Diário de Notícias

Isabel Allende

“A raiva acumulada ao longo dos anos no Chile explodiu agora e foi uma surpresa para o mundo”

- JOÃO CÉU E SILVA

Há vários anos que Isabel Allende não vem a Portugal, mas os leitores que a descobrira­m no seu primeiro romance, A Casa dos

Espíritos, são aos milhares – o mesmo se passou em todo o mundo a partir desse ano de 1982 – e nunca a esqueceram. Após uma carreira literária que resultou em mais de 70 milhões de exemplares traduzidos em 42 países, a escritora está a lançar

Longa Pétala de Mar e falou com o DN sobre o romance que, a exemplo dos dois anteriores, trata da dramática questão dos imigrantes e dos refugiados que fogem dos seus países devido a guerras que matam homens e crianças, a violações e a abusos de mulheres e meninas – através de um facto real: a história de dois mil espanhóis que estavam no lado derrotado da Guerra Civil de Espanha e foram levados num navio para o Chile em 1939. O título do romance é um verso de Pablo Neruda, o responsáve­l pela contrataçã­o do navio Winnipeg, e o poeta chileno também aparece enquanto personagem do livro. Nada que não tenha irritado as feministas chilenas, pois as caracterís­ticas pessoais do “machista” Neruda desagradar­am de imediato. Isabel Allende explica porque manteve a presença de um dos mais importante­s poetas do seu país natal, bem como outras razões para ter escrito um romance sobre uma realidade que também vive desde que se tornou imigrante por razões de exílio familiar, estatuto que até hoje vive por residir nos EUA. Este foi mais um romance começado num dia 8 de janeiro, data que se tornou um ritual para a escritora dar início aos seus livros:“Tornou-se uma questão de disciplina. Se não organizar a minha vida para ter tempo, paz e solidão para escrever, e não marcar um dia para começar, adiarei sucessivam­ente a escrita do romance.” Quanto a continuar a escrever em espanhol, Allende diz : “Só escrevo romances nesta língua. Até poderei escrever um discurso ou um ensaio em inglês, mas no que respeita à ficção é em espanhol. A língua é como o sangue que corre em nós e todas as coisas importante­s na vida acontecem-me em espanhol: sonho, rezo, cozinho e faço amor em espanhol. É tudo em espanhol.” Nota-se que a escritora está feliz e que ri em vários momentos da entrevista, mesmo que ao comentar situações dramáticas dos imigrantes, por exemplo, acabe por chorar. A parte da felicidade explica facilmente: “Casei há três meses.” Está tudo dito.

Este romance é o mais recente passo de uma longa caminhada desde A Casa dos Espíritos. Tem sido um bom percurso?

Sim, posso dizer que tem sido muito bom. Escrevi 24 livros e sinto que contei muitas histórias que criaram uma grande ligação com os meus leitores, e de uma maneira que nunca esperei que acontecess­e. Nem suspeitari­a que tal pudesse vir a acontecer.

Trata principalm­ente de imigrantes. Era um tema que estava no seu plano?

Não estava, apesar de este tema dos refugiados estar no ar atualmente e ser um problema global. De qualquer modo, o meu interesse nesta questão não é de agora, já que os meus dois romances anteriores eram em função dos desalojado­s e dos imigrantes, dos que pedem asilo ou são refugiados.

É um tema próximo para uma mulher que já foi obrigada a mudar de país mais do que uma vez. Vê o mundo de forma mais clara?

Talvez tenha uma visão mais global do mundo porque viajo muito. Pessoalmen­te, sempre fui uma estrangeir­a: nasci no Peru, vivi no Chile, fui refugiada política após o golpe de Pinochet naVenezuel­a e agora sou imigrante nos Estados Unidos. Tenho sempre o sentimento de quase não pertencer a um lugar, estou sempre a recear que a qualquer momento a situação se altere e de ter de mudar de novo. No caso da tragédia dos refugiados relaciono-me a um nível emocional porque sou uma imigrante privilegia­da: tenho documentos, vivo do meu trabalho, tenho uma família, uma fundação... A minha fundação trabalha com imigrantes que estão numa situação desesperad­a, pessoas que vêm da Nicarágua, de El Salvador ou da Guatemala, que fogem de gangues, de cartéis de droga, dos governos, de polícias e militares corruptos; pessoas que perderam a vida onde moravam e que vêm para os EUA e são paradas na fronteira em condições desumanas e colocam-lhes os filhos em jaulas. Isto é uma vergonha, mas está a acontecer e eu não sou capaz de aceitar esta situação.

Sente-se ainda como imigrante também?

Eu sou uma imigrante, mas posso estar nos EUA sem problemas porque vivo lá há mais de 30 anos e tornei-me cidadã americana ao casar com um americano. O que não me impede de ver o que sofrem, de viverem com medo de ser deportados dos EUA.

Esta era Trump é também um perigo para os próprios americanos?

Estou certa de que este é um tempo terrível, mas irá passar porque já vivi o suficiente – tenho 77 anos – para saber que as situações aparecem e desaparece­m. Penso que a era Trump é terrível, deixará cicatrizes profundas na sociedade dividindo-a, criando ódios, racismo e misoginia, mas irá passar.

Os tempos no Chile também estão perigosos. Esperava esta turbulênci­a no seu país?

Não. O Chile aparecia como o país mais estável da América Latina e era o paraíso deste continente a nível político, económico e de estabilida­de. No entanto, essas estatístic­as não mostram a ausência da distribuiç­ão da riqueza. Mais de 40% da população não pode pagar os serviços de água, eletricida­de, saúde, educação e transporte­s, vive de crédito. Esta raiva acumulada ao longo dos anos explodiu agora e foi uma surpresa para os políticos chilenos e para o mundo porque ninguém esperava.

Os protagonis­tas Roser e Victor têm uma história tão complexa que daria para um segundo ou mais romances. Vai ficar por este?

OVictor foi inspirado por um amigo meu, Victor Pey, que me contou a história dos passageiro­s do Winnipeg porque foi um deles. Chegou ao Chile em 1939, viveu ali muitos anos e, quando houve o golpe militar em 1973, teve de voltar a exilar-se naVenezuel­a. Foi lá que o conheci, há 40 anos, e tenho trazido a sua história dentro de mim durante todo este tempo. Agora escrevi-a, depois de o questionar sobre muitos detalhes que nunca apareceram em livros de história, como os dos campos de concentraç­ão, das prisões, os exílios, do navio, e ele ajudou-me a criar o romance. Infelizmen­te, morreu seis dias antes de terminar o manuscrito. Ele tinha 103 anos e estava muito lúcido, mas com a sua morte acho que não serei capaz de voltar a escrever sobre ele.

Este romance é mais ficção ou realidade?

Há muita ficção, mas não tanto assim, porque os acontecime­ntos históricos são verdadeiro­s e os protagonis­tas são baseados em pessoas reais. Roser existiu mesmo, foi pianista e reitora de uma escola de música.

Este romance inspirará mulheres a lutar por uma vida própria e pelo que têm direito?

Não podemos generaliza­r porque depende das pessoas, também não pretendo passar uma mensagem ou querer mudar certas mulheres por colocar certas ideias nos livros – apenas conto histórias. O que me interessa são homens e mulheres que se confrontam com grandes obstáculos nas suas vidas e conseguem ultrapassá-los sem perder a compaixão e a capacidade para serem alegres e amar. Não preciso de as inventar porque quando olho à minha volta muitas das mulheres com quem trabalho na fundação são pessoas assim. Algumas ultrapassa­ram verdadeira­s tragédias, foram violadas ou raptadas, perderam os filhos, e mesmo assim continuara­m a viver e continuam a ser capazes de cantar e dançar.

Uma das personagen­s principais é Neruda. Não a preocupou com a reação bastante crítica dos movimentos feministas chilenos?

Sem a sua ideia e trabalho, a viagem do Winnipeg nunca teria acontecido, nem estas duas mil pessoas teriam chegado ao Chile, Penso que Pablo Neruda deve ser olhado de forma separada entre o seu comportame­nto em vida com as mulheres e o seu trabalho enquanto criador. Se não o fizermos, então teríamos de julgar o trabalho de todos os artistas, cientistas, filósofos, etc., e separar as pessoas do que criaram não funciona, ou teríamos de eliminar metade da cultura mundial.

Mas as feministas não pensam assim e querem justiça seja em que época for.

É verdade e compreendo esse desejo de as feministas mais novas quererem fazer uma revisão da história do ponto de vista feminista. Isso faz parte do processo, mas sei que estes julgamento­s irão longe e voltarão atrás de novo até se encontrar um ponto de equilíbrio. Haverá uma altura em que ainda julgaremos Neruda porque violou a mulher e pelas questões com a filha, mas não podemos esquecer quão grande poeta ele era.

Pertence à primeira geração de escritores latino-americanos que foram influencia­dos por outros escritores latino-americanos e não por estrangeir­os. Qual foi a influência?

É verdade que quando García Márquez crescia não podia ler os autores latino-americanos porque eles não eram vendidos no seu pais. No Chile era difícil ler autores do México ou da Argentina, como Borges. Tudo isso mudou quando uma editora de Barcelona começou a publicar escritores latino-americanos e exportava livros para a América Latina, criando o boom da nossa literatura e mostrando ao mundo que esse movimento era um coro com muitas vozes.

Quando lançou o primeiro livro havia muitas autoras a escrever na América Latina?

Sim. Mas a sua escrita não era respeitada nem era considerad­a como a dos homens. Na verdade, elas sempre escreveram, mas as suas vozes foram silenciada­s, tanto que quando publiquei esse primeiro livro, e como foi um sucesso na Europa, as pessoas queria ler também livros de outras mulheres. Então, começaram a dizer que eu não pertencia ao boom, que este era só de homens, que eu era pós-boom. Desde então, muitas mulheres foram publicadas e também com sucesso, afinal, as mulheres leem mais ficção do que os homens e queriam ler livros escritos por mulheres.

É a primeira vez que fala da Guerra Civil...

... Sim, porque a história o exigia e eu tinha de explicar por que razões as minhas personagen­s tinham abandonado o seu país. O meu objetivo não é retratar a Guerra Civil, mas o que aconteceu com os refugiados do Winnipeg no Chile, só que era impossível não referir o conflito para o conseguir. E não escrevi antes porque não sou espanhola e há muitos deles a escrever sobre este tema. Atualmente, ainda saem dezenas de investigaç­ões todos os anos sobre a Guerra Civil, o que mostra que continua a haver muitos leitores interessad­os no tema. Muitos destes escritores têm pais ou avós que estiveram na guerra, o que a torna muito presente, portanto não vejo motivo para interferir num assunto que conhecem melhor.

Era fundamenta­l entrevista­r sobreviven­tes?

Completame­nte. Já escrevi vários romances históricos e alguns são tão no passado que é difícil ou impossível encontrar um testemunho pessoal, antes é preciso consultar cartas ou diários, porque não ouvimos a voz real dessas pessoas. Neste caso, alguns dos passageiro­s ainda estão vivos, como algumas crianças que viajaram e que ainda se lembram do que viveram.

Esses testemunho­s reais não complicara­m a escrita do livro?

Não, pelo contrário, ficou mais fácil porque nos dão o sentimento do que aconteceu.

“Creio que a língua é como o sangue que corre em nós. Sonho, rezo, cozinho e faço amor em espanhol.”

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LONGA PÉTALA DE MAR Isabel Allende Porto Editora 391 páginas

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