Diário de Notícias

O que fez nos ringues e fora deles bem justificou outro nome que lhe deram: The Greatest.

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Numa manhã de Novembro de 1982, um ancião e um rapazinho africanos tocaram à porta de uma grande casa em Hancock Park, na Califórnia. O ancião não queria morrer sem apresentar o neto ao dono da casa, o rapazinho trazia um Big Mac para lhe oferecer. Só com o fito de encontrare­m, tinham vindo de longe, de muito longe. Da Tanzânia. Com pouco dinheiro e a contar tostões, andaram no seu encalço em Chicago, estavam há três dias em Los Angeles à procura dele, e tinham de regressar a África na manhã seguinte. O dono da casa recebeu-os, comeu o Big Mac, fez uns truques de magia para o rapaz. Depois deu-lhes de almoçar e levou-os de volta no seu Rolls-Royce. À porta do modesto hotel onde avô e neto se tinham hospedado, Muhammad Ali abraçou-os, deu-lhes um beijo, e disse-lhes para irem com Deus.

Dias depois, quando treinava para uma série de exibições de boxe nos Emirados Árabes Unidos, um jornalista fez-lhe algumas perguntas no balneário. Ali respondeu com a bravata habitual, mas confundiu as datas da digressão pelas arábias, o tempo de duração desse périplo e, quando aludiu ao seu regresso a casa, hesitou até ao dizer o local onde morava.

Passaram alguns meses, entrou novo ano. A ocorrência de algumas mortes nos ringues fez o Journal of the American Medical Associatio­n publicar um editorial histórico em que pugnava pela abolição do pugilismo em todo o país. Em Abril de 1983, a Sports Illustrate­d deu à estampa um dossiê especial sobre as lesões cerebrais causadas pelo boxe, apresentan­do o caso de Muhammad Ali como exemplo daquela que era então conhecida como “demência pugilístic­a” ou “punch-drunk syndrome”. Ali recusara fazer os testes neurológic­os que a Sports Illustrate­d lhe pedira, mas a revista teve acesso às radiografi­as que lhe foram feitas dois anos antes. Nessa altura, o radiologis­ta considerou que estava tudo bem com o cérebro do peso-pesado, mas agora os especialis­tas concluíram que existiam indícios claros de atrofia cerebral e problemas no septo pelúcido. Aos mais próximos, Ali confidenci­ou que começava a ficar preocupado. Um novo exame confirmou a existência de lesões, ainda que o campeão, ao ser entrevista­do pelos jornalista­s, as tenha procurado desvaloriz­ar, dizendo que ao longo da sua carreira tinha sofrido 175 mil golpes graves e que era natural que isso tivesse provocado alguns estragos, mas não, nunca, lesões cerebrais. No hospital, foi visitado pelo reverendo Jesse Jackson, ainda incomodado pelo facto de Ali, que estivera ao seu lado nas primárias dos Democratas, ter no final decidido apoiar Ronald Reagan, o antigo governador da Califórnia que, em 1970, lhe negara a licença para voltar a combater, após o pugilista ter sido suspenso – e preso – por se recusar a ser incorporad­o no exército e a ir para o Vietname. Enquanto esteve internado, centenas de fãs acamparam no exterior do hospital, aguardando notícias do ídolo. Como sempre, Muhammad Ali não os desiludiu. Vestiu-se a preceito, assomou à janela e gritou a plenos pulmões: “I’m still the greatest… of… alllll… tiiiiimmmm­mmme!”

Os médicos informaram a imprensa que o pugilista não tinha a doença de Parkinson, mas sofria da síndrome de Parkinson, patente na sua voz arrastada, na rigidez do pescoço ou na lentidão dos seus movimentos faciais. Disseram ainda que era “muito possível” que tal se devesse à sua longa carreira no boxe e que até era plausível que aqueles sintomas remontasse­m a 1975, ano do mítico recontro com Joe Frazier em Manila. Ainda que as lesões não se devessem, naturalmen­te, a um só combate, no final da luta com Frazier, ganha por KO técnico, Ali afirmou que aquela fora a vez em que mais próximo esteve da morte.

O diagnóstic­o clínico do Hospital de Columbia era apoiado por outros dados: nos primeiros tempos da sua carreira, antes de ter sido afastado durante três anos dos ringues por se ter recusado a ir para o Vietname, Muhammad Ali sofria uma média de 11,9 socos em cada assalto; nos últimos dez combates antes do exame médico, essa média subira para 18,6 socos por assalto, o que era uma prova de que o campeão estava a perder a velocidade e os reflexos – e a um ritmo vertiginos­o.

De regresso a casa, sabendo que nunca mais poderia subir aos ringues, Ali não se deixou abater e permaneceu fiel a si próprio: nem sempre tomava os comprimido­s para o Parkinson, continuava a adorar as intermináv­eis sessões de fotografia­s e de autógrafos, dava conversa na rua a todos os admiradore­s e, para desespero da família, em especial das filhas, tinha sempre a casa cheia de amigos e de convidados, muitos dos quais perfeitos desconheci­dos. Além disso, continuava o mulherengo de sempre. Uma das filhas recorda-se de que os pais nunca discutiam, mas na época já dormiam em quartos separados. Em 1986, divorciara­m-se e, pouco depois, Muhammad Ali casou com Yolanda Williams, uma mulher com formação superior e um mestrado em Gestão, quinze anos mais nova do que ele, que se converteu aoislão aquando do casamento e que passou a administra­r-lhe as finanças de forma tão disciplina­da quanto possível.

O peso-pesado, que em 1978 chegou a declarar falência, era incapaz de gerir o dinheiro, metia-se em negócios ruinosos (como a cadeia de restaurant­es Champ Burger ou os refrigeran­tes Mr. Champ’s), desfazia-se em gestos de prodigalid­ade com estranhos e com aduladores, doava milhões para obras religiosas e de caridade, gastava fortunas com uma família numerosa, cada dia mais alargada. Contudo, nem todos os que se cruzaram no seu caminho foram bafejados pela sorte. A sua segunda mulher, Kalilah, chegou a entrar no filme A Síndrome da China ao lado de Jane Fonda e de Jack Lemmon, mas não conseguiu singrar como actriz e em pouco tempo desbaratou o que recebera no divórcio, acabando por ter de trabalhar como mulher das limpezas no mesmo bairro de Los Angeles onde o ex-marido morava agora com a nova família; para aumentar os rendimento­s, Kalilah vendia regularmen­te o seu plasma por noventa dólares por semana e, quando Ali morreu, a única recordação que dele guardava em casa era um magneto com o seu rosto, afixado no frigorífic­o. Rahaman, o irmão mais novo de Muhammad, a quem este dissera que nunca teria de fazer carreira no boxe pois ele iria dar-lhe uma vida confortáve­l, morava com a mulher numa casa de habitação social cujo interior parecia um museu dedicado ao pugilista, com as paredes cobertas de fotografia­s e recortes de jornais. Rahamman desentende­ra-se comYolanda não muito depois do seu casamento com Muhammad e este deixara de lhe falar, razão pela qual vivia agora no limiar da pobreza. E o único filho natural do campeão, Muhammad Ali Jr., é hoje um indigente que vagueia pelas ruas de Chicago.

Nos últimos anos de vida, narrados ao pormenor na monumental biografia da autoria de Jonathan Eig (Ali: a Life, 2017), Muhammad Ali foi usado por várias administra­ções norte-americanas em missões de resgate de reféns no Médio Oriente (já antes, em 1980, fora enviado por Carter numa missão falhada que visava persuadir os dirigentes africanos a juntarem-se aos Estados Unidos no boicote aos Jogos Olímpicos de Moscovo). Em 1985, Ali foi até Beirute com uma equipa numerosa, da qual fazia parte um agente da CIA indicado pelo vice-presidente George H. Bush.

O objectivo era resgatar mais de quarenta reféns, quatro dos quais norte-americanos, capturados no Líbano por extremista­s islâmicos, ao que parece a mando do governo iraniano. Muitos dizem que a missão foi um fiasco, mas o facto é que, a partir de Londres, Muhammad conseguiu falar ao telefone com Khomeini – ou alguém que disse ser Khomeini – e um dos reféns americanos acabou por ser libertado. O problema é que, como sempre, Ali gabou-se da façanha a um repórter e, por causa disso, os iranianos afirmaram nada ter a ver com o

Opaleoantr­opólogo francês Yves Coppens – membro da equipa que descobriu o esqueleto de Lucy (um Australopi­thecus afarensis com mais de três milhões de anos) em 1974, mudando para sempre a nossa compreensã­o da evolução humana – contou, quando passou por Lisboa nos anos 1990, uma história deliciosa. A avó era profundame­nte católica e, como tal, não queria de maneira nenhuma aceitar que o homem descendess­e do macaco (Australopi­thecus significa, aliás, “macaco do sul”). No entanto, diante do reconhecim­ento universal de que o neto era alvo, começou a pensar que talvez estivesse a ser demasiado radical. Então, chamou-o ao seu quarto, fechou a porta para ninguém a ouvir e, depois de o felicitar pelo êxito das suas conquistas, atalhou: “Olha, Yves, tu até podes descender do macaco, mas eu não.”

São muito antigas as dissensões entre a Igreja Católica e a ciência – pobre Giordano Bruno, pobre Galileu... – e só há relativame­nte pouco tempo o Vaticano foi capaz de engolir o sapo e dizer alto e bom som que teorias científica­s como a do Big Bang ou a da origem do homem não são incompatív­eis com o catolicism­o. Em 2014 – curiosamen­te o ano em que Yves Coppens se tornou membro da Pontifícia Academia das Ciências – o Papa Francisco declarou que a evolução da natureza não colide com a ideia de criação nem Deus pode ser visto como um feiticeiro munido de varinha-de-condão, desencoraj­ando assim uma leitura da Bíblia demasiado literal ou mesmo fundamenta­lista (como aconteceu no Brasil, onde um conselheir­o de Bolsonaro para a educação chegou a sugerir durante a campanha eleitoral que o criacionis­mo fosse ensinado nas escolas públicas). Parece, pois, que a Igreja de Roma está decidida a andar ao lado do progresso e a trocar o mofo das velhas sacristias por uma mais do que bem-vinda modernizaç­ão, como de resto o comprovam a decisão de digitaliza­r e colocar online mais de um milhão de livros da Biblioteca Apostólica Vaticana e a aceitação pelos bispos reunidos em Roma da ordenação de homens casados na Amazónia para ultrapassa­r a falta de padres naquela região.

Mas, cuidado, também não é preciso ir depressa demais. Encorajar a oração entre os jovens com uma pulseira-terço ligada a uma app chamada Click to Pray eRosary, que só precisa do sinal da cruz para ser activada e propõe três modalidade­s (terço padrão, terço contemplat­ivo e terço temático) já me parece um bocadinho excessivo. Sobretudo ao preço de cem euros... Adeus, futuro.

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