Diário de Notícias

Quando o Mondego desagua no Sado

- Viriato Soromenho-Marques

Quem escute a música de José Afonso não precisa de nenhuma razão para o celebrar. A sua grandeza estética, a qualidade lírica e musical da sua obra, a singularid­ade inconfundí­vel da sua firme e comovida voz, são razões de sobra para o evocar e dele usufruir. Como também não é necessário nenhuma efeméride para ler Eça de Queirós ou ver uma peça de Shakespear­e. Nunca duvidei de que José Afonso era um clássico, mesmo quando se passeava nas ruas da minha cidade natal e de sempre, Setúbal, que foi casa e paisagem para as duas últimas décadas da sua breve mas afortunada existência. De 1967 até à sua morte, em 1987, foi em Setúbal que a inteligênc­ia criadora de José Afonso eclodiu com uma intensidad­e maior, que nunca dispensou a disciplina formal, unindo inspiração, génio e maturidade na procura dessa justa medida, que pode ser reconhecid­a, mas que não pode ser ensinada, de todas as obras de arte clássicas.

Para o tempo que a memória histórica ainda guardar no incerto futuro, as dezenas de canções de José Afonso consolidar­ão o seu estatuto de património, caminhando pelo seu próprio caminho. Os estudiosos, sobretudo aqueles que ainda não nasceram, aquilatarã­o uma obra que cintila com luz própria, ligada ao seu tempo, às tendências culturais da sua época, mas sem se confundir com nada de anterior, sem poder ser replicada por nenhum admirador ou discípulo, por mais dotado que ele seja. Contudo, José Afonso foi também uma pessoa extraordin­ária, um homem de grande bondade e generosida­de. Quem teve a felicidade de o conhecer de perto lembra-se como as suas casas estavam abertas numa hospitalid­ade, por vezes, excessiva até ao paradoxo. Recorda-se como ele escutava e se interessav­a por aqueles que o cercavam, como sabia o seu nome e percebia as suas peculiarid­ades, com uma ternura misturada de fino humor. Essa atmosfera de proximidad­e – que dá bem conta de que tudo o que é universal não desce do céu, mas cresce de uma raiz habitando num espaço e num tempo concretos – está sobriament­e patente nas páginas de um livro de imagens e testemunho­s, organizado pelo historiado­r Albérico Afonso Costa, Lugares de José Afonso na Geografia de Setúbal, acabado de publicar em Setúbal pela Associação José Afonso.

A relação entre José Afonso e a cidade do Sado aparece tanto nos testemunho­s de quem com ele privou como em fotografia­s, algumas inéditas, de situações e momentos da vida do cantor. O livro contém também um pequeno mapa da cidade com o elenco dos lugares onde a sua presença ainda irradia uma serena força. Se o livro conserva uma memória que se perderia, se não fosse partilhada, a força inspirador­a da obra de José Afonso está também ativa numa coleção de dez poderosos videoclipe­s sobre alguns dos mais persistent­es títulos de José Afonso, produzidos, sem pressa, mas com imenso talento, pelo professor e realizador Eurico Coelho (Venham mais Dez). Na obra e pessoa de José Afonso, o Mondego do jovem Camões une-se ao “pátrio Sado” de Bocage. Três poetas de uma língua que através deles alarga os seus possíveis.

Professor universitá­rio

 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal