Diário de Notícias

Devemos dar mais ouvidos aos abraços de Marcelo

Catarina Carvalho A chamada de atenção é quase sempre certeira. O caso do bebé no lixo não é apenas de miséria individual, é uma história que conta o pior lado do mundo moderno. É uma fábula. Com moral e tudo.

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Podia ser uma fábula, contemporâ­nea, e não seria melhor. O Presidente Marcelo Rebelo de Sousa salta de um discurso no seu inglês perfeito, no palco mais famoso do país, a Web Summit, ao lado do empreended­or Paddy Cosgrave, e dá um pulo ao “debaixo da ponte” mais famoso no país, o viaduto atrás da discoteca Lux, em Santa Apolónia, dar um abraço ao Manuel, o sem-abrigo que salvou um bebé recém-nascido de ter morrido no lixo. Do futuro para o presente. Da enorme esperança para o total desespero. Da riqueza para a miséria.

Por detrás do sem-abrigo que salvou isto tudo de ser ainda pior, o homem que chamou o INEM e que levou com as câmaras de televisão e os abraços de Marcelo, há a história, por enquanto indizível, porque dela nada sabemos, de uma mulher que foi mãe e abandonou o seu filho acabado de nascer – logo nessa altura, quando é suposto as hormonas e os sentimento­s mais animais a levarem a protegê-lo. Que miséria será esta? Quem não sabe não julga, mas dá quase para sentir a dor, chama-se empatia, sentir a dor dos outros.

E por muita dela que tenha o nosso Presidente, nem tudo se cura com um abraço. Mesmo que um abraço na altura certa ajude. Porque a alma tem os seus desígnios e alguns deles não passam por ter uma barriga alimentada. A quem olha para Marcelo com algum cinismo, a ele e aos seus abraços, note que a chamada de atenção que faz com eles é quase sempre certeira. Como desta vez. Este não é apenas um caso de miséria individual, é uma história que conta o pior lado do mundo moderno. É uma fábula, como dizia. Com moral e tudo.

Porque o aumento dos sem-abrigo debaixo do viaduto de Santa Apolónia fala de um país mais desigual, como é Portugal e são todas as nações ricas contemporâ­neas. Os que ali moram são os que ficaram arredados dessa riqueza do mundo, cada vez mais mal distribuíd­a. São os que não agarraram o progresso, é verdade, mas têm mil e uma razões. Por não terem formação, por não terem cabeça, porque o destino lhes colocou uma dificuldad­e inultrapas­sável à frente, porque erraram de mais. É deste lugar impossível que fogem todos os que, na Web Summit, correm para ter mais um milhão de um investidor, para apresentar mais uma ideia. Correm para ser os que têm tudo, para não ser os que não têm nada.

Os que moram naquelas tendas debaixo do viaduto foram atirados borda fora dos carris da sensatez em que todos nos esforçamos por manter a nossa existência, e tantas vezes sabemos o que custa fazê-lo. Quase que apetece fazer frases eloquentes, como os deserdados das Web Summit. Da conferênci­a/feira de tecnologia e startups em que se discutem tecnologia­s de ponta e o futuro para os efeitos desse futuro já no presente?

Há também, no cenário desta história triste, uma cidade como Lisboa, cada vez mais centrífuga (conceito que Charles Landry, o estudioso das cidades, cunhou), atraindo a riqueza externa e ficando cada vez mais cara, e atirando para fora os que não conseguem nela viver. E haverá outra questão, ainda, a dos migrantes que chegam com esperança de uma vida melhor e são engolidos pelas circunstân­cias, sem ferramenta­s para lutar contra elas.

É de tudo isso que fala o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa. Devíamos escutar melhor os seus abraços. Ele próprio tem de dar-lhes mais uso.

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