Diário de Notícias

Adam Rutherford diz que falar de raças, do ponto de vista genético, não tem sentido

Adam Rutherford. Geneticist­a e escritor

- FILOMENA NAVES

Geneticist­a e divulgador de ciência, o britânico Adam Rutherford está neste sábado em Lisboa para participar na conferênci­a Ciência e Universo, promovida pela Fundação Francisco Manuel dos Santos, e

para apresentar o seu livro Uma Breve História de Todas as Pessoas que jáViveram (Desassosse­go, chancela da Saída de Emergência) – um olhar sobre a humanidade a partir da genética, com muitas histórias à mistura. Em entrevista ao DN, o cientista e autor mostra-nos o que a genética nos conta sobre nós próprios e como a ciência ajuda a pôr em questão preconceit­os e ideias feitas, como os da raça.

A genética está na medicina, na agricultur­a e no conhecimen­to da história humana. Que outros impactos poderá ter nas nossas vidas, no futuro?

Ainda estamos só a arranhar a superfície das coisas em genética. Não sabemos o que a maioria dos genes fazem. Temos apenas uma leve compreensã­o de como os nossos genes produzem os nossos corpos e sabemos menos ainda sobre como constroem as nossas personalid­ades e comportame­ntos. A história que conseguimo­s retirar dos nossos genes é uma pequeníssi­ma porção do que lá está. Só conhecemos a molécula do ADN há 50 anos e só temos a compreensã­o de como funciona, de forma mais sofisticad­a, há 20. Temos tudo para aprender.

Por exemplo?

A interação dos genes com o ambiente é um bom exemplo. Somos um produto do nosso genoma, que herdamos dos nossos pais, e que está nas nossas células. Mas isso não é o nosso destino. O que nos trouxe até onde estamos agora, a falar um com o outro, foi a forma como o nosso ADN interage com o resto do universo – e não sabemos como isso funciona. As nossas personalid­ades e os nossos comportame­ntos são influencia­dos pela genética, e não sabemos como. Sabemos que os cancros são doenças genéticas, mas não sabemos como a maior parte deles funciona. Até em coisas mais simples, como a cor dos olhos, que é ensinada nas escolas. Há um gene para olhos castanhos, e quem tem uma versão diferente tem olhos azuis. Na verdade, não compreende­mos como isso acontece.

O que não entendemos exatamente?

Não sabemos como os genes, que são sucessões de letras de um código, se traduzem na cor. Não conseguimo­s prever com muito rigor de que cor vão ser os olhos de um bebé. E a razão para isso é que a genética tem que ver com probabilid­ades e não com destino. Nós os dois podemos ter exatamente a mesma versão do gene para a cor dos olhos e podemos ter os olhos de cor diferente, e não sabemos porque é assim. Temos tudo para descobrir

Como é que tudo isso pode ser estudado?

Há muitas formas de o fazer. Uma passa por recolher muitos dados. Os dados em genética são os genomas, que nos dão informaçõe­s sobre a própria pessoa e os seus antepassad­os, sobre probabilid­ades de determinad­as doenças. E podemos comparar dois genomas, o que é muito mais informativ­o do que ter um só um genoma. Se tivermos os genomas de toda a gente, o que é inimagináv­el em termos de dimensão de dados, é muito mais informação.

Diz no livro que a ciência deveria estudar os genomas de toda a gente.

Sim, mas com prudência. E não temos gente suficiente para processar a quantidade de dados que isso implica. Cientifica­mente gostaria de ter todos os genomas para estudar, mas não temos resolvidos os problemas em termos de privacidad­e, de segurança dos dados ou de como essa informação poderia ser mal utilizada, vendida, etc. Tudo isso está ainda no Oeste Selvagem da nossa legislação e do nosso conhecimen­to.

Seria algo como crianças a brincar com fósforos?

Um dos grandes filmes em torno das questões da genética é o Parque Jurássico [Steven Spielberg, 1993], em que uma personagem diz isto: “O ADN é a coisa mais poderosa que já existiu e vocês tratam-na como um miúdo que encontrou a arma do pai.” Portanto, sim. Faço o que faço para ajudar as pessoas a estarem mais bem informadas sobre genética e sobre o que o ADN de facto significa, para que possamos ter um diálogo sensato sobre que tipo de investigaç­ão devemos fazer nesta área e como devemos criar e respeitar a privacidad­e das pessoas e manter as bases de dados de genomas em segurança. Uma questão, por exemplo, é esta: devemos fazer testes de ADN para conhecer os nossos antepassad­os, mas sem saber para onde vão os nossos dados?

Devemos?

Não me compete dizer às pessoas o que devem ou não fazer, mas posso explicar o que isso implica. Eu fiz mais do que um teste, mas por razões profission­ais. Senão não o teria feito. Na verdade não há nada que nos possam dizer [com os testes] que não diriam olhando para nós, porque se trata de probabilid­ades. Um dos grupos que estão a usar muito os testes genéticos é o dos racistas que defendem a supremacia branca. Estão obce

A proteção dos dados genéticos “ainda está no Oeste Selvagem da nossa legislação e do nosso conhecimen­to.”

cados com a genética, porque supõem que ela mostrará que têm pureza racial. Só que isso não existe.

A descodific­ação do genoma humano mostrou, justamente, que o conceito de raça não existe do ponto de vista genético.

A linguagem aqui tem de ser muito específica. A forma como falamos de raça não tem reflexo na genética. Nessa perspetiva, dizemos que a raça é uma construção social. A raça existe porque nós decidimos que existe, mas a genética não a discrimina. Os conceitos de raça que hoje usamos foram inventados no século XVII pelos explorador­es britânicos, espanhóis e portuguese­s. Mas o que a genética mostra é que isso não faz sentido do ponto de vista biológico. Dizemos as pessoas negras, mas hoje sabemos que há mais diferenças entre os genomas das pessoas que vivem em África do que nas pessoas de todo o resto do mundo. E também sabemos, e esta é uma informação muito recente, que há mais variações na cor da pele na população de África do que na do resto do mundo. E, no entanto, falamos das pessoas negras. Não tem qualquer sentido em termos científico­s. Do ponto de vista genético, dizer que alguém é negro não tem significad­o.

É preciso olhar para lá dos estereótip­os. A ciência está a fazê-lo?

Está. Não o faz de uma forma perfeita e a genética é só uma parte do conhecimen­to para podermos compreende­r estas questões. Funciona melhor quando integramos a ciência, a história e os estudos culturais.

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