Muitas formas publicitárias de representação dos telemóveis tratam-nos como objetos inocentes e transparentes, a ponto de nos fazerem desistir de perguntar o que significa estar “em rede” – será preciso ir para lá das explicações de Mark Zuckerberg.
Entre as imagens que vi esta semana, registei esta com especial atenção. Pertence a um vídeo da CNN que acompanha uma notícia (colocada online na quinta-feira) sobre a italiana Liliana Segri, senadora vitalícia de 89 anos responsável pela criação de uma comissão parlamentar contra o ódio, o racismo e o antissemitismo. Segundo dados do centro de documentação da Fundação Judaica sediada em Milão, Segri tem sido alvo de mensagens “particularmente agressivas”, publicadas nas chamadas redes sociais à média de duas centenas por dia.
A imagem surge num registo audiovisual muito breve (pouco mais de dois minutos) que complementa a notícia. As legendas não são opcionais: por certo reconhecendo a importância do que é dito pelas duas pessoas entrevistadas – o alemão Manfred Goldberg e a francesa Freda Wineman, ambos sobreviventes do Holocausto –, a CNN inscreveu-as nas próprias imagens.
As palavras de Goldberg são especialmente incisivas e pedagógicas: “O que me traz uma tremenda preocupação é que, em nome da liberdade de expressão, parecemos ignorar a lição da história.” Que lição? O vídeo vai mostrando imagens do campo de concentração de Auschwitz, evitando a convencional voz off para “comentar” o que está a ser visto, optando antes por introduzir esta legenda: “Manfred diz que as redes sociais são um instrumento poderoso na disseminação do ódio.”
Por uma coincidência que está longe de ser irrelevante, esta foi também a semana em que Hillary Clinton teceu algumas considerações sobre a decisão anunciada pelo Facebook de não verificar a veracidade (“fact-check”) das informações incluídas na publicidade política que integra nas suas páginas. O seu testemunho teve como cenário a apresentação, em Nova Iorque, do documentário The Great Hack, produção da Netflix sobre o escândalo de manipulação de dados de milhões de pessoas, envolvendo a empresa CamNestas bridge Analytica e o Facebook. Recordando o facto de, em 2016, o Facebook ter espalhado uma notícia (falsa) segundo a qual o Papa Francisco manifestara apoio a Donald Trump, seu adversário na eleição presidencial, Clinton considerou que Mark Zuckerberg “deveria pagar um preço” pelo que está a fazer à democracia.
Não se trata de demonizar os muitos e fascinantes recursos que a tecnologia nos proporciona. A questão é outra. No vídeo da CNN, há também algumas imagens de uso de computadores associadas a mais algumas palavras de Goldberg: “Agora, a comunicação instantânea significa que qualquer pessoa individual que queira propagar pontos de vista contaminados por ódios raciais pode fazê-lo de modo muito mais efetivo do que os nazis alguma vez conseguiram.”
Claro que o vídeo está longe de esgotar os dados de toda uma conjuntura que é política, económica e simbólica, numa palavra, cultural (o mesmo se poderá dizer, aliás, deste texto). Em qualquer caso, creio que importa reconhecer o valor de imagens como esta, capazes de resistir às mais agressivas representações publicitárias que endeusam os telemóveis como objetos dotados de uma vocação virginal de transparência e ecumenismo.
pequenas clivagens figurativas trava-se muito da guerra contemporânea das imagens. E em especial nos domínios globais – a começar pela internet, suas informações e práticas publicitárias – em que o triunfo de um “naturalismo” supostamente imanente tende a esmagar as possibilidades de ver e pensar de maneiras diversas.
“Os utilizadores estão interligados, é esse o único objetivo” – quem o diz é Zuckerberg, ou melhor, a sua personagem tal como surge encenada num filme genial e premonitório sobre os malefícios do Facebook chamado A Rede Social (David Fincher, 2010). Resta saber se nós, adultos, estamos a usar os poderes de educação dos mais novos para lhes fornecer alguma consciência sobre o que significa estar “em rede”. Será que quando um adolescente pergunta o que foi Auschwitz nos limitamos a dizer para procurar no telemóvel?...