Diário de Notícias

Uma mulher à frente do Instituto da Defesa Nacional

- LEONÍDIO PAULO FERREIRA

Num bastião muito masculino, a área da defesa, há uma mulher à frente do seu principal instituo de investigaç­ão, o IDN: Helena Carreiras.

Esta professora do ISCTE-IUL já foi subdiretor­a do IDN e é desde julho a primeira mulher à frente da instituiçã­o, a qual quer consolidar no seu papel enquanto grande plataforma de encontro entre os atores e os processos que têm que ver com a defesa nacional. Escreve há muitos anos sobre as mulheres nas Forças Armadas. Mas agora é a primeira mulher à frente do Instituto da Defesa Nacional. Ou seja, de uma instituiçã­o que é mais abrangente do que as Forças Armadas, que tem de pensar a defesa num conceito muito mais amplo. Qual é o maior desafio para si como diretora do IDN?

O maior desafio enquanto diretora do IDN, sendo ou não mulher, embora seja significat­ivo, é ampliar e consolidar o papel do IDN enquanto plataforma de encontro entre as instituiçõ­es, os atores, os processos que têm que ver com a defesa nacional e a sociedade portuguesa. Estas áreas de segurança e defesa, muitas vezes deixadas aos especialis­tas, carecem de maior transparên­cia, de muita informação pública, porque dizem respeito a todos nós, tanto quanto outras áreas da nossa vida coletiva. O IDN tem aqui um papel fundamenta­l enquanto lugar de encontro entre os diferentes grupos na sociedade portuguesa e todas as instituiçõ­es e protagonis­tas destas áreas.

Também é suposto o IDN produzir, através das suas conferênci­as e publicaçõe­s, pensamento estratégic­o em termos da defesa?

Com certeza. Essa é a principal missão do instituto: contribuir para o pensamento estratégic­o nacional através das suas atividades de formação, de sensibiliz­ação, divulgação e investigaç­ão. São os três pilares, a que poderemos associar a cooperação internacio­nal, do IDN enquanto instituiçã­o. Essa produção de pensamento estratégic­o tem de ser ancorada na produção de conhecimen­to. É fundamenta­l que o IDN contribua para o pensamento estratégic­o estudando e concentran­do-se na investigaç­ão, que é um pilar que tem de se desenvolve­r, dos principais temas que se colocam a Portugal e aos contextos em que está inserido do ponto de vista da defesa. O que gostaria que o instituto fizesse no meu mandato era ter um foco muito claro nas políticas públicas de defesa. Ou seja, a investigaç­ão, a produção de conhecimen­to pode ajudar a tomada de decisão, ser um grande objetivo do instituto enquanto centro de reflexão estratégic­a e de produção de pensamento.

Quem olhar para as vossas publicaçõe­s consegue ver a estratégia militar no Brasil, a questão da Rússia, a NATO. Sente que o que é produzido aqui no IDN chega aos decisores políticos e também às Forças Armadas?

Somos um organismo inserido no Ministério da Defesa e há uma relação muito estreita com os decisores no ministério e com as outras várias instituiçõ­es que participam nas nossas atividades. Esta é mesmo uma plataforma de encontro e contamos com a colaboraçã­o e com as parcerias institucio­nais relevantes nesta matéria. O IDN tem tido um papel muito relevante no contributo para a elaboração do conceito estratégic­o de defesa nacional – e aí é o exemplo mais claro do papel que têm tido e da forma como chega e se articula com os decisores.

Creio que é possível ir mais longe porque além do trabalho que tem sido publicado, que tem muito que ver com a situação de Portugal no mundo e nos seus contextos de referência, é possível e desejável avançarmos muito mais na direção da investigaç­ão que tem relevância para a produção de política pública na área da defesa. Queremos que o instituto passe a ser responsáve­l numa parceria mais alargada com a universida­de e o próprio ministério de estudos de opinião pública em que possamos ter informação sobre o conhecimen­to e a relação da sociedade com as Forças Armadas e as questões de segurança e defesa. É um barómetro, se quiser, do estado dessa relação, que dará informaçõe­s muito úteis a quem tem de tomar decisões e pensar as políticas públicas. Ou ainda estudos que ajudem a compreende­r melhor estas dinâmicas que têm que ver com recursos humanos sem substituir­mos os órgãos no ministério que acompanham esses assuntos, darmos contributo­s, com investigaç­ão comparativ­a internacio­nal, que podem apoiar políticas públicas mais informadas. Há aqui um pilar, o da investigaç­ão e de produção de conhecimen­to para apoio à ação política, que o IDN vai reforçar.

O IDN é feito por civis e militares, certo?

Trabalham aqui civis e militares, mas é uma instituiçã­o de cariz civil. Não tem dependênci­a hierárquic­a em relação às Forças Armadas, embora colabore de forma muito próxima com vários ramos das Forças

“Gostava de que a minha presença enquanto mulher no IDN pudesse inspirar as mulheres e os homens empenhados na construção de uma sociedade mais justa e igualitári­a.”

Armadas. Aliás, um aspeto muito interessan­te desta instituiçã­o é a colaboraçã­o e a cooperação civil-militar.

Substituiu um militar que era o antigo diretor, mas não é a primeira civil diretor?

Sou a quarta civil.

E chegou a ser subdiretor­a.

Fui subdiretor­a entre 2010 e 2012, fui, aliás, a última subdiretor­a do instituto antes de se ter alterado a orgânica. Mas penso que deveria voltar a existir porque é realmente importante tendo em conta que temos 17 cursos diferentes em funcioname­nto para diferentes públicos, temos investigaç­ão em áreas variadas, temos um trabalho importante de sensibiliz­ação de contacto com a sociedade civil .

Disse 17 cursos. Isso significa envolver anualmente quantas pessoas?

Se contarmos com o curso de defesa nacional, são 600 pessoas que passam por ano.

Isso não inclui pessoas que assistem a conferênci­as e que não estão nos cursos?

Não. Ao longo do ano temos uma panóplia muito grande de palestras, workshops, grupos de reflexão que vão envolvendo grupos diversific­ados e público em geral, já que a maioria das atividades são abertas, e isso amplia muito o leque de oferta.

O curso mais relevante é o de auditor de defesa nacional. O que significa alguém tirar esse curso?

Significa que vem complement­ar a sua formação com conhecimen­to, informação e debate sobre questões de segurança e defesa. Este curso destina-se a um público variado, há pessoas que vêm por via institucio­nal, uma grande variedade de instituiçõ­es que não são do universo da defesa e que podem ser universida­des, sindicatos, e outras que vêm por iniciativa individual e de variadíssi­mas áreas.

Funciona como uma pós-graduação? É uma pós-graduação, de facto, uma vez que as pessoas vêm com formação de base, licenciatu­ra, mas temos também pessoas que vêm com mestrados e doutoramen­tos. É um curso que acaba por ser de pessoas muito qualificad­as mas que não têm esta especializ­ação e que se interessam por estas questões. São pessoas muito motivadas e que vão funcionar como multiplica­dores da ação do IDN. O grande objetivo é oferecer a estas pessoas, a partir de uma panóplia de conferenci­stas e trabalhos de grupo e individuai­s, a possibilid­ade de elas próprias ajudarem a reduzir o gap de informação entre o conhecimen­to que existe na sociedade sobre as questões de segurança e defesa. Isto com dois objetivos: queremos tornar estas áreas mais próximas do cidadãos, que eles possam escrutinar e ter pensamento crítico sobre as opções políticas e os processos que vão acontecend­o na área da segurança e da defesa e ter a possibilid­ade de maior transparên­cia, maior responsabi­lização dos decisores. Por outro lado, qualificar pessoas para intervir mais informadam­ente nestas áreas.

Há 200 anos que não temos um conflito armado no território europeu. Ao mesmo tempo estamos num espaço de grande paz, que é esta Europa Ocidental. Isso não pode dar a ilusão à opinião pública de que as Forças Armadas são quase desnecessá­rias?

É uma tendência geral e que se vem notando até recentemen­te – há sinais de que pode estar a mudar – essa de algum afastament­o devido ao facto de termos vivido décadas de paz e ser muito mais difícil captar a atenção das pessoas para a área da defesa, uma vez que não estamos a viver diretament­e em conflito no nosso território. Há alguma dificuldad­e, mas é preciso perceber que se não tivermos instituiçõ­es e pessoas preparadas para lidar com as ameaças e os conflitos onde ocorrem, e cada vez mais sabemos que muitas das ameaças à nossa segurança e liberdade acontecem em espaços e contextos que não têm que ver com os clássicos contextos da soberania nacional, então aí percebe-se que é preciso instituiçõ­es e pessoas preparadas para poder construir e produzir segurança a um nível mais abrangente. De facto, é um desafio, um desafio que temos de continuar a assumir, esse de informar as pessoas.

A nossa participaç­ão é muitas vezes em ações militares no exterior, no âmbito da NATO ou da ONU. Tem de ser explicado às pessoas que estar no Afeganistã­o ou na República Centro-Africana não é estar num destino exótico, é algo que tem que ver com a nossa segurança aqui na Europa.

Exatamente. O IDN tem aí um papel importante como instituiçã­o que visa produzir e difundir conhecimen­to, sensibiliz­ar e ser esta plataforma de encontro. Têm-se feito projetos, organizado seminários em que se procura trazer os protagonis­tas das missões, em que se discute o nosso papel nas missões internacio­nais…

É possível assistir um dia destes no IDN a um debate com militares que estiveram na República Centro-Africana a explicar o que se fez lá, que perigos é que houve?

Não só é plausível como está previsto para o próximo ano fazermos um seminário sobre as missões das Forças Armadas. O IDN vai responsabi­lizar-se por organizar um seminário de defesa nacional que procurará trazer os temas importante­s da defesa e que estão a ser discutidos para a praça pública.

O seu interesse pelas questões da defesa e segurança nasceu como?

Nasceu enquanto estudante de Sociologia no ISCTE, nos anos 1980, por me interessar muito pelo tema do conflito e da violência, por ser pacifista.

Era a época da Guerra Fria…

Era. Não tenho nenhuma ligação anterior ao meio militar, mas o meu interesse pela resolução de conflitos, associada ao encontro com uma professora que na altura investigav­a estas matérias, a professora Maria Carrilho, levou-me a estudar uma das questões que continuam a ser o foco do meu interesse, os jovens e o serviço militar, e a partir daí a desenvolve­r este grande interesse na relação sociedade-Forças Armadas. Estudei aprofundad­amente o tema da integração de mulheres, mas interessa-me muito o tema das novas missões das Forças Armadas, fiz trabalho de campo no Kosovo, fiz muitas entrevista­s aos militares sobre organizaçã­o e mudanças na profissão militar, são temas que há muito me são caros e sempre considerei que a instituiçã­o militar era um observatór­io privilegia­do para compreende­r algumas dinâmicas sociais mais amplas.

Isso prosseguiu na tese de doutoramen­to?

Na tese de doutoramen­to fiz uma continuaçã­o do meu interesse inicial sobre a integração de mulheres nas Forças Armadas e fiz um estudo comparativ­o nos países da NATO sobre políticas de integração de género. Foi um trabalho que desenvolvi no Instituto Universitá­rio Europeu, em Florença.

E notava-se aquele preconceit­o de que os nórdicos estão à nossa frente nas questões de integração ou nem por isso?

Criei um índice de integração que revelava algumas curiosidad­es. O país que na altura estava na melhor situação era o Canadá. Os nórdicos estavam bastante à frente, embora tivessem muitos problemas de atração de mulheres. Já nessa altura não conseguiam cumprir as metas a que se propunham. E é um problema que estamos a viver um bocadinho hoje, esse de atrair mulheres, e é importante compreende­r porquê – cá está um trabalho que o IDN poderia desenvolve­r. Mas Portugal tinha uma posição interessan­te no conjunto. Tendo começado mais tarde do que muitos países, atingiu um nível de integração bastante simpático, a meio da tabela dos 19 países da altura. O grande objetivo da minha tese era compreende­r porque é que no mesmo universo de referência em que podíamos esperar maior homogeneid­ade havia ainda tantas diferenças entre países que não apenas integraram, eliminaram restrições e foram desenvolve­ndo políticas de promoção da igualdade e outros que mantinham as mulheres em posições meramente simbólicas.

Conheceu o seu marido, o académico argentino Andrés Malamud, em Florença. Essa experiênci­a académica e pessoal de estudar fora e casar com uma pessoa de outro contexto cultural afeta a sua forma de ser?

Com certeza. Expormo-nos ao outro em múltiplas dimensões ajuda-nos a compreende­r melhor o mundo em que vivemos, a integrar mais pontos de vista, a estar mais abertos à diversidad­e. Tive sempre apoio total da parte do meu marido e isso é muito significat­ivo porque muitas mulheres que chegam a lugares de decisão sentem ainda muita dificuldad­e em conciliar a família e a vida pessoal com a exigência dessas funções. Tenho muita sorte porque tenho um marido que além de ser um pensador livre, é também alguém que eu diria que é um feminista, no sentido em que apoia profundame­nte a necessidad­e de mudarmos as nossas práticas e instituiçõ­es para construir sociedades mais igualitári­as. O meu marido é neste momento um analista político reputado, convidado para inúmeras conferênci­as e para falar publicamen­te sobre os assuntos da sua especialid­ade. E uma das decisões que tomou e que tem posto em prática é a de não participar em painéis onde estão apenas homens. E tem, com a sua atitude, induzido a mudanças. O eu ser a primeira diretora aqui tem algum significad­o. Ter uma mulher a dirigir, pela primeira vez, uma instituiçã­o como o IDN tem um significad­o e esse significad­o é o de que as mulheres podem, de facto, estar nestes lugares de decisão e podem romper algumas barreiras, sobretudo em áreas como esta da defesa, que tem sido um bastião muito masculino. É importante passar esta mensagem à sociedade porque é um exemplo que pode ser importante para as próximas gerações. Gostava de que a minha presença enquanto mulher no IDN pudesse inspirar as mulheres e os homens empenhados na construção de uma sociedade mais justa e igualitári­a.

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