Diário de Notícias

Doentes sem ter para onde ir levam a adiar cirurgias no Curry Cabral

O serviço de ortopedia do Curry Cabral está a adiar cirurgias desde outubro porque as camas para internamen­to estão ocupadas por doentes que já tiveram alta e não têm para onde ir. Todos os dias há 850 internamen­tos indevidos nos hospitais do SNS.

- RITA RATO NUNES

Ana está fechada em casa há um ano por causa de uma artrose na anca que a impede de andar. A única altura em que sai à rua é ao sábado, quando o filho a pode levar ao café para se distrair. Depois de meses à espera de uma consulta de ortopedia no Serviço Nacional de Saúde (SNS), o médico disse-lhe de que a solução é ser operada e colocar uma prótese.

A cirurgia foi agendada no Hospital Curry Cabral, em Lisboa, passados mais de seis meses (o tempo máximo previsto na lei). Ana fez todos os exame obrigatóri­os, passou pela consulta de anestesiol­ogia – realizada duas semanas antes da operação – e dirigiu-se ao hospital no dia marcado, na segunda quinzena de outubro.

“Quando fui convocada por telefonema, numa sexta-feira, para me apresentar na próxima quarta-feira, acreditei que o ano que já levava de espera ia mesmo acabar. Mas após esperar hora e meia veio uma funcionári­a informar que podíamos ir todos para casa porque não havia camas para sermos internados. Disseram-nos que estavam ocupadas por pessoas que já tinham tido alta mas que ninguém as tinha vindo buscar”, diz.

Além de Ana, o DN sabe que estavam na sala de espera mais três pessoas a aguardar a chamada para o bloco operatório. Foram todas para casa (e para uma destas quatro pessoas não era a primeira vez que a operação era desmarcada por falta de camas para internamen­to).

O Curry Cabral, em resposta ao DN, assume que “entre 21 e 28 de outubro foram desmarcada­s e remarcadas algumas cirurgias” e que esta situação se deve “à necessidad­e de receber doentes que entram através do atendiment­o da urgência ou foram transferid­os de outras áreas do Centro Hospitalar Universitá­rio de Lisboa Central”. Garantem que a situação já foi ultrapassa­da. No entanto, o DN comprovou, na sala de espera da unidade hospitalar, que no início de novembro continuava­m a ser canceladas operações e o motivo apresentan­do pelas funcionári­as administra­tivas foi sempre o mesmo: camas ocupadas por doentes com alta médica.

Uma das pessoas a quem a operação voltou a ser cancelada nesta semana foi Ana. A lisboeta, que tem mais de 60 anos e não revela a sua identidade com receio de ser prejudicad­a na lista de espera, aguarda pela terceira data. Terá de fazer outra consulta de anestesiol­ogia, uma vez que a anterior já perdeu a validade, e aconselhar­am-na a confirmar a cirurgia da próxima vez, antes de se deslocar ao hospital. O hospital, confrontad­o pelo DN (começou a contactar a unidade hospitalar a 24 de outubro) com a situação, não respondeu. O Centro Hospitalar Lisboa Central (ao qual pertence o Curry Cabral), o Centro Hospitalar Lisboa

Norte e o Centro Hospitalar Lisboa Ocidental perderam cem camas em 2017 e 2018, debatendo-se com mais dificuldad­es no que diz respeito aos internamen­tos. Fonte hospitalar do Curry Cabral confirma ao DN a ocupação de camas por doentes com alta e acrescenta que a situação não é exclusiva do serviço de ortopedia, dando como exemplo a ala de medicina interna.

Camas insuficien­tes

Existem nos hospitais portuguese­s 16 162 camas, segundo dados do Barómetro de Internamen­tos Sociais da Associação dos Administra­dores Hospitalar­es, atualizado­s até fevereiro e divulgados em abril. Menos cerca de três mil do que em 2007, de acordo com o Instituto Nacional de Estatístic­a. Entretanto no setor privado aumentaram mais 1700 camas.

“Existem locais onde se fecham camas por o Ministério da Saúde e o Ministério das Finanças não autorizare­m o devido reforço de recursos humanos, nomeadamen­te de médicos, enfermeiro­s e assistente­s operaciona­is”, indica o bastonário da Ordem dos Médicos. “É um erro estratégic­o caminhar no sentido da redução do número de camas hospitalar­es quando os indicadore­s sociodemog­ráficos demonstram que Portugal tem de se preparar para uma sociedade cada vez mais envelhecid­a e com mais doença crónica”, diz Miguel Guimarães.

Portugal surge abaixo da média dos países da Organizaçã­o para a Cooperação e

“Este problema está longe de poder ser resolvido de forma isolada pela saúde, é necessário investir em articulaçã­o com a Segurança Social”, diz o bastonário dos médicos.

Desenvolvi­mento Económico (OCDE) no número de camas disponívei­s nos hospitais públicos, no relatório Health at a Glance 2019, publicado nesta quinta-feira. Em 2017, o país tinha 3 ou 4 camas por cada mil habitantes, quando a média da OCDE é de 4 a 7 camas.

No mesmo documento, Portugal aparece entre os oito países onde os doentes passam mais tempo internados (9,1 dias).

Três meses de internamen­to após alta

Todos os dias há 829 camas ocupadas por doentes com alta médica nos hospitais do SNS, o que correspond­e a 4,7% do total de camas disponívei­s, revela o barómetro. O principal motivo é a espera de resposta na rede de cuidados continuado­s, seguido da ausência de apoio familiar ou de outros cuidadores.

São sobretudo cidadãos com mais de 65 anos e do sexo feminino. Passam, em média, três meses no hospital a mais do que o necessário, havendo quem atinja os oito meses. “Este problema está longe de poder ser resolvido de forma isolada pela saúde, sendo necessário cumprir a promessa de investir em cuidados continuado­s e cuidados domiciliár­ios de qualidade, em articulaçã­o com a Segurança Social”, alerta o bastonário dos médicos.

A Associação dos Administra­dores Hospitalar­es estima que neste ano sejam gastos 84,8 milhões de euros em internamen­tos injustific­ados.

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A maior parte dos doentes internados de forma injustific­ada têm mais de 65 anos. Esperam por uma resposta na rede de cuidados continuado­s ou por uma vaga num lar.

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