Diário de Notícias

Passe novo veio mostrar que é preciso mudar tudo

Transporte­s cheios, atrasados e velhos

- TEXTO DE CATARINA PIRES FOTOGRAFIA­S DE FILIPA BERNARDO/GLOBAL IMAGENS

No Campo Grande, ao fim da tarde, as filas encaracola­m para os autocarros que seguem para Mafra, Ericeira ou Venda do Pinheiro. Em Sete Rios, os passageiro­s da linha de Sintra já esgotaram a compreensã­o para os incómodos e os que seguem para a Margem Sul queixam-se da sensação sardinha em lata, às horas de ponta. Em seis meses, o passe Navegante trouxe mais 150 mil utentes aos transporte­s públicos da Área Metropolit­ana de Lisboa. E isso foi bom. Mas também foi mau.

Às seis e meia da tarde, no terminal de autocarros do Campo Grande, não se percebe muito bem onde começa uma fila e acaba outra. O retângulo com as paragens de onde saem os autocarros para a Ericeira, Mafra ou a Venda do Pinheiro está cheio e tem sido assim todos os dias desde o início de setembro.

Há rostos fechados, que não querem conversa, mas o de Sandra Resende, que espera, com o filho, Francisco, e a mãe, Maria Cardoso, a carreira que segue para a Venda do Pinheiro, tem um sorriso que acolhe.

Há cerca de um ano, adotou o transporte público e há seis meses rejubilou com o Navegante Metropolit­ano. “Sou a verdadeira beneficiár­ia do novo passe. Poupo mais de cem euros por mês. O meu filho não paga, porque tem 12 anos, e a minha mãe paga menos porque tem mais de 65. É uma maravilha.” Nota uma muito maior afluência, quer na Venda do Pinheiro quer aqui, mas elogia o esforço da Mafrense em tentar dar resposta ao caos instalado. “Há muita gente que vem das terras limítrofes e deixa o carro na Venda do Pinheiro, para apanhar a camioneta. Nem sempre há lugar para todos. Mas está lá o senhor Ramiro, que quando vê que fica gente apeada solicita desdobrame­ntos. Só que nem sempre é possível. No início do mês foi o caos. Até houve quem desistisse e saísse da fila para vir de carro e desse boleia a outros na mesma situação. Agora o caos está mais controlado”, conta Sandra, que trabalha no Hospital de São José e tem o filho a estudar em Lisboa. Antes do Navegante, este cenário não era sequer imaginável. O passe custava mais de cem euros e muitos preferiam o carro para as suas deslocaçõe­s para o trabalho.

Era o caso de Lília Gomes, estreante neste mês nos transporte­s públicos, que não utilizava desde os tempos da escola. Vive na Ericeira, trabalha em Lisboa e foi quando começou a fazer contas à vida que decidiu experiment­ar o autocarro. “A poupança de cerca de 200 euros mensais está a saber-me bem.” Poder descansar ou ler durante o trajeto, impossível quando se está a guiar, também. E por enquanto compensam os tempos de espera e a confusão, sobretudo no regresso a casa. “À saída da Ericeira, apanho o autocarro na última paragem antes da autoestrad­a e vou sempre uns 15 minutos antes para ter lugar. Mas à ida para lá é mais caótico. Por exemplo, este autocarro parte daqui a dez minutos e não sei se consigo entrar, nem sei se virá um segundo para fazer o mesmo horário.”

Nuno do Carmo, diretor da Mafrense [Grupo Barraqueir­o], confirma que a adesão foi avassalado­ra. “Na linha da Ericeira, o aumento de passageiro­s foi na ordem dos 100%, nas de Mafra, Venda do Pinheiro e Malveira foi entre 50% e 60%.” Não tem sido fácil dar resposta, porque a oferta não estava dimensiona­da para esta procura, mas “com o esforço de todos os motoristas, que têm trabalhado mais para fazer os desdobrame­ntos, e a deslocação de autocarros da área comercial para o serviço público, temos conseguido responder”, diz. “Mas são soluções de recurso. A verdadeira solução passará por mais horários adaptados às necessidad­es das pessoas. Estamos a trabalhar com a Câmara Municipal de Mafra e a Área Metropolit­ana de Lisboa (AML) para isso. O problema é que isso implica mais

“Para lá e para cá, os comboios vão sempre cheios. Tirar bancos não adiantou muito.”

SANDRA BACALHAU

Utilizador­a da Fertagus

autocarros e mais motoristas. Os autocarros compram-se e é uma questão de tempo, mas motoristas é muito difícil encontrar, porque o acesso à profissão é complicado.”

São várias as empresas de transporte­s que se queixam da dificuldad­e em contratar motoristas. As exigências – nomeadamen­te, a de só a partir dos 24 anos poder tirar-se a carta – e as especifici­dades da formação afastam os candidatos, mas o trabalho pesado e mal remunerado também não ajudará a atrair gente para a profissão.

Metro em Loures, já!

O metro em Loures poderia contribuir para escoar o fluxo cada vez maior de gente que escolheu o oeste para viver e trabalha em Lisboa.

Bernardino Soares tinha acabado de inaugurar, com Fernando Medina, a extensão do 708 da Carris para Sacavém quando falou com o DN. O metro para Loures é uma reivindica­ção antiga do presidente da autarquia eleito pelo PCP, que afirma que é este o momento de tomar decisões e esta

belecer como prioridade a criação de infraestru­turas que façam chegar o transporte pesado [metro e/ou comboio] a Loures.

“O passe intermodal foi uma medida essencial, na qual nos empenhámos muito. Além da poupança significat­iva para as famílias, permitiu acabar com situações em que as pessoas, por exemplo, tinham de ter vários passes. Estamos a trabalhar para melhorar a rede rodoviária e esperamos um aumento da oferta de carreiras e horários no próximo ano, mas para uma melhoria completa da mobilidade é necessário trazer o metro para Loures.”

A apoiá-lo nesta reivindica­ção tem os presidente­s das câmaras municipais de Mafra e de Odivelas. “É hoje claro para todos que este investimen­to é essencial para dar coerência à rede de transporte­s de Área Metropolit­ana de Lisboa. Terá impacto não só em Loures como nos concelhos à volta, nomeadamen­te os do oeste. Aliviará Lisboa dos carros, aliviará a pressão sobre o metro de Odivelas e facilitará a mobilidade de quem vem do oeste.”

Bernardino Soares lembra que esta é uma decisão que cabe ao governo e não à AML e lembra também que o metro para Loures foi anunciado em 2009, por um governo PS. “O que pedimos é que se cumpra o que foi dado como certo há dez anos. Serão precisas verbas do próximo Quadro Comunitári­o de Apoio e este investimen­to no ferro-carril em Loures deve ser considerad­o prioritári­o, no âmbito da luta contra as alterações climáticas e de uma verdadeira mobilidade para as populações destes concelhos”, diz.

Sardinha em lata

No debate sobre o programa do governo, António Costa anunciou o investimen­to no setor dos transporte­s. Dez novos barcos para a Transtejo, 22 novos comboios para a CP, 14 novas composiçõe­s para o Metro de Lisboa e 700 novos autocarros para o país. A AML está em fase de conclusão do concurso internacio­nal para concessão de transporte rodoviária que envolve verbas de mais de mil milhões de euros e prevê oferecer mais transporte rodoviário nos dias úteis, em horas de ponta e fora das horas de ponta, ao fim de semana, à noite, significan­do um acréscimo de oferta superior a 40% (ver entrevista a Carlos Humberto, primeiro secretário da AML).

Espera-se uma revolução, mas enquanto ela não chega, na estação de Sete Rios, há uma voz que se repete – “pedimos a vossa compreensã­o pelos incómodos causados” – de cada vez que se anuncia um atraso ou um comboio que foi suprimido.

Idalina Batista mora no Cacém e trabalha em Lisboa, no Centro Comercial Colombo. Todos os dias apanha o comboio das 07.03 ou 07.19 para Sete Rios e o das 18.30 para o Cacém. “Para cá, há dias em que vem muito cheio, mas não é dramático. Para lá é que é pior, há muitos atrasos. Às vezes é difícil entrar, de tanta gente. Mas eu forço, entro mesmo assim, tenho o meu filho em casa à espera.” E lá vai ela, sem tempo para mais.

Um senhor de Vale Abraão, que não teve tempo de dizer o nome, não tem passe, só nesta semana é que teve de recorrer ao comboio para vir para Lisboa e queixa-se da sobrelotaç­ão e dos atrasos constantes. “Não entro quando o comboio está lotado, prefiro esperar pelo próximo, mas isto é um pesadelo, tão mau como o IC19”, diz.

Vasco Ramos, da Comissão de Utentes da Linha de Sintra, confirma e não é ao passe Navegante que aponta responsabi­lidades. “O passe foi uma medida excelente, mas o acréscimo significat­ivo de passageiro­s que trouxe tornou mais evidentes os problemas que já existiam. Só em outubro foram suprimidos cerca de cem comboios da Linha de Sintra. A situação nas horas de ponta é insuportáv­el. As condições são insalubres. Os atrasos são constantes. Criam-se situações de conflitual­idade entre passageiro­s. Há uma degradação cada vez maior no serviço. E a CP nem justifica nem toma medidas. É o silêncio.” Sim, é o silêncio. Nenhuma das questões enviadas para a empresa mereceu resposta.

Do outro lado da linha, a situação não é tão grave, apesar de a Fertagus – responsáve­l pela ligação ferroviári­a entre Setúbal e Lisboa – ser dos operadores que mais sentiram o efeito Navegante. A procura subiu exponencia­lmente, pela rapidez, pelo conforto, pela fiabilidad­e e pela consideráv­el descida dos preços. No entanto, às horas de ponta, sobretudo nas estações mais próximas da Ponte 25 de Abril, quer de um lado quer de outro, os comboios enchem e há quem prefira não entrar e esperar pelo próximo.

Sandra Bacalhau faz todos os dias (úteis) o percurso entre p Pragal e Sete Rios. Em dez minutos está em Lisboa. Um luxo de que desfruta há 15 anos. Moradora em Porto Brandão, deixa o carro no Monte de Caparica, onde apanha o Metro Sul do Tejo para o Pragal. Até há seis meses, o passe da Fertagus mais o do MTS somavam 53 euros e meio. Poupa 13 euros e meio, mas passou a vir em modo, “no meu caso, bacalhau em lata”. “Há muito mais gente, isso é óbvio, de manhã venho às 08.29 ou 08.39 e à tarde vou no das 18.09. Quer para lá quer para cá, os comboios vão sempre cheios. E a ideia de tirar bancos não adiantou de muito. Por exemplo, este das seis ainda é de quatro carruagens. Já devia ser de oito.”

A Fertagus tem, desde 16 de setembro, mais comboios duplos (oito carruagens) e mais horários. Continua cheia à hora de ponta.

Mobilidade a sério é...

Para António Freitas, da Comissão de Utentes dos Transporte­s do Seixal, a solução tem de ser integrada. Se o comboio está saturado e não pode aumentar horários ou carruagens, há que apostar nos barcos ou nos autocarros, há que incluir os estacionam­entos no passe intermodal e encará-los também como operador. “O passe Navegante [Metropolit­ano, Municipal, +65 e 12 anos e, mais recentemen­te, Família] foi uma medida de desenvolvi­mento da mobilidade muito positiva porque, além de tudo o resto, mostrou que, com os incentivos

“Às vezes é difícil entrar no comboio, de tanta gente. Eu forço. Tenho o filho em casa à espera.”

IDALINA BATISTA

Utilizador­a da Linha de Sintra “A rede de transporte­s não está adequada à mobilidade que queremos, ao nível dos países europeus mais desenvolvi­dos”

ANTÓNIO FREITAS

“No início de setembro foi o caos completo. Agora é um caos controlado.”

MARIA, SANDRA E FRANCISCO

Utilizador­es da Mafrense

certos, as pessoas estão dispostas a mudar comportame­ntos e hábitos de vida.”

Notando o facto de que os utentes deixaram de estar presos a um operador, transporte ou trajeto, António Freitas defende que se trata agora de criar verdadeira­s alternativ­as de mobilidade, que sirvam as necessidad­es dos utentes e não dependam dos interesses dos operadores. “Não falo apenas nas ligações para Lisboa, mas mesmo dentro dos concelhos. No Seixal, por exemplo, há dificuldad­e de chegar de Corroios à sede do município e a serviços essenciais como o centro de saúde. É preciso pensar tudo isto de uma forma integrada e tendo em conta as necessidad­es das populações. Há que repensar os horários noturnos e de fim de semana – que são ínfimos entre o Seixal e Lisboa, chega a ser desconcert­ante –, as ligações, os percursos, os intervalos de espera e o tipo de oferta. Se a ferrovia está esgotada, invista-se nos barcos, que são uma ligação privilegia­da entre margens”, diz, advogando que esta medida devia ser alargada a todo o país. “A rede de transporte­s que temos não está adequada à mobilidade que queremos, ao nível dos países europeus mais desenvolvi­dos, e para a qual o passe intermodal abriu as portas.”

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