E´ Razões de alarme
A possível subida do Vox a terceiro partido espanhol não é apenas o resultado direto da situação na Catalunha. Espelha uma tendência na direita em vários países ocidentais, onde a mentira, a agressividade e o nacionalismo ideológico marcham de mãos dadas
a fase política mais instável desde que a democracia foi instaurada em Espanha, facto que por si só deveria merecer atenção redobrada em Portugal, o país mais exposto aos riscos espanhóis. Comercialmente, não há parceiro mais estrutural. Financeiramente, a hegemonia da banca impôs-se. Culturalmente, os laços são ancestrais, identitários, tantas vezes cruzados. Partidariamente, houve sempre uma lógica de tradições compatíveis, proximidade programática e afinidades pessoais. Uma das primeiras idas ao exterior feita por Pablo Casado foi a Lisboa, para reunir com Rui Rio. Pedro Sánchez ainda antes de chegar à Moncloa já tinha uma relação próxima com António Costa. O mesmo se passou entre Soares e González ou entre Barroso e Aznar.Vítor Cunha Rego dizia ser Espanha a “nossa política externa permanente”.
Amanhã, os espanhóis terão as quartas legislativas em menos de quatro anos. No caminho, o bipartidarismo fez uma pausa e o sistema abriu-se a cinco partidos mais equilibrados mas nem por isso mais capazes de gerar soluções de governo minimamente estáveis e, sobretudo, positivamente alinhadas num programa sustentável. Nem o bom ciclo económico dos últimos anos os ajudou. Pelo meio, a Catalunha referendou unilateralmente a independência, o parlamento regional reforçou a posição, o Estado central abriu um período de excecionalismo constitucional e a uma dezena de líderes separatistas foram emitidos mandados de prisão. Nada do que foi dito nesta campanha eleitoral indicia um retrocesso neste choque frontal. Aliás, a solução ultranacionalista proposta peloVox é a que mais cresce em todas as sondagens, numa escalada simétrica ao nacionalismo unilateral catalão e que põe na mesa ilegalização de partidos e restituição ao Estado central de poderes negociados nos estatutos autonómicos.
A mensagem doVox pode não só ser validada em urna, passando a terceiro partido mais votado, como arrastar o PP e o Ciudadanos nessa deriva. Atendendo ao alinhamento entre os três na votação de uma moção apresentada pelo Vox há um par de dias na assembleia legislativa da Comunidade de Madrid, apoiando precisamente aquelas exigências, podemos ter aqui um sinal do frentismo que aí vem. A consolidação deste caminho agressivo validado nas urnas acaba por desvalorizar outra componente da argumentação do Vox na campanha, exposta aliás no único debate televisivo a cinco, quando discorreu com o alarmismo no máximo sobre imigração e violência, usando um chorrilho de mentiras e dados falsos para compor o seu ramalhete apocalíptico gerador de pânico, como aliás vem fazendo desde que emergiu com mais vigor no panorama nacional, em 2014, 2015.
Tal como nos é dado ver noutros contextos políticos (Reino Unido, EUA), vivemos no tempo da desvalorização pública da verdade como instrumento fundamental da argumentação política. Parece que insistir na milésima mentira para proveito eleitoral torna qualquer verificação dos factos num exercício inglório, incapaz de mudar a perceção entretanto deixada nos eleitores. A banalização da mentira, ou da enésima cambalhota, tem hoje custos políticos residuais. Basta olhar para as hipóteses de vitória de Boris Johnson ou para a possibilidade de reeleição de Trump para chegarmos a essa conclusão.
Mas não é só o poder da mentira que merece uma análise preocupada sobre o estado da política contemporânea ocidental. Os exemplos de Abascal, Johnson e Trump merecem também ser vistos pelo chapéu institucional dado pelos partidos sistémicos, centrais nas respetivas democracias. Se hoje o partido republicano está totalmente alinhado com o trumpismo, podemos igualmente dizer que o partido conservador, com mais ou menos sobressaltos individuais, está hoje confortável com a proposta política que Boris Johnson representa. Desde que a forma de um e de outro garanta conquista de poder e vitória eleitoral, qualquer demagogia serve. Nestes dois casos, não estamos a falar de novos partidos criados para albergar bizarrias políticas: foram estas que mudaram estruturalmente a natureza desses partidos sistémicos.
Santiago Abascal, que fez todo o seu percurso político dentro do PP, como aliás vários no núcleo fundador doVox, prova que essa tendência nacionalista, mesmo que domesticada, fez sempre parte de um dos partidos grandes da democracia espanhola. Já aqui escrevi sobre Rafael Bardají, ex-conselheiro de Aznar e um dos ideólogos doVox, orgulhosamente próximo de Steve Bannon. Contudo, não é na domesticação nacionalista dentro do PP que está a novidade. O dado em aberto está na tentação de vários setores dentro do partido popular em alinhar com as propostas doVox daqui em diante, seja no campo migratório, constitucional, securitário, de liberdade de circulação, igualdade de género, saída de organizações multilaterais ou no seguidismo a Orbán na política europeia. Pode tirar-se Abascal do PP, mas é legítimo questionar se o PP vai enterrar o abascalismo. Sobretudo se oVox subir como se prevê nas eleições de amanhã.
Esta tendência de acomodação do nacionalismo por parte de partidos da direita sistémica, corresponsáveis pela consolidação democrática e pela normalização ocidental de vários sistemas políticos, é uma das grandes razões de alarme nas atuais democracias liberais. Ao contrário de tantos excecionalismos proféticos, Portugal não está imune. Muito menos se as coisas caminharem em Espanha, como estão a caminhar, e a que estamos tão expostos. A glorificação de Trump, Bolsonaro e Orbán deixou de estar reduzida ao domínio privado para passar a ser usado como atributo em vários setores da direita portuguesa, alguns com expressão crescente partidária.
Mesmo com o cordão sanitário em erosão, é fundamental distinguir quem, desse lado do espectro político, recusa participar na marcha, salvaguardando a saúde do regime e o ar que se respira. Mas é também imprescindível que estes tenham a coragem de dizer presente. Antes que seja demasiado tarde.
Parece que insistir na milésima mentira para proveito eleitoral torna qualquer verificação dos factos num exercício inglório, incapaz de mudar a perceção entretanto deixada nos eleitores.
Ao rever outro dia Casablanca, o grande clássico do cinema, no meio de um grupo de jovens – pessoas abaixo de 40 anos –, ouvi quando um deles se referiu ao jeito rude e desabrido de Humphrey Bogart, herói do filme. “Ele devia ser assim na realidade”, disse alguém. “Interpretou esse papel de durão em todos os seus filmes. Aposto que passou a vida no submundo desde que nasceu.”
Pedi licença para esclarecer. Foi exatamente o contrário. Bogart, nascido em 1899, vinha de uma família fina de Nova Iorque. Seu nome completo era Humphrey De Forest Bogart, e o De Forest, que herdou de sua mãe, remontava a alguns séculos de história – até hoje há vários De Forest americanos, todos grã-finos e todos seus primos. E o apelido Bogart era de seu pai, médico respeitado e também de uma família tradicional. Humphrey – nome “suave” que só algumas famílias usavam – foi educado para jogar ténis, dançar com debutantes e se casar com uma herdeira. Enfim, tudo, exceto trabalhar. Mas, ao se alistar na Primeira Guerra, conheceu o outro lado da vida e, pelos vistos, gostou. Largou a família, teve vários empregos, tornou-se ator de teatro e quando, finalmente, ganhou um grande papel – o de um assassino na peça A Floresta Petrificada, em 1935 –, já tinha 36 anos. Bogart levou esse personagem para o cinema e, até chegar a Casablanca, em 1942, consagrou-se interpretando gângsteres em dezenas de filmes. A história registra um diálogo seu de dez anos depois, com o produtor Sid Luft, marido de Judy Garland e que tentava se passar por chique e sofisticado. Bogart o enquadrou: “Você é um grosso, Sid. Não sabe o que é ser fino. Eu sei – porque vim de uma família assim. Mas preferi abrir mão.”
Esta não é a única surpresa envolvendo o elenco de Casablanca. O ator alemão Conrad Veidt, que faz o major Strasser, o sinistro oficial que comanda as forças nazistas na cidade, também era exatamente o contrário do que parecia. Veidt, famoso por ter interpretado o zombies Cesare de O Gabinete do Dr. Caligari, de Robert Wiene, na Alemanha, em 1920, deixou o seu país em 1933, quando Hitler tomou o poder.
Pouco antes de deixar Berlim, até assinou uma declaração em que se dizia judeu – embora não fosse –, em solidariedade aos seus amigos judeus, que estavam sendo impedidos de trabalhar. Foi para Inglaterra, onde retomou a carreira e, em 1939, quando a Segunda Guerra estourou, doou todos os seus bens ao governo inglês, para ajudá-lo a combater Hitler. O seu último filme na Inglaterra, antes de partir para Hollywood, foi um dos meus favoritos: O Ladrão de Bagdad, de Ludwig Berger e Michael Powell, com Sabu. Neste, e em 90% dos filmes que rodou fora da Alemanha, Veidt interpretou o vilão – e, não raro, um vilão nazista! Não é irónico? Veidt morreu de enfarte pouco depois de concluir a filmagem de Casablanca. Nunca soube do sucesso do filme e de como milhões no mundo inteiro vibraram quando, na cena do aeroporto, já quase no final, Humphrey Bogart o mata com um tiro.
E você se lembra de Sam. É o pianista e cantor negro interpretado por Dooley Wilson, que toca a canção As Time Goes By para Ingrid Bergman e, pouco depois, Bogart exige que a toque de novo, agora para ele, embora esse diálogo – “Toque de novo, Sam” – não exista no filme. Dooley Wilson ficou tão famoso com Casablanca que, mal o filme foi lançado, começou a receber convites para se apresentar nos night clubs de luxo de Nova Iorque. Ao chegar para trabalhar, recebiam-no com a frase: “Ali fica o piano.” E Dooley dizia: “Mas eu não sei tocar piano!” O gerente do estabelecimento achava que ele estava brincando. Como não sabe? Como o pianista de Casablanca não sabe tocar piano? Quá, quá, quá! E Dooley tinha de se explicar: era cantor e ator, não pianista. Sua voz no filme era mesmo a dele, mas o piano, não – era play-back. E ali se encerrava seu contrato com o tal night club.
A própria Ingrid Bergman, tão apaixonada por Humphrey Bogart em várias cenas do filme, nunca escondeu que os meses de filmagem de Casablanca tinham sido para ela um suplício. Ingrid, contratada da Metro-Goldwyn-Mayer, fora emprestada à Warner para filmar Casablanca e, em seguida, à Paramount, para fazer com Gary Cooper Por Quem os Sinos Dobram, baseado no romance de Ernest Hemingway. Para ela, Casablanca parecia um filme médio, não muito importante. Já Por Quem os Sinos Dobram seria uma superprodução, inclusive em cores, pelo ainda novo processo Technicolor, o que realçaria ainda mais a sua beleza. E, então, aconteceu: as filmagens de Casablanca começaram a se atrasar. O roteiro era escrito e reescrito à medida que as cenas eram filmadas e, com isso, ninguém sabia se, no fim do filme, Ilsa, a personagem que ela vivia, voltaria para os braços de Rick, vivido por Humphrey Bogart, ou se tomaria aquele avião para Lisboa com seu marido, interpretado por Paul Henreid. As duas versões foram filmadas para que se escolhesse uma. Decretado o fim do trabalho, Ingrid se despediu às pressas do pessoal de Casablanca e se mudou para a Paramount, a fim de começar, já com atraso, seu trabalho em Por Quem os Sinos Dobram.
Bem, como sabemos, Casablanca se tornou um dos filmes mais queridos e celebrados do cinema, enquanto Por Quem os Sinos Dobram mergulhou num oblívio tão profundo que nenhum daqueles moços ouvira falar dele. Pois, agora, você já sabe. Rick era um fino que se passava por grosso; o terrível major Strasser era, na verdade, um militante antinazista; o romântico Sam não sabia tocar piano; e Ilsa, bem interesseira, estava louca para se livrar de Humphrey Hogart e cair nos braços de Gary Cooper.