Tolerância precisa-se
Onascimento do bebé a quem já se chama “Salvador” confrontou-nos com uma realidade confrangedora, mas que ainda assim existe. O mundo evolui cada vez mais depressa. Será que estamos a evoluir ao mesmo ritmo da tecnologia, no campo dos valores da cidadania e da solidariedade? Na minha opinião, não. Habituámo-nos a uma ideia confortável de uma sociedade em que já nem se concebe que se nasça em casa, quanto mais fora de um hospital. Nos últimos 50 anos, a taxa de mortalidade infantil de Portugal tornou-se uma das mais baixas da Europa. Em grande parte, isso deve-se ao nosso Serviço Nacional de Saúde, baseado na universalidade e no acesso democrático. Esse conforto não pode, no entanto, impedir-nos de refletir sobre os casos como o de Salvador, em que o sofrimento leva a decisões extremas. Não é possível combater e colmatar fenómenos associados à pobreza sem a interpretação daquilo que os origina. Essa perceção é muito mais útil do que a crítica fácil da condenação mediática de um parto sem abrigo e em abandono, na rua e traumático.
A nível político e da concretização de medidas para evitar estas situações, o caminho terá de ser pelo combate à desproporção das oportunidades e à redução das desigualdades. Nesse sentido, o valor de medidas como o aumento do salário mínimo proposto nesta semana é não só o do valor real em si, mas também o da mensagem que pode transmitir. Para a erradicação da pobreza e dos fenómenos que lhe estão associados, no entanto, temos também de mudar mentalidades e perspetivas. É preciso cultivar algo simples, de que muitos filósofos, historiadores e pensadores já falaram: a tolerância. Hoje, inclusivamente, assinala-se por iniciativa da UNESCO o seu dia internacional. Para uma sociedade verdadeiramente democrática e justa, é imprescindível uma mensagem despenalizadora de comportamentos.
Tolerância não é ausência de balizas sociais ou de regras. Significa, a nível individual, conseguir colocar-se no lugar do outro, compreender os seus motivos e causas. A nível coletivo, implica a maturidade que permite debater e ultrapassar o rótulo da “causa fraturante”. Este debate é cada vez mais uma exigência civilizacional e é um pressuposto numa sociedade que se quer considerar democrática, decente e justa. Em Portugal, é cada vez mais uma realidade, e temos como exemplo os dois projetos que deram entrada recentemente na Assembleia da República, sobre as condições especiais para a eutanásia não punível. Não refletir sobre esta e outras questões complexas e sensíveis é o mesmo que fingir que uma determinada realidade não existe, apenas porque não queremos vê-la ou não queremos ser incomodados, acreditando que a mera crítica a esconde. Mais útil é perceber o porquê, debater e regulamentar com tolerância e respeito pela autonomia individual.