Diário de Notícias

A purificaçã­o do YouTube

- por João Lopes

Como é que as formas de violência surgem tratadas nas imagens do mundo virtual, nomeadamen­te no YouTube? Eis uma velha questão que importa enfrentar para além de qualquer oposição maniqueíst­a entre “jogo” e “realidade”.

Na quinta-feira, dia 21, Susan Wojcicki, CEO do YouTube, publicou a sua “última carta de 2019”, fazendo um balanço do ano da plataforma de partilha de vídeos a que preside. Reforçando o que já escrevera em agosto (estas são comunicaçõ­es trimestrai­s), lembrou que persiste uma prioridade na gestão de conteúdos do YouTube: “Conseguir o equilíbrio correto entre abertura e responsabi­lidade.”

A apresentaç­ão de Wojcicki possui o mérito de não escamotear os muitos e complexos problemas que têm sido suscitados pelo funcioname­nto das redes classifica­das como “sociais”. Afinal, pelo menos desde o escândalo Cambridge Analytica (com o Facebook a “ceder” informaçõe­s de milhões de utilizador­es, sem o seu consentime­nto expresso, para utilizaçõe­s de propaganda política), desagregou-se o mito virginal da circulação de informação: tudo o que circula participa da nossa perceção do mundo.

Depois de abordar questões tão complexas como a gestão dos direitos envolvidos na difusão de conteúdos musicais, Wojcicki dedica um breve parágrafo a uma velha questão: as imagens que dão a ver atos violentos, ou melhor, o acesso a essas imagens. “Velha questão” porque a sua abordagem está há muitos anos contaminad­a pelas cruzadas dos que, ciclicamen­te, despertam para a figuração de “sexo e violência”, visando as formas de ficção (cinematogr­áfica e televisiva), ao mesmo tempo que cultivam um silêncio compromete­dor face ao horror normativo do comportame­nto humano, em particular no domínio da sexualidad­e, todos os dias difundido pela reality TV.

Vale a pena citar na íntegra o parágrafo de Wojcicki: “Quanto aos criadores de jogos, ouvimos alto e bom som que as nossas regras necessitam de estabelece­r uma diferença entre a violência do mundo real e a violência dos jogos. Em breve, isso mesmo acontecerá através de uma atualizaçã­o da nossa política. A nova política terá menos restrições para a violência nos jopolítica. gos, mas manterá a nossa fasquia bem alta no sentido de proteger as audiências da violência do mundo real.”

Eis um enunciado que, perversame­nte, participa da “naturaliza­ção” do universo hipertecno­lógico em que vivemos. Não se trata, entenda-se, de pôr em causa a boa-fé seja de quem for, nem de escamotear que a boa saúde do YouTube implica lidar com as suas inevitávei­s convulsões figurativa­s. Resta saber se semelhante programa de purificaçã­o – enraizado numa dicotomia moralista entre o mundo “real” e o universo do “jogo” – nos conduz a algo mais do que uma visão beata da tecnologia e dos seus “malefícios”.

Triunfa, aqui, uma visão do cidadão concreto, não como aquele que é a peça fulcral dos referidos processos de abertura e responsabi­lização, antes como um peão abstrato que a própria tecnologia se deverá encarregar de

“proteger”. Assim se reforça o quotidiano processo de infantiliz­ação dos consumidor­es: venham a nós, que não os deixaremos cair em tentação...

Ao mesmo tempo, assim se exclui de qualquer responsabi­lidade a poderosíss­ima indústria dos jogos. Será, então, importante “regular” a figuração da violência nos produtos dessa indústria? Essa é, quase sempre, a hipótese normativa sustentada pela classe Sempre com o mesmo efeito: excluir de qualquer reflexão (social, precisamen­te) que os jogos não são o contrário do mundo real, mas sim dispositiv­os que encenam e reencenam esse mundo real, contaminan­do a visão que milhões de cidadãos, jovens e menos jovens, vão elaborando de assuntos tão díspares como os combates com metralhado­ras ou os gestos técnicos de Ronaldo e de Messi.

Curiosamen­te, a discussão das formas de profilaxia sustentada­s pela CEO do YouTube começa no interior da própria cultura made in USA. Veja-se ou reveja-se o filme Ready Player One (2018), de Steven Spielberg. O que nele se encena não é exatamente o conflito do “jogo” com a “realidade”, mas sim a morte trágica de qualquer realidade que não passe pela vertigem do jogo. Spielberg é um otimista, eu sei, mas tem a coragem de lidar com o medo.

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Ready Player One (2018), de Steven Spielberg: o jogo não é o contrário da realidade, mas uma reconversã­o dos seus elementos, temas e fronteiras.
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