Watchmen: o espectador no seu labirinto
Algumas das imagens mais cativantes são citações do romance gráfico, mas a fidelidade reside não em esmolas visuais mas no modo como servem uma função narrativa.
Foi mais ou menos a meio do quarto episódio de Watchmen (HBO Portugal, Domingos) que este céptico telespectador concluiu, indisfarçavelmente contrariado, que aquilo que estava a acontecer no ecrã não era de todo desagradável. Aquilo que estava a acontecer no ecrã era o seguinte: num bote de madeira, à luz da lua, Jeremy Irons mergulhou as mãos nas águas plácidas de um lago para içar uma espécie de armadilha para lagostas de onde extraiu alguns bebés de aspecto humano. Depois de atirar um deles de volta ao lago, enfiou dois numa sacola e regressou ao seu castelo decadente, onde enfiou os bebés num electrodoméstico gigantesco que se assemelhava a um microondas steampunk e se sentou confortavelmente a comer uma fatia de bolo de aniversário ao som de choro e gritos.
Já estivemos aqui antes. Em muitos aspectos, Watchmen adere estritamente ao livro de estilo daquilo que se tornou a tradição televisiva mainstream dos últimos anos: um catálogo de imagens misteriosas e momentos “wtf?” cujo impacto é parcelado às prestações, numa escalada descendente de desencanto à medida que a explicação é revelada, ou infinitamente protelada. Mas é também algo mais, não tanto na competência com que gere os seus significados e a sua tralha temática, mas no modo como parece compreender e reproduzir os métodos básicos de construção do material de origem.
É bastante apropriado que o autor da série seja Damon Lindelof, co-criador de Lost (que fundou a tradição) e de The Leftovers – com as suas três temporadas ambiciosas, falíveis, extravagantes, frequentemente enfurecedoras, e sem qualquer desculpa para durarem 28 horas, mas que também proporcionaram alguns dos melhores momentos na história recente da televisão. Em Setembro deste ano, Lindelof deu uma entrevista à Entertainment
Weekly na qual revelou os sete produtos da cultura popular que mais o “influenciaram”. Entre as respostas óbvias (Twin Peaks, Stephen King) e as mais inesperadas (Pulp Fiction, Encyclopedia Brown), citou o filme de Spielberg Encontros Imediatos de Terceiro Grau, destacando especificamente a cena em que Richard Dreyfuss tenta esculpir uma torre com os materiais que tem à mão (argila, lixo, puré de batata) enquanto balbucia “isto tem de significar qualquer coisa...”. Uma personagem obsessivamente rendida à manufactura de uma interpretação é talvez a imagem fundadora dessa tradição televisiva – não da perspectiva das personagens, mas dos espectadores: os veteranos cicatrizados de Lost, freneticamente à procura de sentido nos detritos à sua volta (alusões, citações, podcasts, tweets!).
As reacções críticas na imprensa americana aos primeiros cinco episódios (o sexto é transmitido neste Domingo) têm sido positivas, em grande parte porque a série fornece, em generosas quantidades, os elementos da praxe que têm alimentado a indústria exegética informal que sustenta a televisão de prestígio. A “importância” dos temas aflorados (desigualdades raciais, supremacia branca, a vulnerabilidade dos instrumentos da justiça ao apelo gravitacional da violência) é agora uma espécie de caução preventiva com que cada produto cultural tem o cuidado de se rechear.
A obra de Alan Moore e Dave Gibbons – publicada em 1985-96, e da qual a série é não uma adaptação, mas uma sequela – foi quase instantaneamente canonizada pela mesma apetência para tratar temas de igual peso no seu contexto temporal (os últimos estertores da Guerra Fria), mas o seu maior mérito não foi a “desconstrução” temática do género – a história de super-heróis – e sim a revolucionária construção visual e narrativa: especificamente concebida (como o insistentemente chato Alan Moore passou os últimos 30 anos a reiterar) para afastar a banda desenhada do modelo “filme lento”, e elevar os efeitos impossíveis de transpor para o ecrã.
Algumas das imagens mais cativantes e enigmáticas da série são citações directas do romance gráfico, mas a fidelidade reside não em meras esmolas visuais para os adeptos, e sim no modo como servem cumulativamente uma função narrativa. A técnica visual elementar de Gibbons e de Moore consistia em atribuir um significado difuso a formas arbitrárias (relógios, triângulos, gotas vermelhas, cubos de açúcar) através de repetição e justaposição. O fascículo mais celebrado da sequência original (“Fearful Symmetry”, o quinto) era cuidadosamente construído em painéis simétricos (a última imagem ecoava a primeira, a antepenúltima a segunda, etc.), e o quinto episódio da série – o melhor até agora – reproduz essa simetria ao milímetro: uma revelação chocante diante de espelhos ecoa uma revelação chocante diante de um muro de ecrãs televisivos, e assim sucessivamente.
Mais do que isso, a série atafulha cada sequência com a mesma avassaladora densidade de informação visual secundária ou aparentemente irrelevante: todas as peculiaridades inventivas, toda a arbitrariedade caprichosa de um mundo tangível, a rebentar pelas costuras, e que – como as periclitantes aventuras “temáticas – tanto parece produto de inspiração como de inércia. Um mundo onde Deus vive em Marte, onde Robert Redford é presidente dos EUA há 18 anos, onde o governo indemnizou os herdeiros dos escravos, onde lulas e automóveis chovem do céu, onde dezenas de mordomos clonados são catapultados para a estratosfera, onde uma agente do FBI se masturba com um dildo azul gigante, onde uma vaca é destruída por metralhadoras ao som de Trent Reznor, onde um bilionário se senta todo nu a escrever uma peça de teatro enquanto uma governanta lhe massaja as coxas.
Tudo isto é mais interessante do que o tactear automático na direcção de vários mistérios que, a julgar por experiências anteriores, se vão dividir inevitavelmente entre os que ficam esquecidos no caminho e os que chegam a soluções semifrustrantes. Watchmen tem sido, até agora, uma síntese acidental do melhor e do pior que aconteceu à ficção televisiva na última década e meia: quase todos os defeitos e virtudes num único pacote. Tal como a lição superficial que agora todas as “desconstruções” formais do género de super-heróis são obrigadas a repetir (”Heróis? Vilões? É mais complexo do que isso!)” parece obrigar o espectador a aceitar que a resposta à pergunta “afinal a série é boa ou má?” é igualmente complicada.