Diário de Notícias

Os que não se despedem de Carlos do Carmo

Ouvimos os fadistas Camané, Cristina Branco, Ricardo Ribeiro e Marco Rodrigues sobre o seu mentor no fado, Carlos do Carmo, que se vai despedir hoje, aos 80 anos, dos palcos. As primeiras memórias de quem não o irá esquecer e o celebrará com a música.

- MARIA JOÃO CAETANO

Antes de entrar no palco do Coliseu de Lisboa, logo à noite, Carlos do Carmo vai benzer-se, como sempre. Este será, tal como anunciado, o seu último concerto: “São 57 anos a cantar, quase no mundo inteiro. São poucos os países onde não cantei. Foi muita viagem, muitos hotéis, muitos palcos, é muita coisa e é uma boa altura para acalmar”, dizia há dias o cantor que está prestes a completar 81 anos. Despede-se dos palcos mas ainda vai editar, pelo menos, mais um disco. E vai continuar a receber os amigos em casa e a dar conselhos aos mais novos, como sempre tem feito.

Que o digam Camané, Cristina Branco, Ricardo Ribeiro e Marco Rodrigues, quatro dos fadistas que participar­am no disco de duetos Fado É Humor, editado por Carlos do Carmo em 2013, e que nos falam um pouco do que aprenderam com o fadista que nos habituámos a ver de mão no bolso e voz tranquila.

Um miúdo a cantar para o ídolo

“A minha primeira memória do Carlos do Carmo foi ouvi-lo cantar, em discos, quando tinha para aí 7 ou 8 anos”, recorda o fadista Camané. “E foi uma coisa fantástica porque era uma maneira completame­nte nova de cantar, muito diferente do que eu estava habituado a ouvir nos fados.” Camané lembra-se de uma noite em que, deveria ter uns 10 anos, foi jantar com os pais ao Faia, a casa de fados que Carlos do Carmo geria desde os 21 anos, após a morte do pai, e onde cantava a sua mãe, Lucília do Carmo. “O guitarrist­a perguntou-me se eu queria cantar e eu disse que só cantava se o Carlos do Carmo fosse ouvir. E o Carlos, que não gostava muito de ouvir crianças a cantar, foi supersimpá­tico comigo e com os meus pais. A partir daí ficámos muito amigos.” Carlos do Carmo acompanhou o seu cresciment­o: “Sempre que encontrava o meu pai perguntava por mim: como é que está o miúdo fadista?”

É por tudo isto que Camané, atualmente com 51 anos e um dos nomes de referência no fado, não hesita em dizer: “O Carlos foi uma pessoa muito importante na minha vida, tanto como referência como como amigo.” E conclui: “É um homem que foi buscar o passado e que trouxe o fado para o futuro, deu-lhe uma dimensão fantástica sem nunca abdicar dos valores que são importante­s para se ser fadista e arriscou sempre sem deixar de manter uma estética e um bom gosto.”

Dizer as palavras de uma forma única

Antes destas despedidas com o público, primeiro no Coliseu do Porto e agora no de Lisboa, Carlos do Carmo fez um pequeno concerto de despedida um pouco mais íntimo: foi no mês passado, no Museu do Fado. Entre o grupo de amigos presente estava a cantora Cristina Branco, que é uma fã do cantor que tornou conhecidos temas como Os Putos e Lisboa Menina e Moça.

“A minha mãe era superfã do Carlos do Carmo e tinha muitos discos, por isso ele foi um dos primeiros fadistas que eu ouvi, ainda muito nova”, recorda Cristina Branco que tem agora 46 anos. “Tenho uma grande paixão por ele”, diz, elegendo o disco O Homem na Cidade (1977) como a sua “grande referência” e “uma espécie de Bíblia” para todos os fadistas das gerações posteriore­s.

“A forma como ele diz as palavras é única”, diz Cristina Branco. Será esse “respeito enorme pelas palavras e pelos poemas” o que mais o distingue. “Além disso, também a forma como geriu sua carreira, sempre com uma grande amabilidad­e e um respeito muito grande pela vida artística.” A fadista não consegue contar as muitas vezes que já partilhou o palco com Carlos do Carmo mas recorda com carinho um concerto, no ano passado, em Lagoa, no auditório que se chama Carlos do Carmo, em que ele lhe pediu que interpreta­sse um fado da sua mãe, Lucília. “O Carlos pede e a gente faz”, diz. E assim foi: interpreto­u Loucura, numa versão muito própria.

A inteligênc­ia acima de tudo

Ricardo Ribeiro não consegue eleger uma música preferida de Carlos do Carmo. Gosta muito de o ouvir cantar o Fado Penélope eo Fado do Ultramar, ambos com letra de José

Depois deste concerto, Carlos do Carmo ainda vai editar um último disco que está a ser terminado.

Mário Branco, por exemplo. “Mas são tantas as músicas boas que é impossível escolher”, diz o fadista de 38 anos. “O Carlos tem um repertório fabuloso.”

Lembra-se de ser “muito catraio” e ouvir na rádio as Canoas do Tejo ea Gaivota. Mas nunca teve a tentação de imitá-lo ou de cantar o seu repertório. “Eu não tive uma influência muito direta do Carlos do Carmo mas ele foi sempre um fadista que eu tive num lugar especial, sobretudo pela maneira como desenvolve­u a sua carreira, como geriu os seus próprios passos e como, porque é muito inteligent­e, soube escolher as pessoas que o rodeavam, como o José Luís Tinoco, o Ary dos Santos e todos os outros, bons músicos e bons poetas que lhe aguçavam a sensibilid­ade.”

Ricardo Ribeiro admite que, apesar de ser de uma geração mais nova, sempre foi muito acarinhado pelos fadistas mais velhos e com Carlos de Carmo mantém uma relação que vai para além dos muitos palcos que já partilhara­m: “Temos muitas conversas, sobre o fado e sobre a vida. E ele tem sempre uma palavra que é importante, seja para elogiar ou para me ajudar a fazer melhor. Já me deu vários bons conselhos.”

Exemplo no fado, na canção, na vida

Em 2006, Marco Rodrigues apresentou o seu primeiro disco no Speakeasy, um bar que era gerido por Gil do Carmo, pai de Carlos do Carmo. O fadista apareceu lá nessa noite e o Carlos aproveitou para cumpriment­ar aquele que já era um dos seus ídolos e dar-lhe um disco. “Passado algum tempo ele ligou-me para me dizer que tinha gostado. Podia não o ter feito, mas fez questão de o fazer”, recorda o cantor de 37 anos. Foi o princípio de uma boa amizade. E quando editou o seu segundo disco, Marco teve “o atreviment­o” de convidar Carlos do Carmo para cantar com ele o tema Homem do Saldanha. “Ele aceitou logo”, recorda.

Hoje será a vez de Marco Rodrigues ficar na plateia a aplaudir Carlos de Carmo e de, “certamente”, ir dar-lha um abraço no final. “Ele não é só um grande fadista, é também uma referência da canção, tem temas lindíssimo­s como Estrela da Tarde e O Homem na Cidade. Um artista como o Carlos está ao nível de Amália, de Frank Sinatra, de Edith Piaff. Tudo o que ele faz é importante”, diz Marco Rodrigues, destacando ainda que Carlos do Carmo é também um exemplo “pela sua postura e forma de estar na arte e na vida”. “Antes de editar um disco novo, vou a casa dele para fazermos uma audição e ouvir a sua opinião”, conta. “Aprendo muito com ele e não é só sobre música.”

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Marco Rodrigues em casa de Carlos do Carmo ensaiando o Fado do 112 para o disco de duetos Fado É Amor (2013).
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Carlos do Carmo com Cristina Branco (à esquerda) e com Camané (á direita). O fadista veterano tem uma ótima relação com os mais novos com quem partilha regularmen­te o palco.

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