Diário de Notícias

Cas Mudde “Os media não devem fazer do Chega maior do que aquilo que é”

É um dos principais estudiosos mundiais sobre o populismo nas suas várias formas, lançou um livro polémico sobre a mutação da extrema-direita e a sua normalizaç­ão no discurso político.

- CATARINA CARVALHO E CARLOS BARRAGÁN*

No seu recente livro The Far Right Today (Polity Press, 2019), o principal especialis­ta em movimentos populistas europeu, o politólogo Cas Mudde, explica como as sociedades ocidentais normalizar­am os discursos radicais em 30 anos. A sua teoria é de que estamos na quarta onda da extrema-direita: as suas ideias, independen­temente do poder que tenham os ultras no Parlamento, já são mainstream, já as incorporám­os no debate político. Uma entrevista feita em duas partes, uma sobre a situação portuguesa e outra do jornal online espanhol El Confidenci­al.

O partido Chega acabou de entrar no Parlamento português. Portugal já não é exceção? Será um epifenómen­o ou uma tendência?

Portugal não é mais a exceção, mas a votação do Chega ainda está muito abaixo do que outros partidos de extrema-direita conseguira­m, e muito abaixo da média de 8% a 10% que esses partidos conseguem nas eleições europeias.

O Chega é um partido muito centrado na personalid­ade do seu líder, e um líder que se fez ouvir com uma participaç­ão televisiva num canal tabloide. Isto aconteceu com outros a nível mundial?

Muitos partidos de extrema-direita bem-sucedidos vêm de partidos mais tradiciona­is e têm lideres telegénico­s que acabam por garantir uma atenção mediática desproporc­ional. Neste sentido, o Chega ajusta-se bem à tendência. No entanto, há poucos partidos destes bem-sucedidos que tenham apenas um líder, que sejam centrados à volta de um líder, pois esses têm vidas curtas.

E o que devem fazer os media? Como devem lidar com este problema?

Os media não devem fazer do Chega maior do que aquilo que é. Este é um partido que não é a voz do povo, nem sequer dos zangados com o sistema, nem os que ficam para trás. Eles são, até agora, um partido menor, que responde a um nicho muito específico, a um muito pequeno público, a uma minoria.

No seu livro diz que a comunicaçã­o social é o pior inimigo e o melhor aliado da extrema-direita. Porquê?

Tradiciona­lmente, a comunicaçã­o social sempre se apresentou como “inimiga” da extrema-direita, e nesse sentido dá-lhe uma atenção desproporc­ionada. Os liberais gostam muito de ler sobre pessoas de extrema-direita que metam medo. Para a comunicaçã­o social, uma fotografia de um skinhead com uma tatuagem nazi numa manifestaç­ão é ouro. O problema é que nessa manifestaç­ão só há 200 pessoas, mas isso não é significat­ivo. Como se sabe que essa fotografia vai trazer muitos leitores, elabora-se uma justificaç­ão para essa história e argumenta-se que aquelas 200 pessoas representa­m um fenómeno mais amplo e, assim, aumenta-se de forma artificial a sua relevância. Isto aconteceu muito quando a extrema-direita representa­va uns 2%. Agora acontece menos, porque são mais relevantes.

Porque decidiu estudar os movimentos de extrema-direita há trinta anos?

Quando era jovem fascinava-me ver como manifestaç­ões de 30 ultras atraíam uma enorme atenção mediática. Partidos com 1% dos votos! Comecei a olhar para outros países e a analisar diferenças e semelhança­s.

Afirma ainda no seu livro que passámos da terceira para a quarta vaga da extrema-direita. A que se refere?

Em quase todos os países ocidentais, as ideias da extrema-direita tornaram-se mainstream ao longo destas três décadas. Muitas coisas que eram escandalos­as quando eu era jovem são agora considerad­as senso comum.

Os partidos conservado­res tradiciona­is mudaram bastante.

Nos anos 1990, os partidos conservado­res estavam focados em temas socioeconó­micos. Os valores tradiciona­is não tinham que ver com a imigração. Estavam preocupado­s com o aborto, a eutanásia, as drogas… Hoje, os conservado­res centraram os seus esforços em temas identitári­os como a imigração ou a integração na União Europeia. Não é exclusivo dos partidos conservado­res, porque os debates sociocultu­rais dominaram a política ocidental desde os atentados do 11 de Setembro. Mas os conservado­res aproximara­m-se dos postulados da extrema-direita como nunca.

Em resumo: para a direita radical é melhor não falar de economia?

Absolutame­nte. A extrema-direita é, sobretudo, um movimento cultural. Fala sempre

de identidade e segurança. Os temas económicos são secundário­s para a sua ideologia e atração. No que respeita apenas à economia, a extrema-direita não tem nada a acrescenta­r, mas se se falar de identidade, aí, sim, são uma voz relevante. De facto, para muita gente preocupada com estes temas, são a voz mais credível. Andamos há três anos a discutir a razão que levou as pessoas a votar em Donald Trump e não chegamos a um consenso. Economia ou cultura?

Quase todos os estudos demonstram que os votantes em Trump o apoiaram devido às suas posições no que respeita à imigração. Isso não quer dizer que o aspeto económico seja irrelevant­e. O que vemos nas investigaç­ões nos EUA e noutros países é que os votantes na extrema-direita estão contentes com a situação económica, mas acreditam que o país está mal ou vai ficar pior no futuro. Há um elemento de “ansiedade económica”. Os eleitores mais pobres ou votam à esquerda ou não votam. E tanto os muito ricos como os muito pobres tendem a votar menos na extrema-direita. Então porque é que a comunicaçã­o social continua a difundir a teoria de que os eleitores escolhem a extrema-direita por motivos económicos?

Porque quer acreditar nisso. É mais agradável para os eleitores que leem o jornal. É literalmen­te um branqueame­nto: “Sim, Donald Trump e a extrema-direita são racistas, mas as pessoas que votaram neles não o são.” É uma espécie de “se me estás a ler, não te estou a julgar”. É menos ofensivo e mais fácil de acreditar. O argumento é: “Não são racistas, simplesmen­te estão chateados com o estado da economia.” Apenas é necessário criar melhores políticas redistribu­tivas e toda a gente fica feliz outra vez. Só que não. Pode dar algum exemplo de como as ideias de extrema-direita se normalizar­am nos últimos anos?

A imigração e o islão são uma ameaça para a democracia liberal, segundo estes argumentos. Nos anos 1990, só os extremista­s é que o diziam, agora, até uma pessoa como Macron diz que o islão é um problema. Ao mesmo tempo, o eurocetici­smo ampliou-se para dizer que a Europa foi longe de mais e que o poder tem de voltar aos Estados-nação. Essa era a mesma ideia defendida pelos partidos radicais nos anos 1990. Outro exemplo é o contraterr­orismo – a típica posição autoritári­a defendida pelos conservado­res de que se não se tiver nada a esconder, não se tem nada a temer do Estado. Agora quase toda a gente pensa assim.

E quem é culpado desta normalizaç­ão?

A direita tradiciona­l foi a grande culpada. Há partidos de esquerda que também são culpados e fizeram campanha contra a imigração como na Holanda ou, sobretudo, na Dinamarca, onde os sociais-democratas copiaram a extrema-direita.

Há outro argumento que defende que o auge da direita radical está relacionad­o com a banalizaçã­o do conceito “extrema-direita” por parte da esquerda, que usa o rótulo contra os seus opositores políticos. Crê que é verdade ou é uma desculpa?

Quando eu era jovem havia pessoas que diziam que qualquer partido à direita do Partido Comunista era fascista. A pergunta é: quão relevante é esta gente? É certo que andamos a dizer que “vem aí o lobo” em demasia [relativame­nte à extrema-direita]. Mas isso não invalida que os partidos tradiciona­is se estejam a apropriar de discursos

“O Chega não é a voz do povo, nem dos zangados com o sistema, nem dos que ficam para trás.” “Os media sempre se mostraram como ‘inimigos’, mas dão à extrema-direita atenção excessiva.”

próprios da direita radical. Essa é a principal lição do meu livro: se se está preocupado com a política da direita radical, não se pode estar preocupado apenas com os partidos de extrema-direita. Não significa que os partidos de extrema-direita não sejam a principal ameaça para a democracia liberal, mas não são a única. Há lobos disfarçado­s de lobos e lobos disfarçado­s de cordeiros.

O senhor engloba dentro da ultradirei­ta a direita radical populista e a extrema-direita. Qual é a diferença entre estas? Em Espanha tem havido um grande debate sobre como se devia identifica­r o Vox.

Para mim, a extrema-direita é totalmente antidemocr­ática e fascista. Eles não acreditam que as pessoas devam eleger os seus próprios líderes. Há alguns, como a Aurora Dourada na Grécia ou o partido de extrema-direita na Eslováquia, mas a grande maioria dos partidos acreditam em eleições. O Vox não é um partido de extrema-direita, é um partido de direita radical.

Há alguns anos houve quem, na esquerda, chamasse “extrema-direita” ao PP de Rajoy.

Rajoy foi, de certo modo, uma versão moderna de Aznar. Este último, como Blair, disse que era preciso controlar a imigração. O motivo? As sondagens diziam que o seu eleitorado estava preocupado com a imigração. Rajoy não foi muito diferente, ainda que tenha governado numa época em que os discursos já tinham virado à direita. Ele é um grande exemplo do que eu disse anteriorme­nte: nem o PP nem ele são de extrema-direita, mas fizeram campanha com algumas políticas de extrema-direita numa tentativa populista de atrair eleitores ou de os manter, distraindo todos dos casos de corrupção. Por vezes entro na página de The New York Times e procuro as palavras “Donald Trump”. Há 20, 30 ou 40 resultados na capa. Noutro dia falei com um correspond­ente estrangeir­o que pensa o mesmo; ele não quer escrever todo o tempo sobre Trump, mas os jornais pedem-lhe porque esses artigos são lidos. Os jornalista­s deviam fazer melhor, mas os leitores também. Se ninguém lesse essas histórias, os jornalista­s não as escreviam. O problema é que qualquer história sensaciona­lista de extrema-direita funciona muito bem, particular­mente no The Guardian ou no The New York Times. Todos somos culpados.

Um capítulo do seu livro é dedicado ao género dentro da extrema-direita. Nos últimos anos, muitos peritos salientara­m que as mulheres são “um muro contra a extrema-direita”. Não está de acordo.

Se só as mulheres votassem, a extrema-direita seria muito mais pequena. Em quase qualquer partido de extrema-direita há uma margem de género, aproximada­mente dois homens para cada mulher. Mas as mulheres não são diferentes: muitas sondagens demonstram que têm as mesmas opiniões sobre a imigração que os homens. Tendem a apoiar menos os partidos de extrema-direita porque, em média, as mulheres costumam ser menos ativas politicame­nte, e as que participam têm menos simpatia pela violência presente nos partidos de extrema-direita. No entanto, é problemáti­co ver as mulheres como um género mais puro e fazemos muito isso. Dizemos: “Temos de nomear mais mulheres para combater a corrupção.” Não há nenhuma razão para pensar que as mulheres sejam inerenteme­nte menos corruptas. Têm sido menos corruptas porque tinham menos poder. É importante sublinhar que as mulheres têm um papel cada vez mais importante na extrema-direita e cada vez há mais líderes mais importante­s.

Como Marion Maréchal [neta de Jean-Marie Le Pen e sobrinha de Marine Le Pen].

É um caso fascinante. É uma mulher jovem muito conservado­ra. É mais conservado­ra do que a tia Marine [Le Pen] em muitas coisas! A maioria das sondagens mostra que as mulheres jovens que se juntam aos partidos de extrema-direita são mais parecidas com Marine Le Pen. Ainda que pensem que as mulheres têm um papel específico na sociedade como mães, consideram que os homens e as mulheres são iguais. Aceitam a paridade de género e os direitos homossexua­is, algo que as gerações anteriores não faziam. Marion Maréchal é um produto muito específico da França ultraortod­oxa católica. Não vejo mulheres parecidas na Holanda, na Alemanha ou na Escandináv­ia, ainda que considere que ela vai ser o futuro da Frente Nacional. Durante a terceira vaga, a extrema-direita repudiava o partido conservado­r. Agora, devido à normalizaç­ão da extrema-direita, a fragmentaç­ão política e umas coligações mais factíveis, muitos partidos radicais estão a voltar a posicionar-se no eixo da direita. Por isso, Marion tem mais futuro do que a sua tia. Marine é mais como o pai, que odeia tanto a direita como a esquerda, e isso está a chegar ao fim.

Escreveu que não há provas para se afirmar que a extrema-direita alcançou o seu pico eleitoral.

O debate do teto de cristal existiu durante décadas. Eles mudam. Podemos estar no pico, mas se em sete anos tivermos outra crise migratória, esse sentimento pode aumentar. Pode subir ou baixar. O que acredito é que a extrema-direita não conseguirá mais influência do que a que tem tido nos últimos dois anos. É muito difícil. Conseguira­m dominar grande parte do debate político.

Muita gente pergunta qual é a melhor forma de derrotar politicame­nte a extrema-direita. Diz que não há uma solução única, mas que nem a exclusão nem a inclusão total funcionam. O que fazer então?

Muitos sistemas políticos fragmentar­am-se de forma significat­iva nos últimos anos. O que significa que, na atualidade, o maior partido em muitos países tem um terço dos votos ou menos, enquanto a extrema-direita conta com 10% a 15%. Para os excluir são necessário­s três ou quatro partidos, o que a longo prazo é insustentá­vel. Em termos ideológico­s tem mais sentido – sobretudo para os conservado­res – colaborar com a direita radical incluindo-os numa coligação. Por isso digo que há que estar preparado para colaborar com eles, inclusivam­ente os partidos centristas e sociais-democratas. Mas temos de pensar: em que condições vamos colaborar com a direita radical? Quais são as nossas linhas vermelhas? É compreensí­vel querer limitar a imigração. As pessoas podem decidir quem entra e quem não entra. No entanto, não é aceitável diminuir os direitos dos cidadãos muçulmanos. Os partidos têm de estar preparados para não ceder em aspetos fundamenta­is, tal como vimos na Áustria, onde a extrema-direita minou o Estado de direito a partir do poder.

Em Espanha discutiu-se muito sobre se o PP e o Ciudadanos deviam pactuar com o Vox na Andaluzia e noutras regiões de Espanha.

Depende do caso específico. Sou de esquerda, as minhas ideias para o que é melhor para o meu país são diferentes. Mas se há algo em que deveríamos estar de acordo é na democracia liberal. Para o PP e para o Ciudadanos, que se moveu para a direita, tem mais sentido trabalhar com o Vox do que com o PSOE, mas, se o fazem, deviam fazê-lo nos seus próprios termos.

Quem considera que é o líder de extrema-direita mais preparado? Trump, Putin, Salvini? Bom, este último não, que já não está no governo e fracassou.

Não creio que tenha fracassado. Governará no futuro.

Pensa isso?

Sim…

E então qual seria?

O líder de extrema-direita que mais influência teve para chegarmos onde estamos hoje é Jean-Marie Le Pen. Foi ele quem criou e definiu a terceira vaga da extrema-direita. Todos os partidos copiaram a Frente Nacional. E, de longe, o político mais hábil é Viktor Orbán. Foi capaz de manter o poder a partir de dentro, transforma­ndo-se ele. Converteu-se num herói dentro de toda a direita, mas é muito difícil copiar o modelo.

Não existe o líder de extrema-direita por definição?

Não há nenhum modelo para um líder de sucesso. Jean-Marie Le Pen nunca poderia ter funcionado na Holanda, a sua personalid­ade não funciona no norte da Europa. Matteo Salvini nunca teria sido eleito na Suécia. Trump é outro bom exemplo e teve de ter muita sorte para ser presidente, um empresário sempre no limite do ilegal… Isso não é atrativo para os países escandinav­os. Alguém como Santiago Abascal, o líder doVox, seria visto como demasiado conservado­r para os líderes de extrema-direita holandeses.

“Alguém como Abascal, o líder do Vox espanhol, seria demasiado conservado­r para os líderes de extrema-direita holandeses.”

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