30 anos da queda do Muro de Berlim
“Derrubámos o muro, mas a extrema-direita está a levantar outro”
Holger Schlutz tem 50 anos e garante não ser homem de choro fácil, em toda a sua vida adulta só se desmanchou duas vezes. “A primeira foi há 30 anos, quando o muro veio abaixo. A outra foi agora, no início de outubro”, diz ao jornal Contacto. Mödlareuth, aldeia de 50 habitantes no leste do país, esteve até 1989 dividida a meio – 30 pessoas viviam na comunista República Democrática Alemã, 20 na capitalista República Federal da Alemanha. No meio, havia uma parede branca com três metros de altura. Como se a aldeia fosse uma pequeníssima Berlim.
Mesmo sem muro, há três décadas, a aldeia permaneceu dividida. Hoje, metade pertence à comuna de Tolsen, na região ocidental da Baviera, outra metade ao município de Gefell, na oriental Turíngia. Os habitantes da povoação têm códigos postais, indicativos telefónicos e inscrevem os filhos em escolas diferentes. Os que vivem do lado da Baviera moram num dos mais dinâmicos distritos do país rural. Os que estão na Turíngia num dos mais deprimidos territórios alemães.
Uma das poucas coisas que são comuns aos dois lados é o pão que consomem, fabricado diariamente por Holger. A padaria Schlutz tem 250 anos de história e ele representa a nona geração da família a assumir o comando do forno. Mas não foi sempre assim: quando começou a trabalhar, ainda havia duas Alemanhas e Holger só distribuía pão na Mödlareuth ocidental, no seu lado da Cortina de Ferro.
Na noite de 8 para 9 de novembro de 1989, um amigo telefonou-lhe de Berlim e anunciou o que toda a gente desconfiava: o muro ia cair em breve. “Por instinto dupliquei a produção. Na noite seguinte, pela primeira vez na minha vida, pude dar pão a quem estava do outro lado.”
Foi uma explosão de alegria. Enquanto o mundo inteiro olhava para a capital, aqui a festa fez-se sem holofotes. Irmãos separados há 40 anos abraçavam-se, de todo o lado apareciam garrafas de espumante, Holger oferecia roscas e pretzels e “as pessoas choravam e dançavam de alegria, toda a gente, mesmo os guardas da fronteira”. Não havia quem não tivesse alguém do outro lado. “A conquista da liberdade é o maior espetáculo do mundo”, emociona-se o padeiro.
Uma parte do muro foi preservada, tal como as instalações militares e uma porção da vedação. Constituem hoje o Museu Alemão-Alemão (sic) de Mödlareuth, que é visitado anualmente por 70 mil pessoas. E todos os anos, a 3 de outubro, população e autoridades locais juntam-se nas margens do ribeiro de Tannbach e atravessam-no com um salto para celebrarem o Dia da Reunificação Alemã. “Ninguém quer esquecer o que aconteceu, para que não volte a repetir-se.”
Só que, neste ano, ao mesmo tempo que decorriam as cerimónias oficiais, o partido de extrema-direita AfD – Alternativa para a Alemanha convocou uma manifestação no centro de Mödlareuth. “Eram umas 200 a 300 pessoas, vindas sobretudo do leste, que não tinham vindo celebrar a reunificação, antes protestavam contra os seus falhanços.” Todos aqui concordam que a Alemanha corre a duas velocidades e toda a gente sabe que a direita ultranacionalista está a crescer nos terrenos que antes eram de influência soviética. O que Holger nunca pensava voltar a ver era isto: um dispositivo policial irromper pela povoação, grades de ferro a conter pessoas, ódio de um lado do ribeiro contra o outro. Foi então que chorou. Pela segunda vez, na vida de que se lembra.
O muro dos extremos
Na campanha eleitoral, a extrema-direita já esperava um resultado histórico, distanciando-se dos outros partidos. “Somos uma alternativa para o estado atual das coisas”, diz Uwe Thrum, o cabeça-de-lista neste distrito. “Por que raio haveríamos de nos misturar com os outros partidos?”
O discurso de Thrum e a campanha da extrema-direita apostou, nas suas próprias palavras, em três vetores essenciais: “A rejeição dos partidos tradicionais por não terem conseguido unificar economicamente a Alemanha, a proteção das populações locais contra a chegada de estrangeiros e a recuperação dos valores da família tradicional.” Quando as coisas começam a tornar-se pessoais ele puxa dos galões: “Não sou político profissional, sou mestre carpinteiro. Só me meti nisto porque já não suportava ver o meu país ser tomado por um bando de corruptos.”
A verdade é que é aqui que a AfD mais cresce. No distrito de Saale-Orla, a que pertence a metade leste de Mödlareuth, a extrema-direita venceu as últimas europeias, com 27,1 por cento dos votos. E agora venceu as regionais no distrito. Na corrida ao parlamento regional da Turíngia, aliás, a AfD sobe de 10,6 para 23,6%, passando de quarta para segunda força política. O Die Linke (A Esquerda) ficou em primeiro com 28% dos votos, mas perdeu vários distritos – e nomeadamente o de Saale-Orla.
Klaus Möller, cabeça-de-lista pelo Die Linke no mesmo distrito, admite que está assustado. “O líder da AfD na Turíngia não é nada menos que um fascista, a sua eleição seria o maior retrocesso civilizacional depois de Hitler.” Bjorn Hocke está conotado com a direita mais radical no partido – e sobre ele recaem constantes suspeitas de xenofobia e antissemitismo.
Mas na AfD também está Lucas Harnut, que ao peito usa uma estrela de David. “O meu avô era judeu de Köningsberg [a atual Kaliningrado russa], passou toda a II Guerra Mundial a fugir de gueto em gueto mas conseguiu nunca ser deportado para um campo de concentração.” O que diz este homem sobre a subida da extrema-direita na sua região? “É gente séria, é uma coisa boa. Para mim, os melhores políticos estão na AfD da Turíngia e em Israel, no Likud do Benjamin Netanyahu.” Não o incomoda a associação da AfD aos neonazis e ao antissemitismo? “Eles são contra qualquer forma de socialismo, como eu sou. Os nazis eram nacional-socialistas. Então eles também são contra os nazis, por mais que os meios de comunicação social digam o contrário.”
Peter Hagen, repórter no principal jornal desta região, o Ostthüringer Zeitung, acredita que a AfD continuará a crescer até formar governo. “Só aí se inverterá a tendência, porque eles captam um eleitorado revoltado com críticas duras, mas nunca foram testados no poder, nunca tiveram de resolver problemas.” Além dessa parte da culpa, Hagen critica os partidos por continuarem a não saber falar com as pessoas. “O leste da Alemanha tem problemas gravíssimos que são ignorados. As pessoas que vivem aqui não votam em extremistas por acreditarem no extremismo. Fazem-no porque precisam
Os habitantes de Mödlareuth têm códigos postais, indicativos telefónicos e inscrevem os filhos em escolas diferentes. Os que vivem no lado da Baviera moram num dos mais dinâmicos distritos do país rural, os que estão na Turíngia, num dos mais deprimidos territórios alemães.
de restaurar a sua própria dignidade. Têm o orgulho ferido.”
O município de Topen, que alberga a parte ocidental de Mödlareuth, cresceu exemplarmente depois da queda do muro. “Até aí nós éramos o fim da estrada, ninguém passava por cá a menos que fizesse deste o seu destino”, diz Klaus Grunzner, burgomestre da aldeia pela CSU (o parente bávaro da CDU de Angela Merkel). George Bush pai foi um dos poucos visitantes que ali chegaram – em 1983, quando era vice-presidente de Ronald Reagan, visitou Mödlareuth. Mas esta paisagem era dominada pela atividade agrícola e militar, as tropas norte-americanas vigiavam a fronteira e raras vezes os alemães se aproximavam.
Nos últimos 30 anos, tudo mudou. Os campos em redor de Topen estão hoje tomados por grandes torres eólicas – o grupo americano General Electric instalou aqui três explorações de energia, ou quintas de vento. Mas a coqueluche industrial de Topen é a Dennree, a maior produtora de alimentação biológica da Europa. A aldeia acolhe a sede da empresa, que dá emprego a 1100 trabalhadores. Topen tem 900 habitantes.
Quando se passa para o outro lado da fronteira, a história é absolutamente a oposta. Nos anos em que pertenceu à RDA, Gefell, a comuna a que pertence a parte leste de Mödlareuth, era um dos pontos fundamentais de produção têxtil para o bloco soviético. “As fábricas de tecidos davam emprego a centenas de pessoas, lembro-me de como Gefell fervilhava quando eu era criança”, diz Marcel Zapf, burgomestre do município na antiga RDA, que tem 36 anos e por isso tinha 6 quando o muro ruiu. “Mas nos anos 1990 fechou tudo, as pessoas começaram a partir para o oeste à procura de emprego e muitos nunca mais voltaram.”
A empresa mais conhecida de Gefell chama-se Microtech, é uma fábrica especializada em microfones de alta qualidade que foi nacionalizada durante os anos de socialismo e depois foi recuperada pelos filhos dos antigos gerentes. Graças à vizinha Topen, a taxa de desemprego é baixa – 4,5%, com uma boa parte da população a deslocar-se diariamente para a Baviera. Segundo um estudo do Instituto de Ciências Económicas e Sociais alemão, publicado no início de outubro, os salários são 16,9% mais altos na antiga RFA, mesmo no caso em que os trabalhadores têm o mesmo género, ocupação e experiência.
Se as viagens pelas estradas de Topen, no ocidente, correm suaves, em Gefell, no leste, somam-se solavancos. Se a primeira imagem com que alguém se depara à entrada da aldeia bávara é um parque industrial movimentado, na povoação da Turíngia é um conjunto de Plattenbauten abandonados. É esse o nome dado aos prédios de cimento, prefabricados e inspirados na arquitetura soviética, que serviram como residências para militares e empregados têxteis. Hoje estão vazios, mas marcados com autocolantes e graffiti agressivos, a lembrar que aquela é terra alemã e será defendida, se necessário, à custa de armas.
“Em 30 anos desenvolvemos muita coisa, claro que sim”, diz o autarca de Gefell, “mas temos tanto em que ficámos para trás...”
Marcel Zapf foi eleito por uma coligação local de independentes, mas sabe que a extrema-direita está a crescer na sua terra – e que a semente do discurso radical está precisamente nas diferenças entre os dois lados de uma fronteira que já não existe... mas existe. Dá um exemplo: o orçamento autárquico. Gefell tem 2500 habitantes, conta com 3,5 milhões de euros por ano. Topen recebe o mesmo valor para 900 habitantes. “E aquilo que nós precisamos urgentemente é de construir infraestruturas básicas, para que chegue a indústria, o turismo e o desenvolvimento.” Entre uma aldeia e outra contam-se seis quilómetros. E são suficientes para ver duas Alemanhas inteiras.
Numa coisa Zapf e Krugner, os burgomestres das duas comunas em que está inserida Mödlareuth, concordam: há um novo medo a crescer na região. “A extrema-direita assusta, está a criar um muro invisível que não podemos tolerar”, diz o autarca de Topen. O de Gefell anui: “Aquilo que sinto é que as pessoas estão a perder a vergonha de falar de coisas que eram socialmente inaceitáveis.” A intolerância cresce, explicam. Mas a intolerância para com os intolerantes também.
Em Mödlareuth, todos os posters da AfD foram vandalizados. “Não pode haver diálogo com esta gente”, concordam os dois burgomestres, que gostam de mostrar que estão unidos. “Somos ambos conservadores, mas mais facilmente trabalharemos com o Die Linke, que está no oposto das nossas convicções, do que com a extrema-direita”, diz Marcel.
Quando um dia aparece um partido a gritar que as políticas falharam, que os políticos ignoraram as populações, que se oferecem mais vantagens aos forasteiros do que aos que sempre ali estiveram, os vizinhos de Dick Manfred sentem que encontraram finalmente alguém que os ouve e defende. “Mesmo que façam promessas irrealistas, mesmo que argumentem com críticas injustas, as pessoas sentem que agora têm uma voz.”
Um muro é um muro – e a historiadora Susan Burger, que trabalha no Museu Alemão-Alemão, não acredita que aquele que se levantou em Mödlareuth seja igual à parede de intolerância que a extrema-direita ergue agora. “Antes havia uma cortina de ferro entre dois modelos sociais opostos. Hoje, são sobretudo os derrotados da unificação, aqueles que perderam de alguma forma posição com a queda do muro, que defendem a AfD.”
Quando os visitantes chegam ao museu a primeira coisa a que assistem é a um filme de 18 minutos que conta a história da divisão de Mödlareuth. A maioria sai do auditório com lágrimas nos olhos, mas às vezes Susan ouve alguém dizer que o muro nunca devia ter caído e arrepia-se. “Fico francamente triste, porque sinto que as pessoas esquecem, ou preferem ignorar, o que significa viver com medo. Eu posso ter apenas 34 anos, mas tudo o que me lembro da minha infância era desse receio que se entranhava nas pessoas.”
Conta que o seu jardim-de-infância, explicamos a violência que aquele muro provocava.” Mödlareuth tem salas de exposições com vídeos e fotografias do tempo que ficou lá atrás. Mas o que realmente impressiona é o que foi deixado ao ar livre. Um tanque para controlar a população, duas torres de vigia para que ninguém ousasse aproximar-se da parede e depois aquele muro de cimento, com três metros de altura e pintado de branco, com um tubo de canalização no topo para dificultar a sua passagem.
“Ao início a vigilância não era assim tão apertada”, conta Susan. O ribeiro de Tannbach servia de separador, mas logo depois da fundação da República Democrática Alemã, em 1949, a fronteira passou a ser vigiada e em 1952 construíram-se cercas de madeira. O cimento chegou em 1966 e daí até 1989 as medidas de segurança foram reforçadas com campos de minas, vedações de ferro impossíveis de trepar, arame eletrificado num perímetro de 500 metros.
“O lado leste estava muito mais vigiado, até porque nos primeiros anos da separação centenas de milhares de pessoas tinham fugido para a RFA. Mas as consequências afetavam igualmente os dois lados.” Susan dá o exemplo de dois irmãos que viviam na aldeia, as casas não distavam mais de cem metros uma da outra, mas no meio havia o mais espesso dos sinais da Guerra Fria. “Todos os dias, ao final da tarde, eles subiam ao telhado e acenavam com um lenço. Se fosse branco, estava tudo bem. Se fosse de outra cor, o irmão que morava no ocidente tinha de ligar ao meio-dia do domingo seguinte para um posto telefónico a 50 quilómetros de Mödlareuth, que era onde o outro irmão podia atender a chamada. Se não fosse de carro, ia de carroça ou de bicicleta.”
Uma carta de um lado a outro da aldeia nunca demorava menos de seis semanas a chegar. Até final dos anos 1970, era frequente encontrar os moradores dos dois lados perto do muro ao fim da jorna de trabalho, gritavam para se cumprimentarem. Depois, até isso foi proibido – não se podia estabelecer qualquer comunicação. Os habitantes do lado leste viviam em quase total isolamento. Até os alemães da RDA precisavam de documentação especial para poderem chegar tão perto da fronteira.
É desses dias em que uma aldeia se viu cercada de arame farpado que ninguém se esquece. O caso de Mödlareuth é tão específico que inspirou uma série de televisão alemã com bastante sucesso, chamada Tannbach. Foi filmada na República Checa e as personagens são fictícias, mas os habitantes da aldeia têm orgulho que a sua história continue a ser recordada – e que o país se lembre de que houve outro muro que não em Berlim.
A grande parede que separou duas Alemanhas ruiu há 30 anos. Trouxe a liberdade, aquilo a que um padeiro da aldeia chama “o maior espetáculo do mundo”. Mas os habitantes ainda não têm a certeza se são todos alemães por igual. Como diz uma mulher de 72 anos chamada Karin Mergner, que passou aqui toda a sua vida, “a exclusão nunca trouxe nada de bom à história”. Um muro é um muro – e é sempre um pesadelo.