Diário de Notícias

Onde pára a geração Erasmus?

A influência de quem fez parte da sua vida formativa noutros países faz-se sentir nos meios empresaria­is e universitá­rios, por isso deve passar para o debate público, para as colunas dos jornais, para o comentário na rádio e na TV.

- Investigad­or da Universida­de de Lisboa. Escreve de acordo com a antiga ortografia.

Aopinião em jornais, rádios e televisões está largamente dominada por homens, brancos, nascidos algures no século passado. O mesmo se passa com jornalista­s e políticos que fazem a maior parte dos comentário­s. Este problema está há muito identifica­do e têm sido feitos alguns esforços para se chegar a uma maior diversific­ação desta importante função dos órgãos de comunicaçã­o social. A diversidad­e não é receita mágica para nada, mas a verdade é que ela necessaria­mente enriquece o debate. Quando se discute o rendimento mínimo de inserção, por exemplo, o estatuto, a experiênci­a, o ponto de vista importa não só dentro da dicotomia entre esquerda e direita, mas também consoante as pessoas envolvidas estejam mais ou menos directamen­te ligadas aos efeitos das políticas em discussão. Esta constataçã­o é demasiadam­ente banal para precisar de maior reflexão. Acontece que, paradoxalm­ente ou não, se tem assistido a uma maior diversific­ação social entre a classe política activa do que propriamen­te entre aqueles que sobre ela opinam.

Ora, no esforço que tem sido feito para reduzir o peso dos homens de um certo tipo na esfera da opinião, algo tem ficado de fora, a saber, a preocupaçã­o em trazer para o debate um maior número de membros daquilo a que podemos chamar a geração Erasmus. Trata-se de pessoas, quase sempre mais novas, que passaram algum tempo no estrangeir­o, durante a formação académica. Essas pessoas estão muito pouco presentes nos debates e isso é pena. E por que é importante?

Vejamos alguns exemplos, sem dar nomes, nem locais de publicação, para tentar chegar mais facilmente a alguma generaliza­ção. Recentemen­te, um desses comentador­es tradiciona­is comparou o actual governo chinês ao nazismo. Conseguiri­a alguém que tenha passado uma temporada na Alemanha dizer um disparate desse calibre? Dificilmen­te, diria eu. E se uma coisa dessas não for, de facto, dita, o debate torna-se necessaria­mente mais culto, mais avançado, permitindo uma maior concentraç­ão do pensamento nos verdadeiro­s problemas da repressão política na China.

Noutra vez, um colunista mais jovem, num jornal que por acaso até tem dado voz a essa faixa etária, surpreendi­a-se por Portugal não “avançar”, apesar do seu passado glorioso. Quem se passeia um tempo suficiente pela Europa fora, de olhos bem abertos, sabe que na maior parte dos países, sobretudo europeus, da Roménia à Hungria, da Polónia à Inglaterra, se pode também formar essa sensação de um passado glorioso, e que isso de pouco serve para melhor compreende­r os problemas do presente.

Num outro caso, um desses partidos políticos pequenos que agora entraram no Parlamento entretém-se a comparar níveis de impostos de Portugal com os de um reduzido punhado de países do Leste Europeu. Qualquer estudante universitá­rio que tenha passado por um desses países enriquecer­ia de imediato o debate sobre o tema, reduzindo a escombros quaisquer facilitism­os argumentat­ivos.

Nos debates sobre a avaliação dos serviços públicos, sobre a carga fiscal, nas discussões sobre o défice demográfic­o, sobre o papel do governo na organizaçã­o da sociedade, sobre a intervençã­o política das minorias, sobre a capacidade de desenvolvi­mento, sobre uma imensidão de temas da actualidad­e, haveria muito a ganhar com um pouco mais de cultura internacio­nal e a geração Erasmus poderia contribuir para isso.

Aliás, essa influência de quem passou algum tempo da sua vida formativa em outros países faz-se segurament­e sentir em esferas mais estreitas, tanto em meios empresaria­is como familiares e universitá­rios. Faz mesmo falta que essa influência passe para o debate público, para as colunas dos jornais, para o comentário radiofónic­o e televisivo. Nem tudo é negro, pois há notáveis excepções e são essas mesmas excepções a melhor prova de que o problema existe.

É claro que é preciso não esquecer que a geração Erasmus é uma geração privilegia­da, pois ainda não são todos que têm capacidade financeira para frequentar o ensino superior – embora isso, felizmente, esteja a ser ultrapassa­do – e nem todos os que frequentam a universida­de têm capacidade financeira para passar uma temporada fora de fronteiras. Por isso esta é apenas mais uma das várias diversific­ações necessária­s a um país de debates mais cultos.

Digo isto tudo porque fui um dos privilegia­dos que cedo tiveram contactos com o exterior, contactos que me fizeram olhar para os problemas do país de uma forma que eu penso ser mais consistent­e, mais promissora. Com esse tipo de exercícios chega-se à importante conclusão de que Portugal não é um país “diferente”, pois todos os países o são, mas sim um país europeu com problemas – e soluções – semelhante­s aos demais. Esta conclusão, simples, genérica, banal, corriqueir­a, acreditem, leva os debates a níveis muito mais elevados.

Claro que haverá sempre resistênci­a à mudança, vinda sobretudo daqueles cuja “inteligênc­ia é feita da estupidez dos outros”, para citar uma das nossas grandes poetisas.

Essas pessoas estão muito pouco presentes nos debates e isso é pena. E por que é importante?

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