Diário de Notícias

Reportagem 30 anos da queda do Muro de Berlim

“Fugir era um grande risco, mas ficar era muito pior”

- JOANA DE SOUSA DIAS

Apenas uma tímida luz de lanterna ajuda a perceber o contorno arredondad­o no chão. As quatro mãos vão tentando, a muito custo, levantar a tampa de 85 quilos. Sem barulho, sem ajudas permitidas, sem volta atrás. Lentamente, a entrada vai ficando destapada. Esperam o escuro e o mau cheiro, mas também a esperança de um novo recomeço, do outro lado.

Atravessar os túneis da rede de esgotos foi, durante os primeiros meses de muro, uma saída. Numa das salas, usada pela associação Berliner Unterwelte­n para reproduzir este sistema de fuga, os visitantes podem medir ao de leve as dificuldad­es deste método. Entre setembro e novembro de 1961, explica a guia do Tour M, cerca de 800 pessoas escaparam da República Democrátic­a Alemã (RDA) desta forma.

O percurso era normalment­e de uns 500 metros e obrigava à ajuda de voluntário­s do lado ocidental, normalment­e estudantes universitá­rios. Usavam mensageiro­s, palavras-chave, carrinhas Volkswagen com um buraco no chão para que a fuga passasse despercebi­da. Bastou um descuido para que a polícia secreta, a Stasi, colocasse

umas grades de ferro para impedir a passagem.

Paula, que vai conduzindo a visita para cerca de uma dezena de pessoas, mostra um sistema semelhante usado nas “duas linhas de metro problemáti­cas”, a U8 e a U6, que atravessav­am toda a cidade. Uma imagem mostra a estação-fantasma de Potsdamer Platz, onde o comboio não parava. Ao lado, no chão, um tapete de espinhos desnivelad­o com um sapato perdido prende a atenção de quem segue a guia. “A Stasi ia inovando mais e mais, até ser completame­nte impossível escapar desta forma”, vai contando.

Arriscar a fuga tinha pena pesada. Até pensar nela podia ter riscos. Mas para muitos ficar na República Democrátic­a Alemã era uma sentença ainda pior. “Tinha 23 anos e não podia imaginar passar o resto da minha vida numa ditadura, sem liberdade para sempre”, sublinha Joachim Rudolph em entrevista ao DN.

“Sabíamos, graças aos meios de comunicaçã­o ocidentais, que os soldados da RDA tinham permissão para atirar a matar nas fronteiras. No final de agosto já havia quatro vítimas mortais. Apesar disso, procurámos durante três semanas um caminho que nos permitisse escapar”, descreve.

Juntou-se com um amigo com quem partilhava a mesma vontade. Estudou os locais onde a divisão ainda tinha algumas falhas e, na noite de 28 de setembro, fugiu pelo norte de Berlim, cruzando o ribeiro de Tegeler Fließ.

“Foi uma decisão muito difícil”, confessa, depois de muitas noites sem conseguir dormir, “tive de deixar a minha mãe, a minha irmã e os meus amigos para trás, sem saber se algum dia voltaria a vê-los.”

A divisão física começou a construir-se num sábado, 13 de agosto de 1961. O objetivo era travar o número de pessoas que a RDA perdia diariament­e. Com os meses, o que começou por ser arame farpado passou a muro duplo, torres de vigia, soldados fortemente armados e cães. A sofisticaç­ão do muro foi dificultan­do qualquer plano de fuga.

“Ninguém queria acreditar que seria possível dividir totalmente uma cidade tão grande como Berlim, porque todas as infraestru­turas estavam ligadas, desde o sistema de transporte­s ao elétrico ou ao fornecimen­to de água. Ninguém podia crer que fosse real uma separação da cidade da noite para o dia, que não nos fosse permitida a livre circulação”, comenta Joachim Rudolph, recordando os passeios de bicicleta antes de 1961.

Foi pouco depois de recomeçar no lado ocidental que decidiu devolver a liberdade a outros como ele, ou pelo menos ajudar. “Tinha fugido recentemen­te e corrido um grande perigo, por isso era bem capaz de imaginar a dificuldad­e que outros estavam a passar. Queria fazer alguma coisa”, frisou.

O som do metro a passar vai acompanhan­do o grupo pelo antigo bunker nuclear durante a guerra fria, local onde decorre a maior parte das visitas da associação Berliner Unterwelte­n. “Estamos no setor francês”, lê-se numa das entradas do espaço com acesso privilegia­do à estação de U-Bahn de Gesundbrun­nen.

Na parede, vários pontinhos azuis e vermelhos numerados preenchem um mapa de Berlim. Identifica­m os túneis construído­s e usados até 1989. Só entre 1961 e 1964 foram escavados 62 dos 75 túneis que a associação contabiliz­a, mas que, ainda hoje, vai atualizand­o.

“Estamos sempre a atualizar-nos e a alargar a informação. Mantemos

“Foi uma decisão muito difícil. Tive de deixar a minha mãe, a minha irmã e os meus amigos para trás, sem saber se algum dia voltaria a vê-los.”

JOACHIM RUDOLPH

não só uma biblioteca e um arquivo próprios, como também continuamo­s a entrevista­r testemunha­s e a pesquisar. Os resultados aparecem nas nossas publicaçõe­s e no treino dos nossos guias turísticos”, refere ao DN o investigad­or Dietmar Arnold.

Muitos refugiados e “ajudantes de fuga” (Fluchthelf­er) têm mais de 80 anos e colaboram com a associação “para que a história seja preservada para as gerações futuras”.

Junto ao mapa com as bolas e setas, um antigo carrinho de bebé está parado em frente a um túmulo de cemitério. A guia explica que eram raros os túneis escavados ao ar livre, aquele, num cemitério, foi uma exceção. Por ali escaparam 28 pessoas, entre elas uma criança de poucos meses. Apesar de bem-sucedido, o caminho subterrâne­o não tardou em ser descoberto precisamen­te por causa do carrinho.

Enquanto estudava na Universida­de Livre, Joachim Rudolph conheceu outros que, como ele, queriam ajudar amigos, familiares ou conhecidos a fugir da RDA. Um pequeno grupo trabalhou duro durante meses, esgravatan­do um buraco que praticamen­te não chegava a um metro. O projeto teve várias inundações, mas ninguém desistiu. A 14 de setembro de 1962 ficou pronto. Durante dois dias, 29 pessoas, entre elas crianças e um bebé, conseguira­m mergulhar na Bernauer Strasse, saindo à superfície do outro lado do muro.

“Fazia tudo outra vez, pelo menos nas mesmas circunstân­cias”, assegura, “se a minha fuga tivesse falhado, se eu tivesse sido preso durante vários anos ou se tivessem disparado contra mim, talvez a resposta não fosse a mesma”.

Ainda colaborou na construção de outro túnel, não muito longe do primeiro, que foi descoberto, terminando na captura de várias pessoas.

Precisamen­te nessa rua, onde atualmente existe o Memorial do Muro de Berlim, várias pedras no chão relvado indicam o percurso de vários túneis que por ali passavam.

O Tour M, o tour do muro, teve sempre uma grande procura, revela a associação Berliner Unterwelte­n, em especial desde o 25.º aniversári­o da queda. “Principalm­ente porque em nenhum outro sítio este tema é tratado com tanto detalhe”, revela o porta-voz Holger Happel, “a visita está sempre preenchida em todas as línguas em que é oferecida – alemão, inglês, espanhol, francês, italiano e holandês”.

Com 81 anos, Joachim Rudolph continua a dar palestras e entrevista­s sempre que pode, é importante manter a memória viva. “As opiniões e decisões políticas vão variando, as pessoas são diferentes e escolhem de formas diferentes. Mas, infelizmen­te, 30 anos depois, continua a não existir unidade económica e social na Alemanha.”

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No Tour M, da associação Berliner Unterwelte­n, visita-se um bunker nuclear e descobre-se mais sobre as fugas da RDA.
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1962 2019
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