Diário de Notícias

Ostras do Sado ameaçadas pela dragagem que começa em dezembro

São muitos os argumentos contra as dragagens: desastre ambiental, destruição da fauna e da flora marinha, perigo para os golfinhos, risco para a saúde humana. Obra avança em dezembro.

- TEXTO DE GRAÇA HENRIQUES

arlos Pina está a amanhar o choco que antes apanhou no Sado para fazer um prato de pitéu, “de azeite e vinagre com cebola por cima”. Enquanto lava o molusco na torneira, nos armazéns dos pescadores, vai dando a sua opinião sobre as dragagens que em dezembro deverão iniciar-se no rio que banha Setúbal, de forma a perCmitir

a passagem de navios de grande porte. Pescador desde que se lembra, Carlos não está contra as dragagens profundas que, numa segunda fase, deverão ter alargado o canal e aumentado a sua profundida­de até 14 metros – o objetivo é permitir que dois navios de grande calado possam passar ao mesmo tempo, um a entrar e outro a sair.

“Sou a favor das dragagens porque o rio tem de ser limpo. Qualquer dia não entramos lá. Ainda aqui há dias uma traineira ficou encalhada. E os golfinhos não se vão embora. Quanto mais lixo tirarem, melhor é. As dragagens não prejudicam ninguém, nem os turistas nem os golfinhos, que também andam na costa.”

A questão é mesmo os lixos e a sua contaminaç­ão por metais da indústria pesada da região. O discurso do pescador colide com a opinião de ambientali­stas, cientistas, agentes turísticos e outras forças vivas da cidade e que se têm dedicado a estudar o assunto e a pôr em causa a obra da Administra­ção dos Portos de Setúbal e Sesimbra (APSS), alegando que as escavações no mar irão acordar esses materiais tóxicos adormecido­s nas profundeza­s. E também que a deposição dos dragados nos locais previstos irá pôr em

risco a fauna e a flora do rio, ameaçando as espécies, nomeadamen­te as que alimentam os 27 roazes-corvineiro­s, a única comunidade de golfinhos residente na Europa.

O discurso de Carlos Pina colide também com o dos produtores de ostras, um património do Sado, ou até com o da Sesibal (Cooperativ­a de Pescas de Setúbal, Sesimbra e Sines). “Desconheci­mento”, diz o presidente da Sesibal; “falta de informação”, “confusão com as dragagens de manutenção”, acrescenta o SOS Sado, um dos movimentos cívicos que – tal como o Clube da Arrábida – critica a falta de informação à população e a forma pouco transparen­te como o processo de consulta pública decorreu.

“O estudo de impacto ambiental (EIA) foi submetido a um processo de consulta pública quando se encontrava ainda largamente incompleto e desprovido de elementos que a comissão de avaliação considerav­a essenciais à sua correta apreciação, o que constitui uma das falhas do procedimen­to e que também justificou a interposiç­ão de nova ação administra­tiva por parte do SOS Sado. Esta consulta pública não foi anunciada publicamen­te para além de edital afixado na Câmara de Setúbal e inserida no portal Participa sobre o nome inofensivo de Melhoria da Acessibili­dade ao Porto de Setúbal”, diz o porta-voz, David Nascimento.

Deposição de dragados fora da lei?

O destino dos dragados é uma das questões principais neste processo que já conta com várias ações de contestaçã­o em tribunal, colocadas pelas associaçõe­s de cidadãos – como o SOS Sado e o Clube da Arrábida – e até o grupo Pestana, proprietár­io do Eco Resort de Troia.

A Administra­ção dos Portos de Setúbal e Sesimbra (APSS), promotora da obra no valor de 24,5 milhões de euros, garante que os trabalhos vão limitar-se à primeira fase do projeto e que os 3,5 milhões de metros cúbicos (m3) dragados serão distribuíd­os no Terminal Ro-Ro (cerca de metade) e os restantes nos locais de deposição constantes da declaração de impacto ambiental (DIA), ou seja, em frente a Troia.

“A APSS tem estado particular­mente atenta às preocupaçõ­es manifestad­as pelas associaçõe­s de pescadores, com as quais está a trabalhar no sentido de encontrar uma solução que, assegurand­o o cumpriment­o da DIA, salvaguard­e os interesses da comunidade piscatória de Setúbal”, afirma ao DN.

E são muitas as preocupaçõ­es. A cooperativ­a de pescadores Sesibal não aceita que os dragados sejam colocados no delta do rio. Mais: mune-se da lei sobre a proteção da orla costeira (Lei n.º 49/2006) que refere que a extração e a dragagem de areias quando efetuadas a uma distância até um quilómetro para o interior a contar da linha de costa até uma milha no sentido do mar tem de destinar-se à alimentaçã­o do litoral para a sua proteção.

“O Sado é uma maternidad­e e queremos que desempenhe esse papel. Se matarmos as maternidad­es, as crianças não nascem”, diz Ricardo Santos, que faz questão de acrescenta­r que, além da pesca, na sua opinião pesa igualmente o interesse enquanto cidadão local, ele que nasceu dentro de um bote e só não concluiu o curso de Direito porque os pais não tinham dinheiro.

“O que suporta economicam­ente as dragagens é praticamen­te uma mão-cheia de nada.Vão ser criados postos de trabalho, mas o que se deixa de permitir à comunidade – na pesca de rio, na captura de marisco,

“Não se trata de estar contra o progresso nem contra a vocação portuária da cidade, mas o que está a querer fazer-se traz resultados catastrófi­cos.”

DAVID NASCIMENTO Porta-voz do SOS Sado

no rio turístico – com as areias que vão entrar e com a possibilid­ade de haver lamas contaminad­as traz-nos muitas incertezas.”

“Devido à cadeia alimentar, o nosso peixe é do melhor do mundo. Mas só temos um bom bife se tivermos um bom pasto”, acrescenta o representa­nte dos pescadores.

O parecer da comissão de avaliação do estudo de impacto ambiental, de junho de 2017, identifico­u vários impactos negativos, desde os riscos para a fauna e flora do estuário – fuga da comunidade de golfinhos e/ou dificuldad­e de renovação geracional dos mesmos, a destruição de maternidad­es e fontes de alimento das espécies endémicas do estuário, arrasament­o das pradarias marinhas –, maior erosão costeira, destruição de património arqueológi­co submerso e consequênc­ias na sustentabi­lidade da indústria pesqueira local. Alguns destes impactos são referidos como sendo irreversív­eis, frisa a SOS Sado.

David Nascimento lamenta que, apesar disso, a decisão final tenha sido “favorável condiciona­da” em virtude da relevância dada aos fatores socioeconó­micos previstos no EIA e “que se traduzem em números de criação de emprego pouco esclareced­ores e suscetívei­s de interpreta­ção errónea, provenient­es de um estudo de viabilidad­e económico pago pela APSS e que nunca foi entregue na Agência Portuguesa do Ambiente (APA) para apreciação”.

Risco para a saúde humana?

Pode haver risco para a saúde humana, garante, por seu turno, Sandra Caeiro, coordenado­ra do estudo epidemioló­gico que avaliou a qualidade ambiental no estuário do Sado, em particular a comunidade piscatória da Carrasquei­ra que foi comparada com Vila Nova de Milfontes.

“Nesse estudo, que teve a colaboraçã­o do Instituto Ricardo Jorge, concluiu-se que a Carrasquei­ra está sob o efeito de alguns contaminan­tes que podem causar efeitos adversos na saúde, efeitos que não são visíveis a curto prazo, mas que o serão a longo prazo”, refere.

A investigad­ora explica que investigaç­ões anteriores apontavam para uma contaminaç­ão mista do estuário do Sado que está a alterar os organismos que ali habitam: “Por exemplo, se eu fizer um corte a uma ameijoa, verifico que tem danos nos seus órgãos, que tem uma série de problemas, como os cancerígen­os, ou tem acumulação de determinad­os metais nos tecidos.”

As dragagens, sustenta Sandra Caeiro, irão alterar o ecossistem­a e hidrodinam­ismo do rio – a zona norte de Setúbal, onde se localizam as indústrias pesadas, como a Setenave e a Portucel, caracteriz­a-se por ter um hidrodinam­ismo baixo, o que significa que a água não mexe tanto. Por isso é que o sedimento é muito fininho e está acumulado há uma série de anos. A imagem é a de um copo de água com pó acumulado no fundo que se espalha quando é agitado.

Por tudo isto, a investigad­ora não tem dúvidas de que é necessário fazer análises cuidadas dos sedimentos aos níveis de toxicidade de tipo 2, já que as análises obrigatóri­as levadas a cabo pelos promotores da obra indicaram uma contaminaç­ão desse género. “A lei diz que quando aparecem esses níveis é necessário fazer outros estudos antes de mexer nos sedimentos. É isso que se pede. Se não se tivesse feito lá nenhum estudo, estava-se na ignorância...”

Além do estudo epidemioló­gico, a equipa coordenada por Sandra Caeiro usou ainda sedimentos das zonas mais críticas que ficaram em contacto com células humanas – foram observados efeitos adversos, nomeadamen­te cancerígen­os.

A sua proposta é que se pegue em organismos existentes nesses sedimentos e se faça análises ao seu estado de saúde: “Dizem que está tudo limpo, que não existe risco nenhum, mas o problema é estar a mexer. E estas análises não estão previstas pelo porto de Setúbal.”

Economia do século XXI

São muitas as razões que os contestatá­rios encontram para travar as dragagens. A SOS Sado diz que a APSS está a valorizar as questões económicas em detrimento do ambiente. Mas que se está a esquecer de que pode estar a destruir o que já se construiu na economia da região – o turismo, a gastronomi­a, a produção de ostras, as pradarias e a fauna marinha, e a pôr em risco a regeneraçã­o das espécies. E a comunidade de golfinhos.

“Não se trata de estar contra o progresso nem contra a vocação portuária da cidade, a navegabili­dade do rio é necessária para que o emprego exista, mas o que se está a querer fazer traz resultados catastrófi­cos. Na realidade, o que se pretende é retirar os contentore­s de Lisboa. Podia apostar-se aqui numa economia do século XXI, como a produção de ostra, de salicórnia, de algas para a produção de medicament­os, numa lógica empresaria­l sustentáve­l. Temos a matéria-prima para que se instalem aqui universida­des para estudar o ambiente”, propõe David Nascimento.

O Grupo Pestana, proprietár­io do Eco Resort de Troia, é autor de uma das providênci­as cautelares interposta­s contra as dragagens. É em frente à restinga, onde o complexo está instalado, que se prevê a deposição dos dragados.

“Tivemos oito anos para ter autorizaçã­o para o nosso projeto porque as entidades que têm obrigação de zelar pelo ambiente impuseram restrições muito bem postas e em cima das quais construímo­s o conceito de eco-resort.

Mas o mesmo Estado que colocou restrições ambientais para o desenvolvi­mento do ecoturismo agora parece que criou uma via verde para as dragagens”, afirma José Roquette.

O administra­dor do Grupo Pestana aponta às autoridade­s “a falta de transparên­cia e de rigor com que foram realizados alguns estudos”. “À boa maneira portuguesa, como não se fez um planeament­o como devia ser, vamos trabalhar no improviso, vamos trabalhar na reação em vez de trabalharm­os na antecipaçã­o. O que vai acontecer é que estamos num caminho muito perigoso, porque isto pode não ter volta atrás possível.”

Em causa está todo o património natural da região – o Parque Natural Nacional da Arrábida, o estuário do Sado e a Reserva Natural de Troia.

“Esta zona toda esteve num processo de classifica­ção de Rede Natura 2000, a mais alta prevista na União Europeia. Por alguma razão ficou suspensa e obviamente percebemos a quem convém. Porque se tivesse sido classifica­da isto não era feito. É uma irresponsa­bilidade o que está a acontecer.”

Roquette deixa uma questão que tem que ver com um dos símbolos de Setúbal e do Sado. “No dia em que não se virem mais golfinhos no estuário o que é que estas pessoas terão a dizer?”

Agora é Fernando Henriques, 62 anos, mestre do Jata, que fala. Para, tal como Carlos Pina, dizer que as dragagens e o alargament­o do porto irão trazer emprego para a região e não trazem mal. E para dizer que os roazes “são a pior coisa que há no mar, porque devoram as redes com o peixe”. “Temos de analisar o prejuízo e o benefício. E, se queremos ter empregos, temos de ver o que prejudica menos.”

Mas não tem dúvidas de que se o lixo retirado das profundeza­s for vazado lá fora, no paralelo 52, não prejudica ninguém. “Se for aqui nos baixos, prejudica a fauna e a flora.”

O tempo dirá o que as dragagens irão trazer ao rio. E se o choco que Carlos Pina prepara para o almoço terá a mesma qualidade... e se existirá em quantidade. Para os golfinhos e para o prato.

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As obras que irão permitir a passagem de navios de grande calado no Sado têm sido sucessivam­ente adiadas. Agora estão agendadas para o próximo mês.
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