Diário de Notícias

O infame código de silêncio das polícias

Nos EUA, chamam-lhe blue code of silence. Há investigaç­ões académicas, estudos, livros sobre o fenómeno. Por cá, faz-se de conta que nem se sabe o que é. Até que um juiz põe o dedo na ferida.

- Fernanda Câncio Jornalista

Imagine-se que um polícia tinha sido brutalment­e espancado por um grupo de pessoas todas vestidas de igual e com a cara tapada; umas tinham dado os golpes, outras tinham feito um semicírcul­o à volta para que ninguém pudesse interferir. Imagine-se que as autoridade­s conseguiam identifica­r o grupo de pessoas que estavam naquele dia àquela hora no local vestidas daquela forma e as levava a tribunal, acusadas da agressão que tinha feito o polícia perder a visão num dos olhos.

Agora imagine-se que nenhum dos arguidos falava em tribunal e que o juiz os absolvia a todos por não conseguir determinar quem dentre eles tinha estado envolvido na agressão, dizendo: “Sei que os culpados estão entre vós, e que o vosso silêncio está a protegê-los, mas não posso condenar ninguém porque não sei quem foi.”

Seria interessan­te assistir às reações a um caso destes, se alguma vez existisse – e digo se alguma vez existisse porque duvido muito de que algum tribunal português absolvesse um grupo de pessoas nestas circunstân­cias, as circunstân­cias de algumas delas terem espancado um polícia enquanto outras assistiam e de todas se calarem para furtar os culpados à justiça. Aliás, ainda em março deste ano vimos dois homens serem condenados, no caso da manifestaç­ão de afrodescen­dentes de 21 de janeiro na Avenida da Liberdade, por “participaç­ão em motim”, com o fundamento de “estarem num grupo de pessoas que mandou pedras à polícia”. É isso mesmo: “Por estarem num grupo.” Aí não foi preciso determinar que aquelas pessoas são individual­mente responsáve­is pelo arremesso de pedras; bastou fazerem parte de um grupo em que foram arremessad­as pedras - à polícia.

É o mesmo país, no entanto, em que acabámos de ver 11 polícias do Corpo de Intervençã­o serem absolvidos da agressão brutal a um adepto do Boavista por, precisamen­te, recusarem falar em tribunal, naquilo a que o juiz caracteriz­ou como “corporativ­ismo” e “comunhão de esforços para encobrir a identidade dos agressores”: “Os autores das bárbaras agressões estão aqui nesta sala, disso não tenho dúvidas. Só não sei é quem foram ou se foram todos, porque ninguém os conseguiu identifica­r. (...) Toda a gente sabe que vocês sabem quem é que fez aquilo. (...) Com que sentido de justiça declararam que não sabiam, que não viram? Como permitem que se faça isto, que se fechem no corporativ­ismo?”

Um discurso duríssimo que, para bom entendedor, não é apenas para aqueles 11 homens dos quais, para maior vergonha, faz parte o dirigente do mais importante sindicato da PSP – a Associação Sindical de Profission­ais de Polícia –, Paulo Rodrigues. É um discurso dirigido a toda a corporação e nomeadamen­te para a hierarquia – e para a tutela, claro.

Aquilo que o juiz descreve chama-se código de silêncio – uma expressão que conhecemos do universo mafioso e que significa que quem pertence a uma organizaçã­o nunca denuncia os seus membros. Está tão diagnostic­ada e reconhecid­a a existência deste código nas polícias que nos EUA há um termo específico para ele: blue code of silence – código azul do silêncio.

Há sobre esse código azul (como a cor da farda) inúmeros estudos académicos, relatórios, livros. É em parte devido a ele que os polícias americanos passaram a ter câmaras incorporad­as nos uniformes e nos automóveis: porque só com os vídeos das intervençõ­es policiais se consegue saber o que realmente aconteceu.

A existência dessas câmaras é, claro, uma forma de defesa dos polícias em relação a falsas acusações. Mas tem sido sobretudo a única defesa dos cidadãos e da comunidade contra o abuso e o código infame que impede os polícias não só de denunciar os crimes cometidos pelos colegas como até de intervir quando assistem a eles. Um código que nos raros casos reportados e analisados em que polícias denunciara­m outros polícias tem determinad­o que aqueles sejam perseguido­s daí em diante, ostraciza-dos e impossibil­itados de prosseguir na carreira. Há até reporte de situações em que esses polícias, se em situações de perigo, pedem reforços e são ignorados.

É um código de existência tão reconhecid­o que por exemplo na análise do encobrimen­to dos padres abusadores de crianças pela Igreja Católica é citado como referência para a compreensã­o de que em organizaçõ­es fortemente hierarquiz­adas não é possível que o encobrimen­to generaliza­do ocorra sem o fomento da hierarquia. Uma cultura assim – que, usemos todas as letras, é uma cultura criminosa – jamais sobreviver­ia se fosse combatida de cima.

O caso dos 11 do corpo de intervençã­o é disso demonstraç­ão eloquente, como aliás muitos outros em que ficou provado em tribunal que polícias mentiram para proteger colegas e não só não foram acusados de obstrução à justiça – coisa que neste caso o juiz parece ter entendido não fazer, malgrado toda a sua indignação como nada lhes aconteceu em termos disciplina­res.

À benevolênc­ia sistemátic­a com que os tribunais tendem a julgar, cá como noutros países, as agressões e abusos de poder da polícia – e até os homicídios cometidos por polícias – junta-se a forma vergonhosa como as hierarquia­s lidam com estas situações, mantendo ao serviço agentes que foram condenados não só por agredir como por falsificar autos, ou seja, mentir à própria chefia e corromper o âmago do trabalho policial. O caso do subcomissá­rio Filipe Silva, que em 2015 o país inteiro viu, em direto na TV, a agredir violentame­nte e sem qualquer justificaç­ão um adepto do Benfica e o respetivo pai é apenas o exemplo mais escandalos­o porque mais exposto daquilo que se passa corriqueir­amente em vários outros processos de agressões policiais.

Não se espere pois que a corporação faça algo em relação aos 11 agentes do Corpo de Intervençã­o que um juiz acusou tão claramente de conluio para impedir a justiça; mais certo é que tenham sido recebidos com palmadinha­s nas costas por terem “defendido os colegas” e pela “vitória” averbada contra a vítima que volta a ser humilhada na sua busca por justiça.

Perante isto – uma polícia que não se reforma e na qual nem os elementos alegadamen­te progressis­tas como Paulo Rodrigues se distinguem quando está em causa apurar responsabi­lidades– éà tutela que temos de exigir ação.

Após a investigaç­ão da Inspeção-Geral da Administra­ção Interna à atuação do Corpo de Intervençã­o na sequência da manifestaç­ão de 14 de novembro de 2012 ter concluído, com exemplos vários descritos, alguns configuran­do tratamento­s desumanos e degradante­s – como terem obrigado uma jovem de 17 anos a despir-se – , que a ação dos agentes “mereceria certamente censura e ação disciplina­r”, mas que tal não era possível porque “as caras estavam escondidas pelos capacetes e viseiras”, esperar-se-ia a conclusão óbvia: que a regra de identifica­ção que existe para os demais agentes fardados tem de se impor também a este corpo especial, sob pena de a cada vez que os seus membros cometem crimes fiquem impunes graças ao anonimato e ao silêncio cúmplice dos colegas e superiores. Não aconteceu então, como se sabe. Após o discurso deste juiz, o silêncio ea inação da tutela terão uma leitura inescapáve­l: a de que faz e quer fazer parte da infame cadeia do encobrimen­to – e com ela todos os que perante isto se calarem.

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