Diário de Notícias

O dia em que eu vi uma vaca

Ela tinha olhos de Bette Davis, ancas fartas, úberes enormes e exalava um cheiro magnífico, não sei se de bosta ou capim.

- Ruy Castro Jornalista e escritor brasileiro, autor de Carnaval no Fogo – Uma Cidade Excitante demais, sobre o Rio de Janeiro (Tinta-da-China).

No tempo em que o Brasil era um país “essencialm­ente agrícola”, como nos ensinavam na escola, crianças e vacas eram unha e carne. A maioria das cidades ficava na zona rural, e o primeiro som que um bebé ouvia ao nascer podia ser um lento e plangente mugido vindo do pasto. Uma ou outra vaca mais querida era íntima da família e tinha livre acesso à casa da fazenda. O bebé era alimentado diretament­e das suas tetas, sendo que a vaca usava o rabo para espantar as moscas que sobrevoava­m o berço. Havia uma integração quase de irmãos entre o filho do fazendeiro e o filhote da vaca, o bezerro. Os dois cresciam juntos, brincavam juntos, sonhavam juntos. Depois, cada qual cumpria seu destino histórico: o filho do fazendeiro ia para a escola na cidade grande e o filhote da vaca, para o açougue. A própria vaca há muito já fora também para o açougue ou para o brejo. E, com isso, íamos vivendo, até que uma nova vaca viesse preencher a lacuna deixada pela vaca anterior.

Pois lamento informar que não vivi nada disso. Quando tive o prazer de ver uma vaca ao vivo pela primeira vez, já era um homem de 43 anos, razoavelme­nte calejado – cruzara vários continente­s, dirigira jornais e revistas, testemunha­ra uma ou duas revoluções armadas, inclusive a dos Cravos, e a deslumbran­te Kim Novak, estrela de Hollywood, um dia passara por mim e me chamara pelo nome – não queira saber porquê. Enfim, já tinha diversas experiênci­as profission­ais, amorosas e de vida – menos a de ter visto uma vaca. E não se compreende que um cidadão leve a vida sem nunca ter visto uma vaca, já que esta façanha está ao alcance de qualquer garoto nascido numa pequena cidade do interior do Brasil.

Pois este era precisamen­te o meu caso. Nascido em 1948, em Caratinga, uma cidade cercada de montanhas em Minas Gerais, nada mais natural que, na infância, eu vivesse em estreita harmonia com a população vacum. Mas não foi o caso. Caratinga era uma pequena comunidade, de 30 mil habitantes, mas urbana, com escolas, comércio, bancos, jornais, cinemas, rádio, um grupo de teatro e até mesmo uma livraria. As vacas, que habitavam as fazendas em torno, não tinham permissão para ir à cidade, exceto se penduradas em ganchos ou já transforma­das em bifes. E, assim como as vacas não vinham a mim, eu também – por motivos políticos – não ia a elas. Sou dos poucos brasileiri­nhos daquele tempo que nunca foram a uma fazenda em criança – porque os poderosos fazendeiro­s da região, adeptos do partido político dominante, não se davam com os comerciant­es como meu pai, militantes do partido da oposição.

Donde, em vez de passar férias em fazendas, brincando em currais, vendo porcas parindo e me deliciando com o cheiro de estrume, eu as passava no Rio, de onde meus pais tinham saído poucos anos antes e ao qual voltavam sempre que podiam. Assim, minhas lembranças de infância referem-se mais a Copacabana, à praia do Flamengo, à Cinelândia e ao Maracanã. Em adolescent­e, fomos de vez para o Rio e aí perdi a chance de ser apresentad­o a uma vaca.

Nos anos seguintes, ao viajar de carro por estradas do Brasil e do mundo, vi muitos rebanhos bovinos, certamente cheios de vacas, no alto dos morros. Mas não posso jurar que fossem vacas, porque ficavam à distância – talvez fossem bois –, e eu não iria descer do carro e levantar-lhes o rabo para me certificar. Elas poderiam desconfiar das minhas intenções. E, assim, da mesma forma que nunca precisei da companhia das vacas para fazer o meu trabalho, elas também nunca precisaram de mim para continuar produzindo e se reproduzin­do.

Mas, um dia, sem querer, aconteceu. Em 1991, vi a minha primeira vaca, e nas circunstân­cias mais improvávei­s – não apenas no Rio, mas em Ipanema. Uma vaca holandesa, premiada num concurso internacio­nal, estava exposta na calçada do Hotel Caesar Park, na Avenida Vieira Souto, um dos metros quadrados mais caros do planeta. Eu passava casualment­e por ali com Heloisa Seixas quando a vimos. Estaquei. Heloisa sabia dessa falha em minha formação e me estimulou a me aproximar do bicho e resolver o problema. Assim, fui.

Era, de facto, um belo animal. Tinha olhos de Bette Davis; ancas fartas, enormes úberes e uma baba grossa e elástica que transborda­va de sua boca e molhava o tapete aos seus pés. Senti também um cheiro magnífico, não sei se de bosta ou capim – havia uns tufos por perto –, que me tomou as narinas e me invadiu por dentro, redimindo-me da intoleráve­l lacuna de nunca ter visto uma vaca. A provar que ela não era uma vaca comum, o jornalista Otto Lara Resende, então colunista da Folha, escreveu por aqueles dias uma bela crónica sobre ela.

Para mim, foi uma experiênci­a inesquecív­el. E também única – porque até hoje, 28 anos depois, continuo sem ver uma segunda vaca.

Já tinha diversas experiênci­as profission­ais, amorosas e de vida –menos a de ter visto uma vaca.

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