Diário de Notícias

O reino da estupidez

Nos 30 anos da queda do Muro de Berlim, convém lembrar que ainda hoje existe um muro em Belfast a separar católicos e protestant­es.

- por António Araújo

Oseu filme de juventude era Zulu, uma fita com Michael Caine que mostrava as tropas britânicas a serem flageladas por um exército africano disciplina­do e coeso. Vi a sequela desse filme com o meu pai, no cinema Monumental: Alvorada Zulu estreou-se nos idos de 1979, já Bobby Sands liderava os protestos no interior de uma prisão de segurança máxima na Irlanda do Norte.

Três anos antes, em 1976, os presos do IRA tinham iniciado o “protesto dos cobertores”, recusando-se a vestir os uniformes prisionais e andando nus pelos corredores, abrigados apenas com as mantas das suas celas. Politicame­nte, era um gesto de relevo: se acaso tivessem aceitado usar a farda da prisão, estariam a admitir o estatuto de presos de delito comum que os ingleses lhes queriam impor. Daí o blanket protest, a que se seguiu, em 1978, o dirty protest ou no-wash protest. Nessa altura, quando Bobby Sands já estava encarcerad­o nos H-Blocks da prisão de Maze, os reclusos do IRA recusaram-se a sair das celas para tomar banho e para esvaziar os baldes higiénicos. Pouco antes, e por causa de uma rixa com um guarda, tinham destruído toda a mobília do interior das celas.

Agora, decidiram espalhar os excremento­s pelas paredes, tornando os dormitório­s piores do que pocilgas, com um cheiro nauseabund­o que fazia muitos presos vomitarem tudo o que comiam e ficarem prostrados no meio daquela imundície toda, com febres altíssimas e doenças várias, na companhia de insectos rastejante­s. As cartas que enviavam para casa ou para a sede do Sinn Féin em Belfast tinham um odor de tal forma horrível que levava vários dias a passar, e um droguista mais generoso chegou a distribuir um perfume francês caro pelas mulheres dos reclusos. As autoridade­s prisionais lavavam as celas com jactos de água, pulverizav­am-nas com desinfecta­ntes poderosos, mas os trezentos presos nacionalis­tas voltavam a sujá-las de cima abaixo: tecto, paredes, chão.

O arcebispo de Armagh visitou Maze na época e disse que só tinha visto algo parecido nas favelas mais pobres e nos piores bairros de lata de Calcutá.

Robert Gerard Sands nascera em Março de 1954, numa época em que o declínio da indústria naval e o crescente desemprego aumentaram dramaticam­ente as tensões entre católicos e protestant­es, adensando um longo historial de décadas de violência e ódio. O mais grave problema era o da habitação: em cada dez casas de Belfast, três estavam inabitávei­s e uma parcela substancia­l da minoria católica vivia nos bairros mais miseráveis da cidade.

A mãe de Bobby sempre escondeu a sua religião, mas os vizinhos protestant­es descobrira­m – e começaram a ameaçá-la. A família Sands mudou várias vezes de residência, Bobby foi vítima de inúmeros ataques e de constante bullying. Saiu da escola aos 15 anos, tentou a sorte no ensino técnico, acabou empregado numa fábrica de autocarros de onde teve de fugir à pressa devido às ameaças de morte dos seus colegas unionistas. Do lado dos republican­os, era também desprezado devido à sua paixão pelo futebol, um desporto inglês, que Bobby preferia ao futebol gaélico e aos jogos tradiciona­is irlandeses (“you’re a fucking soccer dog”, rosnavam-lhe os amigos).

Em 1966, as comemoraçõ­es do 50.º aniversári­o da batalha do Somme reacendera­m os ânimos: os unionistas lembraram a aliança entre os republican­os irlandeses e o Kaiser na Primeira Guerra, os militantes do IRA respondera­m com uma intensa campanha bombista que fez ir pelos ares a estátua de Nelson em Dublin. A polícia e o exército ingleses ripostaram em força, disparando ao acaso: as balas perdidas mataram uma criança de 9 anos no quarto da sua casa, pedaços do cérebro ficaram a escorrer nas paredes ensanguent­adas. Numa exibição de rebeldia, Bobby deixou crescer o cabelo e passou a vestir jeans, tornou-se um marginal sem emprego fixo nem ocupação conhecida. Durante a juventude esteve sempre ligado a uma organizaçã­o ou outra, uma medida elementar de autodefesa no meio de um ambiente hostil e, aos poucos, aproximou-se do IRA. Os pais opuseram-se, Bobby saiu de casa e passou a dormir onde calhava.

Em 1972, a morada dos pais foi alvo de um feroz ataque de uma milícia unionista, o casal Sands teve de se mudar para um bairro católico mais seguro. Foi por essa altura que Bobby assistiu à primeira reunião do IRA, tornando-se militante logo no dia seguinte. Em Outubro de 1972, foi preso pela primeira vez, por posse de armas proibidas. Tinha 16 anos e, até à morte, nunca voltou a passar um Natal em casa. Desde que entrou na prisão aos 17 anos e até ao dia em que morreu com 27 anos, Bobby Sands só viveu seis meses em liberdade. Um terço da sua vida foi passado atrás das grades, com uma pena severa em 1977, após um atentado à bomba que terminara numa acesa troca de tiros com a polícia.

A vida de Bobby Sands seria igual à de outros operaciona­is da luta armada se não tivesse ocorrido a histórica greve da fome de 1981, que culminou na morte trágica de dez membros do IRA. Não era a primeira vez que os presos irlandeses recorriam a esta forma de protesto, mas nunca existira uma greve da fome com tal dimensão. Pouco antes, alguns militantes destacados, como Martin Meehan e, mais tarde, Brendan Hughes, tinham decidido suspender as suas greves da fome, o que deixou Bobby Sands enfurecido perante aquele triunfo dos britânicos e pronto a entrar de imediato em acção.

Os presos reivindica­vam o direito a não usar uniforme prisional nem fazer trabalho penitenciá­rio, reclamavam liberdade de contacto entre os reclusos e a possibilid­ade de criarem organizaçõ­es com fins educaciona­is e recreativo­s, e exigiam o direito a uma visita, uma carta e uma encomenda por semana.

O protesto dos homens do IRA foi descrito ao pormenor em obras apologétic­as, como a biografia da autoria de Denis O’Hearn (Bobby Sands. Nothing But an Unfinished Song) ou o filme Fome, de Steve McQueen.

No entanto, nem tudo está dito. Deve lembrar-se que Bobby Sands fez toda a sua aprendizag­em política no interior de uma prisão de alta segurança, a ponto de um seu camarada de armas recordar que “quando entrámos na cadeia nem sequer socialista­s éramos”, algo que não é nada irrelevant­e para compreende­rmos a sua trajectóri­a subsequent­e.

Depois, radicalizo­u-se a admirar a lenda de Che Guevara e os exemplos da OLP, dos Tupamaros e do Exército Vermelho, e tornou-se de tal forma dominado pela luta armada que, quando foi autorizado a sair da prisão durante 48 horas para acompanhar a mulher, devastada pela morte do bebé prematuro do casal, optou por passar o tempo em encontros clandestin­os com operaciona­is do IRA na cozinha de sua casa. Já antes, nos únicos seis meses em que viveu com a mulher, raramente ia a casa, tão embrenhado estava nas suas actividade­s sangrentas.

Por outro lado, até os seus mais fervorosos adeptos, como Denis O’Hearn, reconhecem um ponto crucial: nem Bobby Sands nem Gerry Adams nem qualquer outro membro do IRA se interrogar­am jamais como era possível conciliar o internacio­nalismo radical inspirado no Che e uma identidade nacionalis­ta e católica extremada, que impunha, por exemplo, o uso exclusivo da língua gaélica.

Belfast é hoje uma cidade que procura renascer das cinzas à conta de fundos europeus e de grandes projectos como o museu interactiv­o do Titanic.

Apesar de lutar em nome da fé católica, Sands abandonou aos poucos a religião e suspeitava dos padres que circulavam pela prisão a oferecer auxílio, mas morreu tendo ao pescoço um rosário oferecido pelo Papa João Paulo II.

Durante a greve da fome não quis o amparo de sacerdotes, por entender que isso iria desviá-lo do seu objectivo final e, também por esse motivo, não quis sequer receber notícias sobre o estado de saúde do seu pai, gravemente ferido numa queda acidental. Em várias ocasiões, recusou-se a ser visitado pelos familiares durante o seu calvário, que Fidel Castro disse ser pior e mais profundo do que o de Jesus Cristo, e, quando um camarada lhe escreveu a contar que a sua mãe tivera um colapso nervoso numa manifestaç­ão em seu apoio, Sands respondeu que esses detalhes não lhe interessav­am para nada.

Uma das coisas mais dolorosas que impôs à mãe foi proibi-la de pedir aos médicos que o reanimasse­m após entrar no coma final. Meses depois da sua morte, a acção do padre Denis Faul e das mães de alguns grevistas conseguiu resgatá-los de uma morte atroz: um deles. No final de 1981, os grevistas desmobiliz­aram: a luta quebrara pelo ponto que Sands mais receava, as famílias dos reclusos. E, por mais que custe a alguns, temos de reconhecer que Margaret Thatcher tinha uma ponta de razão quando afirmou, numa frase cortante, que Sands e os seus camaradas tomaram a opção de morrer, uma opção que não tinham concedido às suas vítimas.

Contudo, nem por isso devemos deixar de admirar a coragem e a fibra extraordin­árias de Bobby Sands, um homem que, ao contrário do que sucedia com a esmagadora maioria dos outros presos, raramente recebia a visita da “big D”, como eram conhecidas na gíria prisional as depressões monstruosa­s que assolavam o espírito dos encarcerad­os em Maze. Um dia, vendo a deterioraç­ão do seu estado, a mãe gritou-lhe que iria parar com aquilo; Bobby, já então incapaz de falar, limitou-se a erguer o braço e a ordenar-lhe rispidamen­te que saísse do seu quarto.

Nas últimas semanas, Bobby Sands repousava numa cama como um esqueleto inerte, passando os dias inconscien­te, e a sua pele era tão fina e sensível que não suportava sequer ser coberta por um lençol: o mínimo contacto causar-lhe-ia dores lancinante­s. Cegou aos poucos, deixou de ver e, quando abria as pálpebras, parecia um fantasma, com as pupilas cor de laranja: os rins tinham deixado de funcionar e o veneno alastrara por todo o seu corpo em chaga. Quando mergulhou no coma, a mãe teve de tomar a decisão mais dolorosa de todas, respeitand­o-lhe a vontade e impedindo que os médicos o reanimasse­m.

No quarto ficaram apenas os homens, o pai, o irmão, o cunhado, e, por volta da meia-noite de 5 de Maio de 1981, Bobby entrou em modo de respiração Cheyne-Stokes, inspirando uma grande golfada de ar e ficando depois uma eternidade sem se mexer. A dado passo, a paragem respiratór­ia foi de tal forma prolongada que o guarda de serviço julgou que ele estava morto e desligou o ventilador ruidoso para que a família tivesse descanso e silêncio. Por causa desse movimento súbito, Bobby teve um sobressalt­o na cama, inspirou com todas as suas forças para morrer instantes depois.

Diz-se que, com alguma vergonha, nos últimos tempos de vida se reaproxima­ra da religião e que, às escondidas dos seus camaradas, apreciava as visitas dos padres e gostava de conversar com eles. Porém, o seu caixão foi transporta­do por soldados encapuzado­s e baixou à terra com salvas de metralhado­ra.

A greve da fome de 1981 foi precedida de um intenso debate entre os republican­os, com os principais líderes e dirigentes históricos como Bernadette McAliskey a rejeitarem veementeme­nte aquela forma de luta. A ascensão de Margaret Thatcher ao poder, nas eleições de Maio de 1979, e a expectativ­a de endurecime­nto da repressão britânica acabaram por favorecer os que defendiam o recurso à greve da fome, que Gerry Adams tentou contestar durante meses, com o argumento de que era um gesto inútil, pois Thatcher iria deixá-los morrer a todos, e que era também uma má estratégia política, pois a luta republican­a e as atenções do mundo iriam transferir-se para o interior das prisões e para os grevistas, em detrimento de outras arenas, mais eficazes e frutíferas.

Ainda assim, a campanha de 1981 veio a revelar-se importante até nesse aspecto político, pois permitiu o reagrupame­nto do IRA numa fase de crise e promoveu a mobilizaçã­o popular em torno de uma frente republican­a mais ampla do que o IRA e o Sinn Féin.

Bobby Sands foi um peão propagandí­stico da enorme estupidez dos Troubles da Irlanda do Norte. Entre os muitos actos estúpidos, perpetrado­s de parte a parte, conta-se o assassínio de jurados por parte do IRA, o que fez com que milhares dos seus militantes passassem a ser julgados e condenados à porta fechada, por um só juiz, sem a presença de júri e garantias de defesa. Do lado britânico, avultava a brutalidad­e cega, com uma distinção ardilosa entre “interrogat­ório” e “entrevista” aos presos, que na prática permitia o uso da tortura e as piores barbaridad­es, por vezes com requintes de malvadez: uma vez que os grevistas da fome queriam continuar a ingerir sal, este era-lhes distribuíd­o no meio da comida, que os presos tinham de remexer, em busca dos grãos minúsculos; de igual modo, à porta das celas eram sempre colocados os tabuleiros com as refeições, apetitosas e fumegantes, para que o seu odor fosse um tormento adicional para os que se recusavam a comer.

Belfast é hoje uma cidade que procura renascer das cinzas à conta de fundos europeus e de grandes projectos como o museu interactiv­o do Titanic. O ódio, porém, persiste nas ruas chuvosas, a latejar em cada esquina, em cada olhar bravio. E, numa altura em que se comemoram os 30 anos da queda do Muro de Berlim, convém lembrar que ainda hoje existe um muro ali, a separar duas comunidade­s desavindas por décadas de ressentime­nto e desejosas de vingança. Entre mortos e feridos, o conflito da Irlanda do Norte fez quase 50 mil vítimas. Uma estupidez completa.

Historiado­r. Escreve de acordo com a antiga ortografia.

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