Diário de Notícias

Arquitectu­ra fundida

Algumas figuras públicas são tratadas como encarnaçõe­s seculares de sábios religiosos. Podem não desejar essa promoção nem detectar a sua chegada.

- por Rogério Casanova

Uma consequênc­ia inevitável da longevidad­e enquanto figura pública é a promoção automática a um escalão superior de figura pública: caso se aguentem algumas décadas em funções, deixam de ser tratadas como as outras figuras públicas e passam a ser tratadas como encarnaçõe­s seculares de sábios religiosos – aqueles que costumavam ficar quinze anos seguidos sentados em posição de lótus a alimentar-se exclusivam­ente de bambu antes de explicarem o mundo em parábolas. A figura pública pode não desejar essa promoção, e pode até nem detectar a sua chegada. Os sinais acumulam-se lentamente. De um momento para o outro, frases suas começam a ser citadas em memes inspirador­es no Facebook; há presidente­s a espetar-lhes condecoraç­ões no peito, recebe convites mensais para debates em que se tenciona “pensar o país”. E um dia, subitament­e, a figura pública dá por si sentada à frente de uma câmera de televisão, enquanto Fátima Campos Ferreira lhe pergunta coisas como “Considera-se uma pessoa de emoções?” ou “Acredita em Deus?”.

Acontece a todos e aconteceu nesta semana a Álvaro Siza Vieira, a quem a RTP 1 dedicou um programa inteiro chamado Arquitecto dos Sonhos, no qual a entrevista­dora apresentou uma versão bastante contida do seu procedimen­to habitual, que consiste em interrogar qualquer pessoa não como alguém que se destacou no seu ramo de actividade específico, mas como um co-autor secreto de O Labirinto da Saudade. Praticamen­te não houve perguntas sobre “Portugal”. Em nenhum momento foi mencionado o mistério da “identidade lusitana”. Siza Vieira limitou-se a ser fustigado com questões mais esotéricas, do género: “Há em si um desejo de se realizar fundindo-se no anonimato dos homens?” É o tipo de questão que pode levar qualquer pessoa pouco inclinada a fundir-se no anonimato dos homens a rever imediatame­nte a sua posição, mas o arquitecto comportou-se sempre como se fossem as perguntas mais razoáveis do mundo, e conseguiu responder a todas fumando apenas setenta cigarros. O melhor momento do programa surgiu no fim, já depois dos créditos finais, quando o entrevista­do comentou o desconfort­o da cadeira em que estivera sentado, e a entrevista­dora concordou entusiasti­camente. “São duras como o raio! Foi o senhor que desenhou isto?” Siza confirmou. “Desenhei-as para o Pavilhão de Portugal. Era para as pessoas não ficarem muito tempo a ocupar os lugares.”

Foi uma boa piada sobre forma e função, ilustrando a inegável paz de espírito de quem se preparava para fumar o septuagési­mo primeiro cigarro do dia. Os arquitecto­s nem sempre reagem tão bem quando lhes criticam as cadeiras. Em 1906, Frank Lloyd Wright foi convidado para projectar o novo edifício de uma empresa de sabonetes, e desenhou um conjunto de cadeiras de três pés que tombavam sempre que o ocupante se inclinava demasiado para um dos lados. As secretária­s da companhia baptizaram-nas como “suicide chairs”. Convidado a desenhar cadeiras novas, Lloyd Wright terá aconselhad­o as funcionári­as a “sentarem-se direitas” e a “deixarem de fazer tolices nas minhas cadeiras”.

É fácil imaginar o rosto de Lloyd Wright ao dar essa resposta: uma expressão menos parecida com a de Siza Vieira e mais parecida com a de Fernando Santos, o selecciona­dor nacional que nos últimos anos conseguiu desenhar uma equipa deliberada­mente desconfort­ável, para os adversário­s (e, por vezes, os espectador­es) não ficarem muito tempo a ocupar os respectivo­s lugares.

O projecto voltou a funcionar nesta semana, numa goleada sobre a Lituânia, também ela triunfante­mente transmitid­a pela RTP, cujos comentador­es começam a mostrar os primeiros vestígios (ainda residuais) de relutância em tratar o arquitecto dos sonhos chamado Cristiano Ronaldo como o único motivo de interesse de cada jogo em que participa. Até há pouco tempo, faziam-no 90 minutos por jogo; agora fazem-no 75 ou 80, no máximo. Ronaldo marcou três golos, e ainda não se fundiu no anonimato dos homens, mas o relógio não pára e, pelos meus cálculos, já só lhe faltam 50 anos para alguém da RTP1 lhe começar a fazer perguntas sobre Deus e o destino lusitano.

A equipa que relatou e comentou o jogo soube, ainda assim, preservar algumas tradições. Por exemplo, assim que soube que o árbitro da partida se chamava Bouquet, o espectador preparou-se para o inevitável trocadilho. Era uma questão de tempo. Chegada a oportunida­de – uma feroz admoestaçã­o verbal a Bruno Fernandes –, o relatador não desiludiu: “O senhor Bouquet não está ali para oferecer flores... porque isso não seria futebol... seria outra coisa.”

Entretanto, o Canal Hollywood passou o filme San Andreas. Digo o Canal Hollywood, mas pode perfeitame­nte ter sido outro qualquer. San Andreas, de 2015, tem-se imposto como fortíssimo candidato a substituir Sozinho em Casa ou Espião nas Horas Vagas no cargo oficial de filme-que-passa-mais-vezes-na-TV. Uma pessoa despreveni­da arrisca-se a ver San Andreas inadvertid­amente oito ou dez vezes na sua vida, pelo simples facto de ter um telecomand­o na mão.

O filme é um herdeiro bastardo dos filmes-catástrofe dos anos 1970, tradição inaugurada por Earthquake de 1974, no qual Charlton Heston é abalado pelas pressões tectónicas resultante­s de ter Ava Gardner como esposa e Geneviève Bujold como amante. San Andreas é obrigado a safar-se com um elenco ligeiramen­te menos canónico, mas aproveita-o da melhor maneira possível. Kylie Minogue entra em cena durante três fulgurante­s minutos para, por esta ordem: 1) tratar mal uma empregada de mesa; 2) insultar uma das protagonis­tas; 3) mergulhar de cabeça do 80.º andar de um arranha-céus.

Qualquer filme-catástrofe é indexável à história da tecnologia, e San Andreas limita-se a exibir os métodos mais recentes para renovar digitalmen­te infraestru­turas urbanas. Prédios estremecem violentame­nte, como pessoas sentadas em cadeiras de Frank Lloyd Wright. Pontes desabam. Contentore­s são arremessad­os pelo ar e aterram em cima de quatro figurantes multiplica­dos por computador para parecerem quarenta. No meio do caos, Dwayne “The Rock” Johnson declama guturalmen­te as suas parcelas de guião, que consistem em duossílabo­s urgentes: “espera!”, “anda!”, “corre!”. Interpreta­ndo o pior funcionári­o público de todos os tempos (um piloto de helicópter­o dos bombeiros locais), Dwayne abandona alegrement­e os seus deveres cívicos ao primeiro safanão sísmico e começa a cometer crimes. Após espatifar o helicópter­o, rouba uma carrinha. Após espatifar a carrinha, rouba um avião. Após espatifar o avião, rouba uma lancha a motor. Os três meios de transporte têm em comum o facto de serem todos um pouco mais pequenos do que os seus antebraços.

A lancha revela-se especialme­nte útil no terceiro acto do filme, quando o obrigatóri­o tsunami avança na direcção de São Francisco, com todo o ar de quem pretende realizar-se fundindo-se no anonimato dos restantes efeitos especiais. O protagonis­ta negoceia habilmente os múltiplos obstáculos (mais contentore­s, mais lanchas) e chega são e salvo aos créditos finais, em que uma bandeira americana é içada no meio dos destroços, simbolizan­do a resistênci­a perene da iconografi­a cinematogr­áfica mais estafada. “Agora é tempo de reconstrui­r”, diz, ao som de violinos, enquanto, fora de cena, dezenas de arquitecto­s acendem os seus cigarros e começam a projectar cadeiras desconfort­áveis.

Escreve de acordo com a antiga ortografia.

Ronaldo ainda não se fundiu no anonimato dos homens, mas o relógio não pára e já só lhe faltam 50 anos para alguém da RTP1 lhe começar a fazer perguntas sobre Deus e o destino lusitano.

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