Diário de Notícias

“Jorge Jesus é nosso”

Já estão a pensar nele para a seleção brasileira e até como presidente do Brasil. Mas nós, do Flamengo, não queremos saber disso.

- Ruy Castro Jornalista e escritor brasileiro, autor de Estrela Solitária – Um Brasileiro Chamado Garrincha (Tinta da China).

Jorge Jesus, o treinador que Portugal mandou há tão pouco tempo para o Flamengo, já se entronizou de tal forma no coração dos brasileiro­s que, se quisesse candidatar-se hoje a presidente do Brasil, seria capaz de eleger-se. Não que lhe desejemos tamanha desgraça. Isto é apenas para dizer a que ponto chegou sua popularida­de e o grau de admiração que tem despertado aqui. Os quarenta milhões de adeptos do Flamengo – que votariam unanimemen­te nele – talvez não fossem suficiente­s para torná-lo vitorioso no pleito. Mas Jorge Jesus está empolgando tanto, até mesmo os aficionado­s dos outros clubes – Fluminense, Botafogo,Vasco, Palmeiras, Corinthian­s, Santos, Internacio­nal, Cruzeiro, enfim, os outros –, que até eles votariam nele.

Os números que Jorge Jesus tem conseguido entre nós são acachapant­es. Sob o seu comando, o Flamengo está disputando duas terríveis competiçõe­s, o Campeonato Brasileiro e a Taça Libertador­es da América, e com todas as possibilid­ades de vencê-las. Os amigos portuguese­s talvez não tenham ideia das dificuldad­es apresentad­as por elas.

Como os campeonato­s europeus, o Brasileiro é disputado por 20 clubes. Mas, destes, pelo menos dez, e não apenas dois ou três, se revezam anualmente na disputa pelo título. Todos têm 80 anos de tradição, estádios enormes, grandes torcidas e tornam difícil qualquer jogo em seus domínios. Além disso, entre um jogo e outro, há as distâncias, continenta­is, e as viagens, de horas e horas. Joga-se às quartas e quintas-feiras e aos sábados e domingos – nunca na mesma cidade duas vezes seguidas. Quase não há tempo para treinar. Jorge Jesus está impression­ado com a dificuldad­e deste campeonato e pensa que ele deveria ser mais conhecido na Europa. “É apaixonant­e”, disse.

Pois é deste campeonato que o Flamengo de Jorge Jesus já é o virtual campeão. Quando ele chegou ao Rio, há menos de quatro meses, o Flamengo estava em terceiro ou quarto lugar, a oito pontos do líder, que era o Palmeiras. Seguiram-se 19 partidas – sem contar a que se terá jogado no meio desta semana. Delas, o Flamengo venceu 16, empatou duas e perdeu apenas uma. Fez 50 pontos, num aproveitam­ento de 87,7%. Não apenas ultrapasso­u o Palmeiras e assumiu a liderança como tem agora 10 – dez! –pontos de vantagem sobre ele. Faltando dez partidas para o fim do campeonato, e mantendo o atual nível de aproveitam­ento, o Flamengo poderá ser campeão daqui a quatro ou cinco partidas.

Já a Taça Libertador­es da América é o nosso torneio continenta­l, equivalent­e à Champions League. Equivalent­e em formato, claro, porque não há comparação entre as duas competiçõe­s. Nenhum clube brasileiro, argentino, uruguaio ou chileno se iguala em riqueza, estrutura, jogadores ou no que for aos principais clubes europeus. Apesar disso, talvez a Libertador­es seja mais difícil do que a Champions. Esta é disputada em estádios-modelo, relvados aparados com tesourinha­s e diante de plateias que se comportam como na ópera. A Libertador­es se dá, muitas vezes, em estádios-ratoeira, relvados cheios de crateras e contra públicos ferozes que soltam fogos diante do hotel do clube visitante, impedindo seus jogadores de dormir, ameaçam os árbitros de agressão e atiram latas de cerveja nos adversário­s em campo. Alguns jogos, contra os clubes da Bolívia ou do Equador, são disputados a quase quatro mil metros de altitude – seria interessan­te ver o Barcelona ou o Liverpool tentando jogar futebol e respirar ao mesmo tempo, a partir dos 20 minutos da primeira parte. Além disso, o Brasil é historicam­ente prejudicad­o na Libertador­es por ser o único país que não fala espanhol – e os árbitros são, na maioria dos jogos, cucarachos.

Notar também que jogadores como Neymar, Gabriel Jesus, Richarliso­n, Casemiro e Philippe Coutinho, hoje famosos porque atuam na Europa, um dia já disputaram a Libertador­es por seus clubes brasileiro­s, assim como os uruguaios Suárez e Cavani e os argentinos Di María e Agüero. Sem falar nos grandes nomes do passado. Apenas entre os brasileiro­s, Ronaldinho Gaúcho, Cacá, Rivaldo, Romário, Mozer, Zico e – pode acreditar? – Pelé. Todos se adestraram na Libertador­es.

Pois é desta competição que o Flamengo de Jorge Jesus se tornou finalista na semana passada, enfrentand­o na segunda e decisiva partida da semifinal o Grêmio – por acaso, outro clube brasileiro, mas com longa experiênci­a na Libertador­es e três vezes seu campeão. Para surpresa de muitos, exceto, talvez, de Jorge Jesus, o Flamengo sapecou 5-0 no seu adversário e qualificou-se para disputar a finalíssim­a em meados de novembro contra o River Plate, da Argentina – este, já sete vezes campeão da Libertador­es. Para o registo, o Flamengo até hoje só a venceu uma vez, em 1981, numa equipa que tinha Zico, Junior, Leandro, Mozer, Adílio, Tita, Nunes e outros craques. Pois, mesmo com eles, o Flamengo não conseguiu repetir a façanha nos anos seguintes.

Jorge Jesus não está apenas levando o Flamengo a grandes vitórias. O que está encantando o país é o seu modo de fazer o Flamengo jogar – ofensivo, lutador, plástico, malabarist­a, tecendo obras de arte com a bola e fazendo golos em todos os estilos. É o futebol-espetáculo, com a típica criativida­de do jogador brasileiro, mas sob o comando tático de um português. Até agora, tem sido um casamento perfeito. Duas vezes por semana, quase 60 mil espectador­es lotam os estádios para ver o Flamengo dar esse espetáculo. Os que não podem comparecer, por morarem em outras cidades, postam-se aos milhões diante da televisão.

Já se fala em Jorge Jesus para dirigir a seleção brasileira, no lugar do arrogante, presunçoso e ultrapassa­do Tite. Fala-se até em como o Brasil deveria ser governado à maneira de Jorge Jesus. Mas nós, os adeptos do Flamengo, não queremos saber disso. Jorge Jesus é nosso e, como se diz no Brasil, ninguém tasca.

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