O infame código de silêncio das polícias
Nos EUA, chamam-lhe blue code of silence. Há investigações académicas, estudos, livros sobre o fenómeno. Por cá, faz-se de conta que nem se sabe o que é. Até que um juiz põe o dedo na ferida.
Imagine-se que um polícia tinha sido brutalmente espancado por um grupo de pessoas todas vestidas de igual e com a cara tapada; umas tinham dado os golpes, outras tinham feito um semicírculo à volta para que ninguém pudesse interferir. Imagine-se que as autoridades conseguiam identificar o grupo de pessoas que estavam naquele dia àquela hora no local vestidas daquela forma e as levava a tribunal, acusadas da agressão que tinha feito o polícia perder a visão num dos olhos.
Agora imagine-se que nenhum dos arguidos falava em tribunal e que o juiz os absolvia a todos por não conseguir determinar quem dentre eles tinha estado envolvido na agressão, dizendo: “Sei que os culpados estão entre vós, e que o vosso silêncio está a protegê-los, mas não posso condenar ninguém porque não sei quem foi.”
Seria interessante assistir às reações a um caso destes, se alguma vez existisse – e digo se alguma vez existisse porque duvido muito de que algum tribunal português absolvesse um grupo de pessoas nestas circunstâncias, as circunstâncias de algumas delas terem espancado um polícia enquanto outras assistiam e de todas se calarem para furtar os culpados à justiça. Aliás, ainda em março deste ano vimos dois homens serem condenados, no caso da manifestação de afrodescendentes de 21 de janeiro na Avenida da Liberdade, por “participação em motim”, com o fundamento de “estarem num grupo de pessoas que mandou pedras à polícia”. É isso mesmo: “Por estarem num grupo.” Aí não foi preciso determinar que aquelas pessoas são individualmente responsáveis pelo arremesso de pedras; bastou fazerem parte de um grupo em que foram arremessadas pedras - à polícia.
É o mesmo país, no entanto, em que acabámos de ver 11 polícias do Corpo de Intervenção serem absolvidos da agressão brutal a um adepto do Boavista por, precisamente, recusarem falar em tribunal, naquilo a que o juiz caracterizou como “corporativismo” e “comunhão de esforços para encobrir a identidade dos agressores”: “Os autores das bárbaras agressões estão aqui nesta sala, disso não tenho dúvidas. Só não sei é quem foram ou se foram todos, porque ninguém os conseguiu identificar. (...) Toda a gente sabe que vocês sabem quem é que fez aquilo. (...) Com que sentido de justiça declararam que não sabiam, que não viram? Como permitem que se faça isto, que se fechem no corporativismo?”
Um discurso duríssimo que, para bom entendedor, não é apenas para aqueles 11 homens dos quais, para maior vergonha, faz parte o dirigente do mais importante sindicato da PSP – a Associação Sindical de Profissionais de Polícia –, Paulo Rodrigues. É um discurso dirigido a toda a corporação e nomeadamente para a hierarquia – e para a tutela, claro.
Aquilo que o juiz descreve chama-se código de silêncio – uma expressão que conhecemos do universo mafioso e que significa que quem pertence a uma organização nunca denuncia os seus membros. Está tão diagnosticada e reconhecida a existência deste código nas polícias que nos EUA há um termo específico para ele: blue code of silence – código azul do silêncio.
Há sobre esse código azul (como a cor da farda) inúmeros estudos académicos, relatórios, livros. É em parte devido a ele que os polícias americanos passaram a ter câmaras incorporadas nos uniformes e nos automóveis: porque só com os vídeos das intervenções policiais se consegue saber o que realmente aconteceu.
A existência dessas câmaras é, claro, uma forma de defesa dos polícias em relação a falsas acusações. Mas tem sido sobretudo a única defesa dos cidadãos e da comunidade contra o abuso e o código infame que impede os polícias não só de denunciar os crimes cometidos pelos colegas como até de intervir quando assistem a eles. Um código que nos raros casos reportados e analisados em que polícias denunciaram outros polícias tem determinado que aqueles sejam perseguidos daí em diante, ostraciza-dos e impossibilitados de prosseguir na carreira. Há até reporte de situações em que esses polícias, se em situações de perigo, pedem reforços e são ignorados.
É um código de existência tão reconhecido que por exemplo na análise do encobrimento dos padres abusadores de crianças pela Igreja Católica é citado como referência para a compreensão de que em organizações fortemente hierarquizadas não é possível que o encobrimento generalizado ocorra sem o fomento da hierarquia. Uma cultura assim – que, usemos todas as letras, é uma cultura criminosa – jamais sobreviveria se fosse combatida de cima.
O caso dos 11 do corpo de intervenção é disso demonstração eloquente, como aliás muitos outros em que ficou provado em tribunal que polícias mentiram para proteger colegas e não só não foram acusados de obstrução à justiça – coisa que neste caso o juiz parece ter entendido não fazer, malgrado toda a sua indignação como nada lhes aconteceu em termos disciplinares.
À benevolência sistemática com que os tribunais tendem a julgar, cá como noutros países, as agressões e abusos de poder da polícia – e até os homicídios cometidos por polícias – junta-se a forma vergonhosa como as hierarquias lidam com estas situações, mantendo ao serviço agentes que foram condenados não só por agredir como por falsificar autos, ou seja, mentir à própria chefia e corromper o âmago do trabalho policial. O caso do subcomissário Filipe Silva, que em 2015 o país inteiro viu, em direto na TV, a agredir violentamente e sem qualquer justificação um adepto do Benfica e o respetivo pai é apenas o exemplo mais escandaloso porque mais exposto daquilo que se passa corriqueiramente em vários outros processos de agressões policiais.
Não se espere pois que a corporação faça algo em relação aos 11 agentes do Corpo de Intervenção que um juiz acusou tão claramente de conluio para impedir a justiça; mais certo é que tenham sido recebidos com palmadinhas nas costas por terem “defendido os colegas” e pela “vitória” averbada contra a vítima que volta a ser humilhada na sua busca por justiça.
Perante isto – uma polícia que não se reforma e na qual nem os elementos alegadamente progressistas como Paulo Rodrigues se distinguem quando está em causa apurar responsabilidades– éà tutela que temos de exigir ação.
Após a investigação da Inspeção-Geral da Administração Interna à atuação do Corpo de Intervenção na sequência da manifestação de 14 de novembro de 2012 ter concluído, com exemplos vários descritos, alguns configurando tratamentos desumanos e degradantes – como terem obrigado uma jovem de 17 anos a despir-se – , que a ação dos agentes “mereceria certamente censura e ação disciplinar”, mas que tal não era possível porque “as caras estavam escondidas pelos capacetes e viseiras”, esperar-se-ia a conclusão óbvia: que a regra de identificação que existe para os demais agentes fardados tem de se impor também a este corpo especial, sob pena de a cada vez que os seus membros cometem crimes fiquem impunes graças ao anonimato e ao silêncio cúmplice dos colegas e superiores. Não aconteceu então, como se sabe. Após o discurso deste juiz, o silêncio ea inação da tutela terão uma leitura inescapável: a de que faz e quer fazer parte da infame cadeia do encobrimento – e com ela todos os que perante isto se calarem.