Diário de Notícias

Sem-abrigo Histórias de como foram parar à rua e o que uma associação faz para os ajudar

- GRAÇA HENRIQUES (Texto) Á LVARO ISIDORO (Fotos)

O caso da jovem que deixou um bebé no lixo pôs o país a falar do drama dos sem-abrigo e levou o Presidente da República a pedir ao governo para que até 2023 não haja ninguém sem teto. Em Portugal, estima-se que sejam seis mil a oito mil as pessoas nestas condições. Em Lisboa são 2300, das quais 361 ao relento. Mas há soluções para as retirar da rua e devolver-lhes uma vida, como os projetos da Crescer. Que o DN foi conhecer.

Otamanho está longe de definir a energia de Vanessa. De colar de pérolas ao peito e boné virado para trás, olhar vivo, discurso fluente, parece ligada à corrente. Está instalada à porta da Ginjinha, com as duas cadelas às quais chama filhas, e um copo de plástico no qual os turistas vão deixando moedas enquanto degustam o licor que aparece nos roteiros internacio­nais sobre Lisboa. É um bom sítio para ganhar dinheiro, reconhece a anã de 32 anos, que para muito pelo Largo de São Domingos, ora a pedir ora a vender roupa, guarda-chuvas ou perfumes. Agora também vive por ali, debaixo do toldo de uma loja. Nos últimos anos, a sua morada tem sido em casas ocupadas.Viver na rua é a primeira vez.

É ali, naquele espaço que os turistas tanto apreciam, que a equipa de rua da Associação de Intervençã­o Comunitári­a Crescer a encontra. Vanessa conta aos técnicos Hélio e Filipa que até já tem um quarto em vista na

Mouraria, mas precisa de ajuda para pagá-lo – o senhorio está a pedir 250 euros e ela só recebe 200 por mês da reforma por sofrer de epilepsia.

Vanessa até podia ir viver para a casa da mãe, mas as portas só estão abertas para ela, não para o Paulo, o seu companheir­o. E ela acha que agora encontrou o verdadeiro amor – “é o primeiro homem de rua por quem me apaixonei verdadeira­mente” – e prefere viver ao relento do que deixar o namorado sozinho. Ele que também não se entende com a mãe e se viu a morar na rua.

“Não ter um teto é muito mau e o pior é a chuva. E depois as pessoas roubam-nos as coisas”, diz Vanessa enquanto aponta para o monte com os seus pertences, agora tapados, debaixo do toldo onde dorme.

Vanessa não para, ora vai buscar os medicament­os para a epilepsia para mostrar cada um dos comprimido­s que toma, ora pega ao colo as cadelas, ora dá orientaçõe­s a Paulo sobre a comida dos animais.

A equipa de rua da Crescer dá-lhe a folha em que o senhorio do quarto em vista deverá colocar o preço e a assinatura. Depois disso seguirá para a assistente social.

“Sou alcoólica, bebo vinho”, vai confessand­o Vanessa. Paulo, que acabou de chegar do balneário público onde foi tomar banho, aproveita para dizer que está farto de a repreender. “Estou sempre a dizer-lhe que não pode beber por causa da medicação.” Ela assente, concorda que não devia misturar as duas substância­s, mas o vício é mais forte.

No seu frenesim, Vanessa faz questão de contar a sua história, num turbilhão de palavras. “Tenho uma filha de 5 anos, do meu casamento com um senegalês. Vive com os avós no Senegal.”

Casou-se aos 15 anos com esse homem de dois metros. Aos 20 estava separada. A filha nasceu de uma reconcilia­ção do casal, que não durou muito.

Continua a falar de si, da sua história, sem ser necessário fazer-lhe perguntas, diz que é sobrinha do falecido fadista Fernando Maurício. “Sou dançarina do Vira Milho. E também já fui prostituta aos 15 anos porque não tinha de comer. Se passar um homem e eu precisar de dinheiro para tirar a fome, vou.”

Não gosta da vida que tem. “Queria ser feliz. Ficaria feliz a ajudar as crianças que têm a mesma doença que eu tenho.” E uma casa e um emprego não entram nesta equação? “Uma casa sim, trabalho não sei não. Mas queria ter a minha menina comigo.”

Uma coisa é certa, na rua ou em casas ocupadas, Vanessa tem sempre companheir­o. “Preciso de companhia, sinto-me só.”

Espaço Âncora: onde se sente o cheiro de um lar

Ainda faltam alguns minutos para as 10.00 e já há gente sentada na escada à espera que as portas do Espaço Âncora se abram (fecha às 17.30). Lá dentro, espera-os uma casa acolhedora, onde daqui a pouco irá cheirar a torradas – esse cheirinho que remete para o aconchego de um lar. Um lar que aqueles que entrarão por aquela porta não têm.

Há quase dois anos que Alex, 52 anos, é um frequentad­or assíduo do Âncora. Falador, culto, vai intercalan­do a narrativa com as noites que passou na rua e a vez em que foi ao CCB ver Montserrat Caballé, da admiração pelo realizador espanhol Pedro Almodóvar ou de como gosta de política e se envolveu na campanha de Mário Soares contra Freitas do Amaral, em 1986. Outros tempos, em que possuía um teto a que chamava seu e tinha trabalho – foi técnico de far

mácia e antes de ir parar à rua era coordenado­r num call center. O seu último ordenado foi 1500 euros, uma quantia bem diferente dos menos de 200 que agora recebe do rendimento social de inserção (RSI).

Foram as circunstân­cias da vida que trouxeram Alex para a rua. São sempre as circunstân­cias da vida, aquelas que ninguém espera. Alex trabalhava muitas horas – “gosto sempre de estar a fazer qualquer coisa” – até ao dia em que sentiu que estava a “queimar”. Pousou o material de trabalho e disse para si: “Tenho de ir para o hospital.” E foi. Ficou internado no Miguel Bombarda.

O novelo começou a ficar cheio de nós: o dinheiro da baixa não dava para viver e voltou para casa da mãe, perdeu o emprego. O dinheiro do RSI que entretanto recebia não dava para a comida, para o tabaco e para o haxixe que começou a consumir. A mãe deixou de pagar a renda durante ano e meio, mas ainda assim o senhorio não a meteu fora. Até ao dia em que o prédio foi vendido e receberam dois mil euros de indemnizaç­ão.

Alex foi para um albergue onde, diz, dormiam 274 pessoas. “Criam-se muitos inimigos. Lixam-se uns aos outros para beber um café, fumar meio cigarro ou comprar branca [cocaína].”

E por lá ficou até ao dia em que lhe roubaram todo o dinheiro do RSI. Decidiu que preferia viver na rua do que correr o risco de ser roubado. Nesse Natal, dormiu num banco molhado. “Não sentia nada, mas sete meses na rua não é nada”, diz sobre o tempo em que dormiu a céu aberto, ao frio, à chuva.

“Não se dá valor à vida, aos outros, esquece-se os amigos.” Hoje já não é assim. Voltou a dormir num albergue, anda limpo.“Aprendi a gostar de mim, mas gosto mais dos outros.”

“Aquilo que sou aprendi em sete meses”

As rotinas sempre fizeram parte da sua vida, dormisse na rua ou, como agora, num albergue. De manhã está no Espaço Âncora, fica por lá até meio da tarde.

Quando vivia no Cais do Sodré também não descurava as rotinas. Começava de manhãzinha por dobrar e esconder as mantas, subia o Camões até ao Bairro Alto, onde ia à procura de pontas de cigarros e de ganza. Almoçava qualquer coisa, à noite ia à Igreja de Santo António, junto à Sé, jantar. “Não foi o pior período da minha vida. Aquilo que sou hoje, como pessoa, aprendi em sete meses. Aprendi tudo. Aprendi a valorizar as pessoas, independen­temente do estado delas, de estarem rotas ou cheirarem mal.”

“Sempre vivi sozinho e agora a perspetiva de alugar um quarto está a ser difícil. A perspetiva de não ter com quem me preocupar e ajudar assusta-me. Se tivesse uma casa, as minhas rotinas não mudavam.”

A necessidad­e de ajudar os outros foi algo que adquiriu nesta aprendizag­em. “De manhã, saio do albergue e vou buscar o Destak, passo pelos Anjos para comprar cerveja para matar a ressaca à malta amiga, cravo uns cigarros e venho para aqui, onde estou até às 15.30, depois vou buscar sandes para um amigo que está no albergue.”

Apesar de o futuro o poder assustar, Alex gostaria de, daqui a um ano, ano e meio, criar condições para trabalhar meio dia para alugar um quarto na zona de Arroios – quer estar perto das pessoas que ajuda. A sua ideia é integrar-se numa instituiçã­o onde possa receber o ordenado mínimo e poder tratar de outras pessoas. “É um egoísmo positivo.”

O que se sente, o que se passa, o que se sofre quando se vive na rua é coisa de que não gosta de falar. Mas deixa escapar o dia em que estava “numa maré de tristeza” e não sabe quantas cervejas bebeu e tomou comprimido­s.

Também deixa escapar as dificuldad­es que representa­vam tomar um banho num balneário público. “Já sabe, se ficar na rua e for tomar banho não tem uma toalha para se limpar e veste a roupa suja.” Atira assim as palavras, como se nos desse um murro no estômago. Deixamos escapar um tímido “espero que isso não me aconteça”. A resposta é crua: “Você não sabe o seu futuro, eu também não esperava viver na rua.”

Mas Alex prefere ver o lado positivo de tudo isto. “Estar na rua não me deitou para baixo, deitou-me para cima. Comecei a perceber algumas coisas.”

Há quase dois anos que Alex frequenta o Espaço Âncora, um espaço aberto aos sem-abrigo que não precisam de fazer qualquer tipo de inscrição. Ali, Alex – e as pessoas que frequentam a casa – encontra o mais parecido com um lar ou até com uma família.

O espaço coordenado por Filipa Duarte dispõe de várias valências, desde o apoio psicossoci­al e psiquiátri­co aos cuidados de enfermagem. E também proporcion­a outras comodidade­s básicas como lavandaria, banho e toalhas, cozinha, uma sala onde podem ler ou ver televisão, aceder à internet ou tão-só descansar nos pufes e nos sofás. Ali, os sem-abrigo podem ainda fazer troca de seringas ou ter acesso a preservati­vos. Mas até há quem só ali vá carregar o telemóvel. Outros pedem ajuda e acompanham­ento para ir a consultas ou a tratamento­s, para julgamento­s ou tão-só para tirar o passe.

Perseguind­o essa máxima, na parede destaca-se em letras bem grandes a palavra “dignidade”. Para que cada um que a lê não desista dela ou a reencontre. E também há uma poltrona onde quem se sentar tem de contar uma história, qualquer história, ou um marco do correio para enviarem cartas a quem entenderem.

Filipa salienta que a aposta na redução de riscos passa igualmente por práticas artísticas. “Não pretendemo­s formar artistas, mas uma ocupação com significad­o para a vida.” Foi no ateliê que fizeram a faixa que levaram à caminhada contra a pobreza, no Dia Internacio­nal para a Erradicaçã­o da Pobreza.

As equipas de rua contactam os sem-abrigo e ajudam-nos com vários problemas, da saúde a encontrar um teto.

O Housing First já deu casa a 36 pessoas e assenta na ideia de que só com casa se consegue iniciar uma vida.

No Espaço Âncora, os sem-abrigo podem tomar o pequeno-almoço, tomar banho ou apenas ver televisão.

Foi um dia especial e disso fazem questão de falar em grupo. Bruno Delgado esteve ativo nesta empreitada. E no trabalho de reflexão dá a sua opinião, lamentando a pouca participaç­ão de sem-abrigo e de algumas instituiçõ­es só terem marcado presença através dos técnicos.

Ele sabe do que fala, de como é importante o envolvimen­to de todos. A rua foi invariavel­mente o seu destino. Viveu com a mãe na Cova da Moura até aos 11 anos, altura em que não aguentou os maus-tratos e decidiu fugir. Acabou institucio­nalizado na Casa Pia até aos 18, mas com períodos de vivência na rua entre esse tempo. “Sempre que a Casa Pia fez que eu voltasse para a minha família, acabei na rua. Eu e os meus irmãos éramos obrigados a seguir a minha mãe. Por isso falo da minha mãe com mágoa, com raiva, com tudo.”

Agora tem 28 anos, é pai, mas há três anos que regressou à rua, vive numa tenda por detrás do refeitório da Santa Casa, frente à igreja dos Anjos. “Já me sinto melhor na rua do que na minha casa.”

Um passado triste e sem amor, que Bruno pensou que poderia apagar quando constituiu a sua própria família. Tinha casa em Sesimbra, trabalhava como pescador e foi pai. Foi o facto de ser demasiado agarrado ao filho que criou os problemas com a família da mulher – desavenças que viriam a ditar a separação e a que lhe retirassem a criança, diz.

“Fiquei desorienta­do, descambei e não conseguia trabalhar. Consumia haxixe, estava desanimado, perdi a casa.”

A rua, mais uma vez, foi o seu destino. Mas prefere viver numa tenda do que num albergue. “Há mais tempo de manobra, são 24 horas por dia a orientar-me para os vícios, para a fome. No albergue há horários. Se jantarmos às sete já não podemos sair. E há o problema das doenças, as pessoas não são investigad­as, já houve surtos de tuberculos­e.”

Quando acorda, Bruno vai tomar banho à Santa Casa e depois ruma ao Espaço Âncora para tomar o pequeno-almoço. Às vezes fica por lá o dia todo, a ver televisão, a participar em atividades. “Acaba por ser a minha casa. Temos apoio, conseguem ouvir-nos, dão-nos alguma importânci­a. Tornou-se uma família, respeitamo­s o lugar uns dos outros.”

As palavras da coordenado­ra do Espaço Âncora vão nesse mesmo sentido: “Quando o espaço abre de manhã, há muitos que ainda não conseguira­m ir a uma casa de banho, aqui encontram a primeira pessoa que lhes diz bom-dia... Olhamos para as pessoas como sendo pessoas. E provoco-os para voltarem a olhar-se como pessoas válidas.”

Acrescenta que se um projeto de vida não teve sucesso à primeira ou a segunda vez, não é por isso que devem resignar-se.

E esse é o papel dos técnicos, ajudar a refletir e a acompanhar quem precisa, respeitand­o o tempo e as opções de vida de cada um.

Housing First: porque uma casa é o princípio de tudo, de uma vida

Até há dois anos, quem queria encontrar Luís Paulo tinha de procurar junto aos barcos no Terreiro do Paço, onde foi sem-abrigo durante 14 anos. Desde então tem uma morada, uma casa que lhe devolveu a esperança. O momento em que meteu pela primeira vez as chaves à porta foi tão singular que os técnicos da Crescer fizeram questão de tirar uma fotografia. “Fiquei maravilhad­o”, diz, sorriso aberto, os olhos claros a brilhar.

Não é para menos. Luís Paulo, 54 anos, não tem uma casa qualquer: tem sala, quarto, cozinha, casa de banho e ainda uma grande marquise, onde trata da roupa, com uma vista aberta para a Ponte 25 de Abril.

A casa surgiu-lhe por milagre, através do projeto da Crescer Housing First, depois de um dos períodos mais difíceis da sua vida, quando recuperava de uma tuberculos­e que o deixou às portas da morte.

O Housing First, que abrange 36 pessoas, é um projeto que assenta numa premissa: ter uma casa é o primeiro passo para ter uma vida, um trabalho. O projeto é financiado pela Câmara Municipal de Lisboa e por particular­es, e as casas são alugadas pela Crescer no mercado de arrendamen­to, estabelece­ndo-se um plafond e 21 euros por dia, explica a coordenado­ra, Cristiana Merendeiro. A equipa de rua da Crescer deu com Luís Paulo quando estava doente. “A equipa do Élio apareceu e disse que me arranjava uma casa. Não acreditei! Mas eles foram persistent­es nessa área e levaram-me ao hospital e fiquei internado quatro ou cinco meses no Curry Cabral. É como vê nessa mesa aí, pareço um robô”, graceja enquanto aponta para a mesa de centro da sala repleta de medicament­os. Onde estão também os cigarros que não conseguiu deixar, apesar de ter 65% de incapacida­de num pulmão.

A equipa visitava-o no hospital, leva-lhe o que precisava. Até ao dia tão especial em que o foram buscar e o trouxeram para a “sua” casa. Há 14 anos que Luís Paulo não sabia o que era dormir debaixo de um teto. “Tinha perdido a crença nas coisas, achava que nada valia a pena.”

Agora vale. E deseja que um dia os seis filhos e os netos conheçam a sua casa, mas até lá quer mostrar que está bem. “Não vou criar ilusões que depois não possa cumprir.”

Às vezes custa-lhe falar no passado, há perguntas a que simplesmen­te não quer responder. Certo é que em 14 anos na rua teve sempre expediente para arranjar dinheiro para a droga – arrumava carros junto à Casa dos Bicos e conseguia cerca de cem euros por dia.

“Dei cabo da minha vida em 14 anos. Tive oportunida­des para estar bem, não quis. Agora tenho um porto de abrigo, posso recuperar o tempo perdido.”

Luís Paulo era pintor na construção civil. As más relações com a família, que pioraram com a morte do pai, a separação da mulher e dos filhos atiraram-no para a rua, para os vícios. Ainda hoje toma metadona. Faltou-lhe um teto, a família, o amor. Mas nunca lhe faltou a fé em Deus e na Nossa Senhora de Fátima, de quem é fervoroso devoto. O altar que hoje tem na mesa-de-cabeceira também o tinha quando era sem-abrigo.

Restaurant­e: o caminho para entrar no mercado de trabalho

Carla Oliveira, 45 anos, não viveu propriamen­te na rua, tinha uma barraca sem portas, sem janelas, apenas com umas cortinas. Chovia lá dentro. Juntou-se com o marido quando tinha 14 anos e ele 17. Tiveram dois filhos, mas as drogas metiam-se no caminho dos cuidados que deviam dar às crianças. O dinheiro que o pai de Carla lhe dava para ajudar era direcionad­o para os consumos. Por isso, acabou por entregar os filhos ao avô. “Ali estavam seguros, comigo não.”

Carla conseguiu uma casa camarária e há 15 anos deixou de consumir drogas, mas manteve o vício do álcool. Até que decidiu que tinha de mudar de vida e foi internada. Hoje está no final da linha de apoios (ou será a primeira?) que a Crescer dá para ajudar pessoas a sair da rua e a combater adições – Carla tem um emprego no restaurant­e solidário Isto É Um Restaurant­e, criado pela associação para todos aqueles que já têm um teto, nem que seja num quarto ou num albergue.

As bolsas de 450 euros são de seis meses e o objetivo é que entrem num estágio e no mercado de trabalho.

“Se soubesse que a vida tem um sentido, nunca me tinha agarrado ao álcool. Quando se entra no poço dificilmen­te se consegue sair de lá. Gostava de que o meu marido fosse vivo para ver o processo que fiz, valeu a pena esperar ano e meio .Vejo um futuro, estou a lutar por isso. Foi uma vida de luta, uma luta interna, tentamos dar a volta e não se consegue.”

O Espaço Âncora, que Alex e Bruno frequentam, oferece as comodidade­s de um lar.

Nunca encontrámo­s uma pessoa a quem oferecemos uma casa que a recusasse. Vamos partir do princípio de que as pessoas têm um problema de saúde mental ou de adição. Isso tem de ser tratado com as pessoas num sítio digno, que é uma habitação. O poder político não pode querer resolver o problema das pessoas se elas continuare­m a viver na rua, se não lhes derem primeiro uma habitação. Isso é do senso comum. Às vezes parece que dá jeito este discurso para que não se resolva nada.

Temos tentado que exista uma resposta efetiva para estas pessoas, para que saiam da rua, por isso criámos o Housing First. A seguir, criámos o restaurant­e e as pessoas que lá trabalham não vivem na rua. Não se pode pensar num emprego quando as pessoas ainda estão a viver na rua.

Não têm morada, não têm uma casa para tomar banho, não podem sentar-se no sofá e ligar e desligar o televisor quando querem, não podem comer o que querem. É muito importante eu chegar a casa e comer o que quero, desligar o televisor quando quero. E chegar ao sábado e ter de sair às 10 da manhã para a rua, depois de uma semana de trabalho, porque ninguém pode estar no centro... Sabemos que a maior parte das pessoas têm consumos abusivos de álcool, mas os centros de abrigo não permitem que entrem alcoolizad­as. Eu posso ir beber copos com um amigo e deixam-me entrar na minha casa. Temos de ter uma lógica de tratar as pessoas com mais dignidade. Dizer que o problema é da saúde mental é quase dar um chuto na cabeça de quem acabou de cair.

 ??  ?? Vanessa é uma força da natureza. Pela primeira, vez foi atirada para a rua, onde vive com o namorado e as duas cadelas.
Vanessa é uma força da natureza. Pela primeira, vez foi atirada para a rua, onde vive com o namorado e as duas cadelas.
 ??  ?? Bruno viveu muitas vezes na rua como sem-abrigo. Constituiu família, foi pai, teve uma casa mas a rua voltou a ser o seu destino. No Espaço Âncora encontra o mais parecido com um lar.
Bruno viveu muitas vezes na rua como sem-abrigo. Constituiu família, foi pai, teve uma casa mas a rua voltou a ser o seu destino. No Espaço Âncora encontra o mais parecido com um lar.
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Luís Paulo estava às portas da morte quando a equipa de rua da Crescer o levou para o hospital. Ao fim de 14 anos a viver como sem-abrigo, ganhou uma casa.
 ??  ?? “Aprendi a gostar de mim, mas gosto mais dos outros”, diz Alex. Mesmo que consiga arranjar um teto, nem que seja um quarto, quer continuar a ajudar quem vive na rua.
“Aprendi a gostar de mim, mas gosto mais dos outros”, diz Alex. Mesmo que consiga arranjar um teto, nem que seja um quarto, quer continuar a ajudar quem vive na rua.

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