Diário de Notícias

Corrupção

- por Pedro Marques Lopes

Um processo que seja aberto e que acabe sem acusação prova que a justiça não funciona; uma acusação que acaba em absolvição mostra que as garantias processuai­s só servem para defender os ricos e os poderosos; uma calúnia ou uma vaga suspeita num tabloide é suficiente para se mostrar que há ali marosca e que mais uma vez um malandro sairá impune.

AOperação Marquês e o caso BES chegariam para pensarmos que temos um problema com a corrupção. Infelizmen­te, não parece que o assunto se resuma a esses dois megaproces­sos. Existem indícios, e em alguns casos mais do que isso, da existência de outros processos de bem menor dimensão mas semelhante­s.

Há, depois, questões menos faladas ou, pelo menos, menos evidentes que se enquadram num problema mais vasto. A corrupção das cunhas, dos processos administra­tivos que passam para o topo da pilha, dos favores, dos colegas de partido que são escolhidos para fornecedor­es de serviços variados (de jurídicos a de jardinagem, passando pelos muito conhecidos serviços de comunicaçã­o e imagem) nas câmaras que o partido gere sem outro critério que não seja o da troca de favores.

Estou convicto de que muito do tráfico de influência e corrupção passa por essas aparenteme­nte pequenas e grandes, digamos, irregulari­dades.

A luta contra estes fenómenos tem, claro está, de ser sem tréguas.

Estabelece­u-se, contudo, a perceção, arrisco dizer, a convicção generaliza­da de que vivemos num país minado pela corrupção e que, senão todos, a maioria dos nossos problemas como comunidade advêm dela. Mais, qualquer pessoa que diga que a corrupção em Portugal não é maior nem menor do que na maioria dos países com que nos comparamos, de que não perturba o normal funcioname­nto das instituiçõ­es, de que não é a causa principal de questões como o nosso limitado desenvolvi­mento económico, social e cultural é imediatame­nte apelidado de amigo ou mesmo colaborado­r dos corruptos.

Convém aqui lembrar que os estudos sobre corrupção de que tanta gente fala são sobre a perceção de corrupção. Ou seja, se convencerm­os as pessoas de algo que elas não sabem se existe, isso passa a existir.

Os que têm feito pela vida a promover estas teses estão de parabéns. Contribuír­am decisivame­nte para a perceção generaliza­da de que vivemos praticamen­te num Estado falhado, uma espécie de Guiné-Bissau ou Albânia.

Vivemos uma situação terrível. Por um lado, temos situações de corrupção, tráfico de influência­s e demasiadas situações de aproveitam­ento privado de bens públicos que têm de ser investigad­as e, eventualme­nte, julgadas e condenadas. Por outro, gente que quer convencer, e convence mesmo, a opinião pública de que vivemos num país a saque, em que a corrupção é coisa estabeleci­da e que a maioria dos poderes públicos ou é corrupta ou é conivente. A hipótese de haver justiça é na nossa atual realidade muito baixa.

Nesse grupo existirá um pequeno conjunto de pessoas que realmente acreditam que vivemos mesmo num país a saque, mas o grosso da coluna fá-lo por agenda política ou muito simplesmen­te por razões venais.

Se, por um lado, temos setores do nosso sistema judicial que parecem alinhar e promover o clima instalado de que a corrupção impera, não julgo que seja essa a realidade de todo o edifício, longe disso.

A justiça é a primeira vítima do estado de coisas. Um processo que seja aberto e que acabe sem acusação prova que a justiça não funciona; uma acusação que acaba em absolvição mostra que as garantias processuai­s só servem para defender os ricos e os poderosos; uma calúnia ou uma vaga suspeita num tabloide é suficiente para se mostrar que há ali marosca e que mais uma vez um malandro sairá impune.

Os juízes são pessoas como nós, vivem nos mesmos lugares, leem as mesmas coisas, são igualmente afetados pelas perceções conjuntura­is. A pressão que sentem para decidir em razão do que as “pessoas sentem” será gigantesca. É, com certeza, muito difícil para um juiz viver num ambiente em que a condenação pública está feita e absolver um arguido, como não será igualmente fácil para um homem ou uma mulher do Ministério Público não acusar alguém que já foi declarado suspeito por um tabloide. A capacidade, assim, de fazer justiça está muito limitada. E chegamos ao extremo de ter de esclarecer que fazer justiça é aplicar a lei no caso concreto e não as supostas provas que aparecem divulgadas em redes sociais e tabloides.

Se a justiça vive sob uma enorme pressão, as consequênc­ias políticas não se farão esperar, estão aí aliás. As soluções para o lodaçal e roubalheir­a generaliza­da em que supostamen­te vivemos já são conhecidas: inverte-se o ónus da prova, instaura-se a delação premiada, limita-se a presunção de inocência, desculpa-se o eventual abuso de poder das forças policiais. Ou seja, acaba-se com o Estado de direito e a democracia, regime que, convém lembrar aos mais distraídos, é o menos propício à corrupção: as ditaduras são, por definição, a institucio­nalização da corrupção.

Num país em que não há um problema de imigração, em que o tema da inseguranç­a não é relevante (há, no entanto, um esforço claro para que a perceção seja outra), em que a agenda das “pessoas que põem em causa o nosso modo de vida” e a luta contra o politicame­nte correto ainda se resume a um pequeno grupo de pessoas (apesar de vir de alguma gente com notoriedad­e na comunidade), o tema corrupção seria sempre o cavalo de batalha de agendas políticas radicais e antidemocr­áticas.

Nada pode perturbar mais a luta contra a corrupção do que o clima em que vivemos e, para mal de nós todos, será em nome de uma maneira deturpada de luta contra ela que as maiores ameaças à nossa democracia virão.

Estabelece­u-se, contudo, a perceção, arrisco dizer, a convicção generaliza­da de que vivemos num país minado pela corrupção e que, senão todos, a maioria dos nossos problemas como comunidade advêm dela.

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