Inimigos íntimos
Ahistória é conhecida. Em dezembro de 1944, com a Segunda Guerra ainda à toda, Hiroo Onoda, 22 anos, tenente do Exército Imperial Japonês, foi mandado com seus camaradas para a ilha Lubang, nas Filipinas, a fim de explodir portos, sabotar campos de pouso e tentar deter com táticas de guerrilha o avanço dos Aliados – ele próprio um especialista em atacar de surpresa, fugir correndo e se esconder na selva. Seu superior, o major Yoshimi Taniguchi, foi claro: “Em caso de captura, não se renda nem se suicide. Mantenha-se vivo. Iremos buscá-lo, nem que leve três ou cinco anos.” O imperador Hirohito, literalmente considerado pelos japoneses como Deus, não se contentaria com menos.
Mas, pouco depois, em fevereiro de 1945, a ilha foi tomada pelos americanos. Onoda e três colegas se embrenharam ainda mais no mato. A essa altura, Mussolini já fora pendurado de cabeça para baixo e Hitler se matara. O Japão estava sozinho na guerra. Em setembro, depois de duas bombas atómicas sobre seu país, o imperador se rendeu. Mas Onoda e companhia não ficaram sabendo. E, como não sabiam, levaram os anos seguintes disparando contra tropas inexistentes, matando camponeses inocentes e roubando arroz, coco e gado para sobreviver. Foi quando se percebeu a existência deles na ilha.
Filipinos, americanos e japoneses começaram uma campanha para contactá-los e convencê-los a se render. Como não se sabia onde estavam, folhetos falando do fim do conflito eram despejados de avião na selva. Onoda e seus amigos os recolhiam e liam, mas achavam que era contrapropaganda. Com o tempo, dois deles se renderam e um morreu em combate com as forças locais. Onoda ficou firme – para ele, o Japão nunca seria derrotado, nem o imperador se renderia. E, com isso, continuou em guerra contra os países que agora só queriam resgatá-lo.
Em 1974, Onoda foi localizado por um jovem estudante japonês, Norio Suzuki, que fora a Lubang justamente à sua procura. Onoda aceitou conversar. Suzuki falou-lhe de tudo que acontecera no Japão durante aqueles longuíssimos 29 anos em que Onoda estivera isolado do mundo. Contou-lhe das bombas sobre Hiroxima e Nagasaki, do downgrading do imperador, que deixara de ser Deus, e da desmobilização completa do Exército Imperial. Falou-lhe também da adesão do país ao capitalismo, dos filmes de um lagarto gigante chamado Godzilla, das vitórias esmagadoras do Japão em pingue-pongue nos Jogos Olímpicos, da presença do sushi e do sashimi até nas churrascarias ocidentais e do quase desaparecimento, segundo o escritor brasileiro Millôr Fernandes, do japonês individual – os japoneses agora só existiam em grupos de 20 ou 30, liderados por uma mulher com uma bandeirinha. Ao ouvir isto, Onoda convenceu-se de que preferia ficar na selva. Além disso, tinha recebido ordens de não se render até que seu major o fosse buscar.
E isto resolveu o problema. Suzuki voltou ao Japão, procurou as autoridades e elas localizaram o ex-major Taniguchi, já então um pacífico livreiro. Taniguchi foi levado a Lubang e disse formalmente a Onoda que ele fora encontrado por seu superior, como prometido, e estava dispensado de continuar lutando. E só assim Onoda depôs as armas. Tinha um tal arsenal de fuzis, metralhadoras e munição que, se quisesse, poderia continuar lutando até o ano 2000.
Levado para o Japão, não se adaptou. Bisneto de samurais, não gostava de ver seus ancestrais confundidos com Toshiro Mifune em filmes de Kurosawa. Além disso, o Japão ficara liberal demais – quem mandava agora no país era um primeiro-ministro. Onoda decidiu ir embora.
O Brasil atendia às suas exigências: era uma ditadura, como ele gostava, e presidido por um general-imperador, chamado Geisel. E o resto não interessa muito: Onoda veio para cá, ficou anos na lavoura em Mato Grosso, voltou para Japão e, em 2014, morreu, aos 92 anos. Para ele, o mundo nunca foi melhor do que durante os 29 anos em que lutou sua guerra imaginária.
Onoda não é um caso único. Aqui no Brasil temos dois casos parecidos de pessoas fora de seu tempo: o presidente Jair Bolsonaro e o ex-presidente Lula. Supostamente, os dois vivem em 2019. Mas suas cabeças ainda estão sintonizadas em algum passado que só existe dentro delas – e dos de seus seguidores.
Bolsonaro, por exemplo, continua na Guerra Fria – um intervalo da história, entre 1949 e 1989, que dividiu o mundo entre o capitalismo e o comunismo e em que as duas forças, uma sempre de olho na outra, viviam num equilíbrio precário, com um espirro podendo deflagrar a Terceira Guerra Mundial. Essa paranoia já foi superada há muito tempo, mas Bolsonaro precisa alimentá-la para continuar existindo politicamente. Com isso, está dividindo o Brasil numa disputa fratricida, jogando-o num clima de intolerância e atrasando-o de décadas em questões fundamentais como a educação, o meio ambiente e os direitos humanos.
Quanto a Lula, a julgar por seus primeiros discursos ao sair da prisão no sábado último, continua a ser o personagem que criou para si próprio há 40 anos e que representa o pior estereótipo da América Latina. É o político que faz mimos aos pobres, prega um discurso anticorrupção e bajula os intelectuais – mas, para se manter no poder, por trás dos panos, respetivamente, agrada aos banqueiros e aos empresários, cerca-se de correligionários e executivos corruptos e alia-se aos piores políticos do país, como Paulo Maluf, Fernando Collor e José Sarney.
Mas há uma importante diferença entre Hiroo Onoda e os dois brasileiros. Onoda era sincero – achava mesmo que ainda estava em guerra. Bolsonaro e Lula são cínicos – apenas fingem que acreditam no que falam.
E, como se fosse um merecido castigo, um já não pode mais existir sem o outro.