A última tentação cinéfila
O ator Willem Dafoe é um dos homenageados do Lisbon & Sintra Film Festival: entre os seus títulos mais emblemáticos inclui-se A Última Tentação de Cristo, de Martin Scorsese, filme gerado num contexto de produção de Hollywood que já não existe.
Willem Dafoe, americano, 64 anos, é um ator gloriosamente inclassificável. Não encaixando no típico estatuto de “estrela”, também nunca se deixou devorar por qualquer imagem estereotipada (à maneira de um Robert Downey Jr., talento invulgar há mais de uma década desperdiçado na personagem de Homem de Ferro dos filmes da Marvel).
A versatilidade de Dafoe faz que, numa filmografia de mais de uma centena de títulos, haja momentos dispensáveis. Ainda assim, todos eles refletem uma disponibilidade criativa e um genuíno sentido de risco raros no universo dos atores, americanos ou não. O ciclo de homenagem que lhe está a ser dedicado pelo LEFFEST (a decorrer até dia 24) é sintomático das suas qualidades. Na sua didática brevidade, inclui mesmo dois filmes preciosos, muito pouco vistos: Viver e Morrer em Los Angeles (1985), policial apocalíptico de William Friedkin, e Auto Focus (2002), de Paul Schrader, admirável retrato interior da televisão dos EUA nos anos 1960-70 que, além do mais, nunca teve estreia comercial no nosso país.
Exemplo radical dos riscos que Dafoe tem sabido correr encontramo-lo em A Última Tentação de Cristo (1988), de Martin Scorsese, também incluído na programação do festival. Três décadas depois, a memória das suas atribulações “polémicas” não basta para compreendermos a origem filosófica e as motivações afetivas do trabalho de Scorsese. Não se trata, de facto, de um medíocre objeto de “contestação” religiosa, desrespeitador das crenças seja de quem for. A sua perturbação começa no facto de o autor se situar, convictamente, no interior da própria religião que encena (ou reencena, já que estamos perante uma personagem presente em todas as épocas da história do cinema).
O regresso a A Última Tentação de Cristo adquire novos e pertinentes contornos simbólicos através de declarações recentes de Scorsese, considiversidade derando que os atuais filmes de super-heróis, nomeadamente com chancela Marvel/Disney, já “não são cinema”. O seu ponto de vista tem suscitado muitas reações mais ou menos severas (inclusive de Robert Downey Jr.), quase todas enredadas num maniqueísmo pueril entre “bom” e “mau” cinema. De tal modo que o próprio Scorsese decidiu sistematizar as suas ideias num magnífico artigo publicado em The New York Times (4 de novembro). No centro da sua argumentação está um duplo reconhecimento: primeiro, que os filmes de super-heróis resultam da aplicação de fórmulas de produção e narrativa sem risco, ignorando o “confronto com o inesperado” que o cinema sempre procurou; segundo, que tais filmes detêm um poder de ocupação das salas de todo o mundo que leva à marginalização de tudo o que é diferente, destruindo a própria cinematográfica (e, acrescento eu, deseducando os espectadores para essa mesma diversidade).
Qual a relação desta discussão com A Última Tentação de Cristo? Pois bem, este é um filme gerado no coração de Hollywood, com chancela de um grande estúdio (Universal Pictures), parecendo difícil imaginar que, agora, algum grande estúdio desse luz verde a semelhante projeto. É essa a tragédia: a indústria audiovisual mais poderosa do mundo está a ceder a uma lógica normativa que pode anular a versatilidade artística e comercial que define mais de um século da sua (e da nossa) história.
Sintoma esclarecedor: o projeto do mais recente filme de Scorsese, O Irlandês, foi rejeitado pelos estúdios de Hollywood, acabando por ser financiado por uma plataforma de streaming, a Netflix. O que, entenda-se, nos conduz a outra tragédia dos nossos dias: a Netflix dá-se ao luxo de não exibir o filme nas salas de muitos países, incluindo Portugal, aliás nem sequer parecendo empenhada em promover minimamente o seu “produto”. No respetivo site, gastam-se meia dúzia de linhas (literalmente!) para se concluir que se trata de um “aclamado filme de Martin Scorsese”. Sinal dos tempos: com a “aclamação” virtual morre o gosto cinéfilo.