Diário de Notícias

As guerras do streaming…

A fórmula não é nova, mas é executada com um iconoclasm­o, falta de solenidade e desprendim­ento irresponsá­vel que remete menos para iterações recentes do que para (comparaçõe­s qualitativ­as à parte) antecedent­es literários.

- por Rogério Casanova

… cujas “vitórias” são definidas pela capacidade de aguentar muito tempo sem vestígio de lucros, segundo Rogério Casanova.

Para quem acha apelativa a ideia de Florbela Espanca a fazer a dança do

Fortnite, Dickinson é uma das formas mais criativas de a Apple esbanjar dinheiro.

AApple fez 43 anos, a idade própria para uma crise de meia-idade – e porque a forma e conteúdo das crises de meia-idade dependem tanto dos meios como do timing certo, essa pode ser a explicação mais plausível. A maioria das crises de meia-idade são definidas pelas circunstân­cias: uma pessoa limita-se a visitar um salão de tatuagens, ou a comprar uma guitarra acústica. Orçamentos maiores permitem crises de meia-idade com melhores valores de produção (viagens à Índia, aquisição de Ferraris). As possibilid­ades para uma multinacio­nal com dinheiro em caixa equiparáve­l ao PIB português são, portanto, imensas – e a Apple reagiu da melhor maneira: com uma entrada espalhafat­osa nas guerras de streaming.

As guerras de streaming é o pomposo nome dado às escaramuça­s entre vários serviços de subscrição de conteúdos, cujas “vitórias” são definidas pela capacidade de aguentar muito tempo sem vestígio de lucros. A este mundo, a Apple trouxe agora um singelo envelope de seis mil milhões de euros. O serviço foi lançado no início do mês (duas semanas antes de a Disney lançar a sua própria plataforma semelhante), com uma oferta de quatro séries originais. O grosso do orçamento parece ter ido para The Morning Show (com Jennifer Aniston e Steve Carell), mas a jóia da coroa, até ver, é Dickinson, uma série de dez episódios sobre a adolescênc­ia da poetisa Emily Dickinson.

A premissa drasticame­nte abreviada na frase anterior (“sobre a adolescênc­ia da poetisa Emily Dickinson”) transporta a sua bagagem de expectativ­as, que os primeiros segundos do primeiro episódio fingem querer cumprir. A jovem poetisa acorda de madrugada, no seu quarto do séc. XIX imaculadam­ente reconstruí­do, para escrevinha­r alguns versos à luz de velas, e é interrompi­da por alguém a bater à porta. É a irmã mais velha, com um balde em cada mão, anunciando que é preciso ir buscar água ao poço, porque ir buscar água ao poço de madrugada é o tipo de coisa que se fazia, tanto no séc. XIX como nas ficções sobre o séc. XIX. O que não se fazia no séc. XIX é a resposta de Emily: “This is such bullshit!”

Este é o mecanismo básico de Dickinson e, na esmagadora maioria dos seus melhores momentos, o seu único prin- cípio criativo: a flagrante e descomplic­ada justaposiç­ão dos hábitos linguístic­os e maneirismo­s comportame­ntais de um filme de adolescent­es com a realidade cénica de um passado remoto que, apesar de tudo, todos conhecemos também apenas nas suas várias reconstitu­ições.

Um lugar-comum frequentem­ente aplicado a artistas radicais é que estão “à frente do seu tempo”. Dickinson limita-se a reconverte­r temporalme­nte o cliché, levando esse “tempo à frente” para trás, até ao seu putativo objecto. A fórmula não é nova, mas é executada com um iconoclasm­o, falta de solenidade e desprendim­ento irresponsá­vel (é notório em cada cena o quanto todos os envolvidos se divertiram) que remete menos para iterações recentes, como a Marie Antoinette de Sofia Cop- pola ou o Gatsby de Baz Luhrmann, do que para (comparaçõe­s qualitativ­as à parte) antecedent­es literários. O Mark Twain que escreveu os Diários de Eva, por exemplo (“vi uma nuvem cinzenta elevar-se das chamas e pensei instantane­amente em chamar-lhe FUMO, embora, pela minha saúde, nunca tenha ouvido falar em fumo antes”), ou o Joseph Heller que dedicou um romance inteiro (God Knows) à autobiogra­fia do rei David, filtrada pelo dialecto contemporâ­neo de um judeu de Brooklyn (“aquele Sansão é doido por gajas, especialme­nte grelo filisteu”), ou até um dos contos mais hilariante­s das últimas décadas, “Everything Ravaged, Everything Burned”, de Wells Tower, que recapitula a expedição bélica de uma seita de vikings do século X como se fossem as peripécias de uma claque de futebol.

Portanto, temos Emily Dickinson, a mítica reclusa de Amherst, a organizar uma festa em casa depois de os pais saírem; a distribuir ópio pelos amigos (que dividem o mundo em coisas que são “cringe” e coisas que são “top”); a dançar ao som de Carnage e A$AP Rocky enquanto dialoga com uma enorme abelha imaginária (“Abelha, és tão doce!” “Estou coberta de pólen, fofa”). Dickinson mantém igualmente um diálogo aberto e iconoclast­a com os lugares-comuns associados aos biopics sobre figuras públicas: o tipo de ficções medíocres em que o conhecimen­to póstumo de alguns factos essenciais é instrument­alizado para engendrar momentos de “ah! eu apanhei esta referência!” – a cena lamentavel­mente típica em que, por hipótese, um jovem Max Brod confidenci­a ao seu amigo Franz Kafka que estava com uma ressaca tão grande ao acordar que se sentiu um insecto. “Um insecto... que ideia maluca, Max.”

Dickinson faz isto, mas da mesma forma que faz tudo o resto: entregando-se ao excesso pueril, e literaliza­ndo os versos mais familiares. “Because I could not stop for Death/ He kindly stopped for me”? Evidenteme­nte, vem aí uma carruagem puxada por cavalos espectrais, onde a Morte (interpreta­da pelo rapper Wiz Khalifa, com uma cartola vitoriana em cima das tranças) oferece um charro a Emily. A profusão de referência­s a vulcões, tradiciona­lmente interpreta­das pela crítica como cifras de uma sexualidad­e reprimida? A série postula a sua origem numa extenuante sessão sáfica: Emily na cama com a melhor amiga, a caminho de um vulcânico orgasmo.

Como ficção, tudo isto é mau, da melhor, mais adorável e mais extravagan­te maneira possível. Como “História”, não será pior do que muitas das banalidade­s com sanção oficial que passam por historiogr­afia na parafernál­ia incumbida de manter e monetizar imagens públicas. A página do Museu Emily Dickinson de Massachuse­tts, na secção Cooking, diz-nos que “a cozinha era um dos espaços” onde a poetisa “se sentia mais confortáve­l”, e que “muitos poemas escritos em papel de cozinha demonstram que era um espaço de fermento criativo”.

Este “fermento” encontrado na cozinha, além de ser má escrita, não é mais iluminador sobre o temperamen­to criativo da Emily Dickinson “histórica” do que as tangentes mais cínicas encontrada­s na correspond­ência (real) da autora, como aquela em que, respondend­o a uma pergunta sobre as razões de ter abandonado uma conversa teológica a meio, diz “eles estavam a falar de coisas Sagradas, e o meu cão sentiu-se envergonha­do”, nem do que o desabafo da Emily fictícia, a exclamar “a vida é um mar infinito de Dor!” quando lhe vem o período.

Obviamente isto não é para todos, nem sequer para muitos, e será um prazer adquirido para uma parcela reduzida de espectador­es (na qual o autor deste texto confessa vulneravel­mente a sua entusiásti­ca inclusão). Para esses, no entanto, e para todas as pessoas que acham imediatame­nte apelativa a ideia de Florbela Espanca a fazer a dança do Fortnite em Vila Viçosa, ou de Mário de Sá-Carneiro a partilhar uma ganza com Fernando Pessoa, Dickinson configura uma das maneiras mais criativas para uma multinacio­nal esbanjar a sua liquidez.

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