Fernando, o voluntário que nunca se imaginou neste papel
Centro Comunitário de Telheiras tem uma equipa de 14 voluntários. Alguns, como Fernando, promovem atividades com os idosos.
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“unca pensei ser voluntário de nada porque durante toda a vida eu era remunerado por cada prestação de serviço que fizesse. Foi assim no Ministério das Finanças, onde fui dirigente, e depois em 12 anos de consultoria internacional. As coisas eram assim. Mas costumo dizer que o universo põe as coisas no seu lugar.” É assim que Fernando Lomba, de 73 anos, descreve a sua chegada ao mundo do voluntariado.
Um dia, deparou-se com um cancro que lhe trouxe uma “revolução”. Obrigou-o a pensar o que ia fazer a seguir e, depois de dois anos a lutar contra a doença, surgiu a possibilidade de ser voluntário da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, no Centro Comunitário de Telheiras, perto de onde vive. Confrontado com essa hipótese em junho do ano passado, Fernando começou a ponderar o que poderia fazer nesse papel, já que o próprio garante não ter jeito para abordar as pessoas e perguntar como estão. “Não tenho porque não tenho soluções para as pessoas”, sublinha.
Esta perspetiva mudou quando Fernando descobriu que ser voluntário “é um estado de espírito, com diversas valências, mas há duas janelas de oportunidade que são fundamentais: um estado de espírito de apoiar e de receber. Apoiar as pessoas que têm problemas, e a velhice não deixa de ser um problema, um grande problema”. Para o voluntário, esta fase da vida é um problema porque“os velhos, apesar de serem sábios, não podem falar em casa,
não podem dizer o que pensam, que são desautorizados”. É esse o feedback que Fernando recebe dos utentes com quem lida: “Venho para cá porque aqui estou à vontade, digo o que quero, em casa não tenho voz”, relata Fernando sobre as opiniões que vai ouvindo. O voluntário lamenta que a sociedade se comporte assim com pessoas que são sábias, por força do que já viveram. “É uma lógica de velhice como se estivessem ultrapassados.”
Fernando Lomba acredita que com o seu trabalho está a apoiar os idosos que se sentem menos autorizados pela sociedade. Mas está também a receber nas relações que estabelece.
Voluntário através da música
Fernando Lomba chegou ao centro que acolhe 75 utentes para perceber de que forma poderia ser útil como voluntário. “Depois de uma conversa com a Dra. Teresa chegámos à conclusão de que a música seria uma solução. Pensei que poderia ser útil, comprei um teclado e passou-se a mensagem de quem é que queria vir para cá cantar. Porque o cantar tem associado um movimento físico, que é importante, e outro que é fixar letras, que é um exercício de memórias.” Ao mesmo tempo que explica as componentes do seu trabalho como voluntário, Fernando admite que só aprendeu todas estas dimensões “depois de cá estar”.
Vindo da província para a faculdade, Fernando acabou por ter de fazer a tropa. Quando estava para ir para Angola, recebeu um convite para tocar numa banda no Casino Estoril, onde esteve três anos, “uma vida ótima, ganhei muito dinheiro”, mas depois teve de optar entre acabar os estudos ou seguir na música. O curso de Gestão ganhou a disputa.
Mas a música foi entrando na sua vida. Fernando acredita, aliás, que esse gosto é que foi alimentando a criatividade na sua vida profissional, que o ajudou também a ir subindo etapas na carreira: primeiro durante 30 anos como dirigente na administração tributária e depois 12 anos como consultor internacional. “Posso ter algum sucesso aqui no meio destas senhoras por causa dessa criatividade, mas sou tímido.”
Um tímido muito preenchido e feliz com a sua vida, como o próprio faz questão de deixar claro. Esteve dois anos sem trabalhar por causa da doença, mas, entretanto, já decidiu embarcar num projeto de dois anos nos EUA, tem uma vida familiar preenchida: duas filhas, que ganhou no terceiro casamento, um filho adotado em Angola, é ainda família de acolhimento na Guiné. “Acho que o universo costuma pôr as coisas no lugar e percebi que tenho de dar aos outros um bocado do que recebi”, uma lição aprendida com o susto que apanhou quando foi diagnosticado com um cancro, entretanto ultrapassado.
E o local onde Fernando Lomba decidiu retribuir foi no Centro Comunitário de Telheiras. Aqui integra uma equipa de 14 voluntários, como explica Teresa Pinho, diretora do centro. “Oito mulheres e seis homens e, destes, nove vivem em Telheiras e vieram diretamente ao centro por vontade própria”, elogia a responsável. “O grupo de voluntários divide-se entre os que fazem atividades específicas (ioga, meditação, iniciação à informática, inglês, expressão plástica, ginástica, desenvolvimento pessoal) e outros que fazem um trabalho mais genérico no apoio aos utentes, ouvindo-os, indo com eles a consultas, é um apoio mais personalizado. Estes voluntários permitem assim ao centro “ter muitas atividades e diferenciar a oferta” e também “um apoio mais específico de proximidade aos utentes”.
Entre estes voluntários especializados está Fernando, que vai ao centro às quintas-feiras ensinar cantigas. “Tenho pessoas dos 59 aos 95 anos. Cada uma é uma identidade própria, continuam a ter a sua personalidade, com defeitos e virtudes. Vamos buscar cantigas que estejam na sua memória.” Os utentes começam por aprender a cantiga, depois juntam movimentos concertados à cantiga, depois cantam sem papel, o que exercita a capacidade mental.
Apesar de nunca ter perguntado aos utentes o que acham da sua aula, Fernando constata que elas nunca faltam e até chegam antes da hora – “O que deve querer dizer alguma coisa.”
A recompensa do voluntariado
Mas não são apenas os utentes do centro comunitário que tiram partido das aulas de Fernando Lomba. O voluntário admite que, depois de um ano e meio de trabalho no centro, se sente mais do que recompensado. “Nunca faltei a nenhuma destas aulas. Tenho muito respeito por estas quintas-feiras. Estou sempre presente e nunca falto. Tenho esta preocupação.”
Este é um trabalho que faz que Fernando se sinta “completo”. Ao longo deste ano e meio, considera que aprendeu a dar outro valor à velhice, a perceber o que é a velhice, dos valores que ela tem e da sua postura perante pessoas nesta idade. “Pensava que estas pessoas estavam ultrapassadas e velhas no seu pensamento, hoje tenho a perceção de que essas pessoas são sábias. E não é preciso ter estudos para ser sábio.”