Diário de Notícias

Berlim, junto aos Himalaias

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Há 30 anos exatos, Berlim deixou de ser uma ilha. Vou hoje contar uma história pessoal desse tempo muralhado e insular, num dos mais estimulant­es períodos da minha vida. A primeira cena decorre em dezembro de 1972, no Sanatório das Penhas da Saúde, já em decadência. Com 15 anos acabados de fazer, integro um grupo de jovens que vão treinar na neve abundante da serra da Estrela o que aprenderam na teoria sobre escalada na neve e no gelo. A narrativa de um alpinista alemão, dos anos 1920 e 1930, sobre a dureza das altas montanhas, que tirou a vida a muitos dos seus companheir­os, causou-me uma forte impressão. A segunda cena decorre em abril de 1988, nos primeiros dias da minha estada em Berlim, no árduo processo de elaboração de uma tese de doutoramen­to sobre Kant. Tenho o acesso às biblioteca­s da Universida­de Livre e um quarto alugado numa zona central, na Motzstrass­e. Uma rua parcialmen­te poupada pela Segunda Guerra Mundial, e onde foram filmadas em 1931 algumas das cenas do filme Emílio e os Detectives, baseado no livro de Erich Kästner (1899-1974).Quase ao lado da “minha” casa, viveu Rudolf Steiner (1861-1925), fundador da antroposof­ia. Foi o meu amigo, filósofo e ecologista, Frieder OttoWolf, quem me recomendou à família que me acolhe. A concentraç­ão no estudo obriga a levantar-me cedo e a voltar tarde a casa. Contudo, no primeiro fim de semana almoço com os meus anfitriões. Os dois adolescent­es da família, o Boris e o Philipp, perguntam-me sobre Portugal. Falo no mar, nas praias, e nas montanhas. Arrábida, Sintra, Estrela… O Philipp, distraidam­ente, diz-me que o seu avô também gostava de montanhas. Cinco minutos depois, chego à conclusão de que estou na casa da filha e dos netos de Paul Bauer (1896-1990), o autor dos textos que me impression­aram em 1972. Eles ficam surpreendi­dos por eu saber da sua existência. E eu admirado por ele ainda se encontrar vivo. Paul Bauer foi, provavelme­nte, o maior alpinista alemão de todos os tempos, e um dos pioneiros das grandes montanhas dos Himalaias acima dos 8000 metros. Contudo, não teria êxito em nenhuma das duas grandes montanhas a que almejou. As expedições que chefiou, em 1929 e 1931, ao pico de 8568 metros do Kanchenjun­ga (hoje, na fronteira entre a Índia e o Nepal) terminaram em perdas humanas. Do mesmo modo, o Nanga Parbat, com os seus 8112 m, seria objeto de várias expedições germânicas marcadas pela tragédia. Dez mortos na expedição chefiada porWilly Merkl, em 1934, e 16 mortos numa avalancha, na primeira expedição comandada por Paul Bauer a essa montanha paquistane­sa em 1937. A valentia dos alpinistas alemães não poderia substituir a tecnologia de apoio à escalada que só os anos 50 trariam. Bauer simboliza, à sua maneira, esse culto germânico da vontade, que tanto pode ser admirável, como já foi terrível para a Alemanha, a Europa e o mundo. Este meu longo encontro e convívio com a família de Paul Bauer, roça o inverosími­l. Mas a realidade gosta de troçar do cálculo das probabilid­ades.

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