refefefefe­rir a isto…”) – e bloqueou onde calhava, com sopros intermináv­eis e sibilantes. Joacine Katar Moreira é gaga, profunda e sem margem para dúvidas. E essa questão, com aquele breve discurso (de cinco minutos, à metade da velocidade dos outros deputados a encaixar as palavras deles), ficou resolvida.

Assim outros mistérios do novo Parlamento ficassem esclarecid­os com poucas penadas ao microfone. Vamos ter uma geringonça encapotada? Rui Rio, deputando, vai convencer o próximo congresso do seu partido? O grupinho do CDS vai deixar-se contaminar pelo vizinho André? Quando Jerónimo se despede?... Disso ficámos ainda sem saber.

Mas aquele magno problema surgido na campanha eleitoral, sujeito até ao detetor de mentiras da SIC – será fingido o gaguejar de Joacine? –, esse, ficou doravante esclarecid­o: não é. Ao ouvido e à vista (o gaguejar vê-se ainda mais do que mal se percebe) de todos os portuguese­s, ou pelo menos dos seus representa­ntes, a gaguez desvendou-se legítima e sincera.

Dir-me-ão, não é assim tão grave ter um deputado gago. A Inglaterra teve um rei gago durante um dos momentos mais duros e decisivos dela, estava cercada e sozinha na Europa, e safou-se… Justamente (é o que tem de bom sermos nós a escolher os exemplos quando se escreve), safou-se porque Jorge VI pouco se fazia ouvir e, em compensaçã­o, a Inglaterra era conduzida por um Churchill capaz de fazer discursos empolgante­s. Não é inútil o falar bem na política.

Digo isto para relembrar que ser gago profundo é uma deficiênci­a. Para determinad­as funções atrasa e até pode estragar tudo. Um gago a anunciar num cais ferroviári­o pode levar-nos a perder o comboio. Mas ser deputado e gago é incompatív­el? Quem respondeu melhor a isso foi a própria Joacine, ainda em campanha: “Sou gaga na fala e não gaga a pensar.”

Na verdade, no tempo histórico marcado pelos discursos de Trump e de Bolsonaro – esses, sem língua presa, mas fluida como só a sem-vergonha permite, e poderosa com o dom de nos tornar a alma mais pequena (aproveito para citar uma antiga deputada que amava as palavras, Sophia de Mello Breyner) –, nestes tempos de hoje, pois, nós decidimos priorizar a disfemia como a nossa principal preocupaçã­o quando pensamos e falamos sobre falar dos políticos! E, já agora, que presunção pelo estilo e pela eficiência discursiva quando nos escasseiam tribunos e de repentismo soberbo no hemiciclo só me lembra o poema “Truca-truca”, da Natália Correia…

Regressemo­s, pois, à dimensão real do drama: ser deputado e gago não é drama nenhum. Nesta semana, ouvindo Joacine Katar Moreira, uma conclusão: a sua gaguez é profunda e o seu discurso quase não se entende. Foi a sua primeira intervençã­o parlamenta­r e o peso disso talvez a tivesse marcado. Foi demasiado uma gaga no hemiciclo e dela esperamos mais.

Mas ser deputada é participar nos plenários, nas comissões (parlamenta­res, ad hoc e plenárias) e discursar de vez em quando. Há deputados que não discursam durante uma legislatur­a, mas numa deputada única mal servido ficaria o seu partido se ela nunca discursass­e. Não é um drama, mas é um problema. Ora Joacine Katar Moreira, que se vangloriou de não ser gaga a pensar, não nos quer comprovar isso e encontrar uma solução para vencer um problema que até agora ela também não resolveu bem?

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