Ocidentalmente
Chocou a família ao declarar que não faria a primeira comunhão, saiu de casa aos 13 anos para ir estudar na cidade grande, alterou o nome para poder usar a bengala com as iniciais do pai, polemizou com Getúlio Vargas, esteve preso, a Igreja acusou-o de ser comunista e teve um cortejo de dez mil pessoas no seu funeral. Este “revolucionário” chamava-se Monteiro Lobato (1882-1948) e é conhecido como o autor de O Sítio do Pica-Pau Amarelo, mas escreveu muitos outros livros, foi traduzido em todo o mundo e integra o cânone da literatura brasileira.
Há pouco tempo, porém, uma professora da Universidade da Bahia contou-me que os seus alunos se recusam a estudá-lo por considerarem racistas certas passagens que escreveu, entre as quais a de um conto infantil de 1933, no qual a personagem Anastácia “tem cara preta”. Enfim... Mark Twain já foi vítima de acusações do género por parte de pessoas que confundem a arte com a vida (ou uma piada com uma ofensa) e insistem em olhar para o passado com as lentes do presente. Ainda assim, ao defender que se continue a ler e a estudar a obra de Monteiro Lobato (e a de Mark Twain, já agora), estou consciente de que não sou negra nem me chamo Anastácia. Já não presto, contudo, atenção a esse detalhe quando leio que, em Seattle – onde ficam as sedes da Nintendo e da Amazon –, os educadores acusam a “matemática ocidental” de ser racista (um instrumento de poder e opressão que sempre limitou as oportunidades económicas das “pessoas de cor”) e sugerem que se aprenda a contar, sei lá, com os aborígenes...
Pergunta um professor da Universidade da Califórnia – e muito bem – como pode o ensino da geometria euclidiana oprimir comunidades de afro-americanos e de que forma contribuirá o teorema de Pitágoras para a exploração dos desfavorecidos. Mas, além disso, a matemática que se tem ensinado até hoje não é, convenhamos, “ocidental”: a álgebra e a trigonometria foram desenvolvidas por árabes e persas, as fracções e equações vieram do antigo Egipto, o zero como o conhecemos devemo-lo à Índia, a geometria nasceu na Babilónia... No entanto, para os iluminados de Seattle, as conquistas de Arquimedes, Newton, Descartes ou Leibniz são racistas e, portanto, serão ensinadas apenas na escola privada, frequentada maioritariamente por brancos, mantendo desse modo os mais relevantes fundamentos matemáticos bem afastados das... “pessoas de cor”. Um paradoxo acidental ou ocidental? Adeus, futuro.
Nas vésperas da manif dos polícias, as revistas científicas Nature e The Astrophysical Journal publicaram um artigo assustador. No último ano, observatórios espaciais surpreenderam-se com duas explosões cósmicas extraordinárias. Sopros de raios gama libertaram em poucos segundos mais energia do que todas as explosões juntas do nosso Sol ao longo de toda a vida dele. Assustador.
Ninguém do Movimento Zero que dominou a manifestação desta semana deve ter lido as citadas revistas. Em todo o caso relaciono os dois acontecimentos quase simultâneos – as explosões cósmicas dos raios gama e a manif na escadaria de São Bento – por duas razões.
A primeira, pelo gesto de mão com que o Movimento Zero se apresenta, o que o liga ao símbolo do White Power, movimento racista e extremista internacional. A mão com três dedos abertos mais o polegar junto ao indicador desenha as iniciais do White Power (Poder Branco). O “W” é protagonizada pelos três dedos estendidos – eis o White. E o redondinho da parte alta do “P” mais a haste (mão e punho) que o suporta fazem a letra inicial do Power… WP!
Do ponto de vista gráfico, faz lembrar a anedota dos adeptos dragões, de falar à Porto, a dobrar os dedos em B para celebrar mais uma “bitória”. Mas essa é uma anedota inocente, que celebra um belo costume arreigado, a pronúncia tripeira. Em contraste com a anedota culpada dos adeptos do nacionalista André Ventura. Estes foram buscar um símbolo mau e arrevesado, quando tinham o nosso manguito, tão de protesto de cara aberta.
E porque escolheram, então, um símbolo que se confunde com o Poder Branco? Porque tudo em que se mete o Ventura é dúbio. Entre doutores, faz teses libertárias; nos comícios, é grosso. No discurso político, generaliza a corrupção; nos painéis clubistas, faz de conta que esse tema é virgem. Deputa como um manifestante; mas desce as escadas de São Bento com os lábios secos e olhares temerosos como se não estivesse entre apaniguados. Apadrinha o gesto do WP e sabe – ele sabe, André Ventura sabe que aquilo não quer dizer zero! – e insulta Felisberto Silva.
Lembro Felisberto Silva, de 25 anos, negro e agente da PSP, morto em 2002, em serviço, às portas do seu bairro natal, Cova da Moura. Há 17 anos, à porta da igreja da Buraca, vi centenas de agentes da PSP, muitos a chorar. Na manif desta semana, outros polícias como que gozaram com ele, fazendo o gesto do Movimento Zero: “Estás a ver, Felisberto: três dedos a fazer o White, dois dedos a fazer o Power, mais um em tua homenagem: faz seis! Como os seis tiros que levaste à queima-roupa.” Policiavas, nobilíssima ação, mas, afinal, defendias o Poder Branco…
E volto aos extraordinários raios gama, que é a segunda razão que me traz aqui. Há quase meio século vi o filme O Efeito dos Raios Gama no Comportamento das Margaridas. Por trás da câmara, Paul Newman perturbava-nos e lavava-nos a alma com uma história interpretada pela mulher da sua vida, Joanne Woodward. Ela fazia de Beatrice, viúva pobre e com duas filhas, que oscilava entre o desespero e a vontade de se safar. A publicidade apresentava o filme, assim: “A vida tem sido sacana para Beatrice. E vice-versa.”
Beatrice, presa à cidadezinha de que não se conseguia livrar, era capaz do melhor e do pior, até com as duas filhas que amava. Ruth, a mais velha, era uma adolescente rebelde que no meio dos colegas gozava com a mãe – também ela anunciava um futuro amargurado. A mais pequena, Matilda, era gentil e no liceu escolheu como projeto de ciências estudar o efeito dos raios gama nas margaridas. As radiações destruíam e feriam as flores, algumas morriam.
A metáfora era evidente. Na década de 1970, a América de Nixon vivia sob o terror do azar atómico… “Meu Deus, não odeias o mundo, Matilda?”, pergunta a mãe, no quase fim do filme. O fim é outro, de esperança: “Não, mamã. Não odeio o mundo”, responde a filha. Ela sabia que às vezes as radiações transformavam as margaridas e levavam-nas a mostrar outras belezas. Mas, é claro, se as superexplosões cósmicas dos raios gama anunciadas nesta semana chegarem até cá, não há remédio, remediado está.
E isso leva-me a perguntas: são cósmicas as reivindicações dos polícias portugueses, António Costa? Se não são, porque estamos expostos ao perigo nesta semana revelado? Faço as perguntas porque não vi boa política do governo, neste assunto tão político.