Falemos de betos
Entre 1780 e 1820, a estrutura da propriedade britânica mudou drasticamente e os afortunados que nessa época tinham a ventura de possuir terras enriqueceram de forma assombrosa.
Diz o António Araújo. Mas de betos a sério, os da aristocracia britânica, que ele explica como ficaram ricos.
Falemos então de betos. Mas de betos à séria, a aristocracia britânica. O maior especialista do assunto é, de longe, o historiador inglês David Cannadine, actualmente professor em Princeton e autor de obras excepcionais, com destaque para o formidável The Decline and Fall of British Aristocracy, ou de belas biografias de Lord Nelson, do rei Jorge V e, mais recentemente, de Margaret Thatcher.
Em Aspects of Aristocracy, uma colectânea de ensaios publicada em 1994, Cannadine mostra que a actual nobreza britânica é bem mais recente do que julgamos – e, sobretudo, bem mais recente do que ela própria se julga e proclama, reivindicando pergaminhos que remontam à Alta Idade Média ou a tempos ainda mais recuados. Salvo honrosas excepções, o grosso da alta aristocracia britânica emergiu ou expandiu-se entre finais do século XVIII e princípios do século XIX, altura em que, por uma conjugação de diversos factores, algumas famílias de proprietários rurais se tornaram muito ricas ou, melhor dizendo, super-ricas, em tudo iguais aos Bill Gates ou Jeff Bezos dos nossos dias.
“Terramania”: o frenesi da lavoura
Entre 1780 e 1820, a estrutura da propriedade britânica mudou drasticamente e os afortunados que nessa época tinham a ventura de possuir terras enriqueceram de forma assombrosa. A crise demográfica que assolou as Ilhas Britânicas na primeira metade do século XVIII fez que, em muitas famílias, os varões e os primogénitos desaparecessem, o que levou à extinção ou ao declínio de uma parcela substancial da aristocracia dos tempos dos Tudor e dos Stuart e criou, do mesmo passo, um número sem precedentes de herdeiras e um florescente mercado de casamentos para os aspirantes a sangue azul. A propriedade começou a ficar concentrada num número cada vez mais reduzido de senhores da terra, uma elite territorial que, entre o mais, lucrou extraordinariamente com o aumento vertiginoso dos preços agrícolas gerado pelas guerras com a França napoleónica: o preço do trigo passou de 45 xelins por quarter, em 1789, para 102 xelins em 1814, um valor nunca antes atingido. Além da fortuna, mas em relação com ela, cresceu também o latifúndio. Desde logo, por herança: os duques de Norfolk, por exemplo, viram o seu património fundiário duplicar duas vezes, pela morte do 9.º duque, em 1777, e do 11.º duque, em 1815. Noutros casos, a riqueza acumulada nos alvores da Revolução Industrial permitiu a compra de mais e mais terras, e, note-se, de terras cada vez mais rentáveis devido à modernização e ao progresso da agricultura. Neste movimento de larga escala, a que então chamaram “terramania”, foi essencial a enclosure ou privatização de baldios, de terras sem dono e de propriedades comunais: entre 1760 e 1780, o parlamento aprovou novecentas leis de enclosure, um número que passou para mais de duas mil enclosures entre 1793 e 1815.
As terras, ademais, eram ricas em minério, um bem essencial para a indústria nascente: entre 1775 e 1830, a extracção de carvão passou de nove para trinta milhões de toneladas, com grandes famílias a dominarem as jazidas de regiões inteiras da Escócia (os duques de Buccleuch, de Hamilton e de Portland), do País de Gales (o marquês de Bute e Lord Windsor), de Inglaterra (os Dudleys, os Darmouths, os Sutherlands, os Londonderrys ou os Devonshires). A nova opulência fez-se sentir também nas cidades, com a alta nobreza a acumular fortunas colossais num mercado imobiliário em crescimento imparável: em Londres, os Bedfords dominavam Bloomsbury, os Grosvenor tinham Belgravia e Pimlico, os Portlands e os Portmans urbanizaram centenas de hectares na capital do Império ou nas suas imediações.
Depois, começou o assalto ao Estado, uma operação que beneficiou os super-ricos mas também os terratenentes de escalões mais baixos. Foram criados centenas de lugares e de sinecuras, concederam-se pensões astronómicas: se o duque de St. Alban arrecadava duas mil libras anuais pelo estranho posto de Grande Falcoeiro Hereditário, ou Lord Auckland 1900 libras pelo cargo inútil de auditor do Hospital de Greenwich, no rescaldo da batalha de Trafalgar o parlamento decidiu atribuir ao irmão mais velho do almirante Nelson e aos seus descendentes uma pensão anual de cem mil libras, a qual só deixou de ser paga, pasme-se, em 1947; pelos seus feitos contra os exércitos franceses, o duque de Wellington recebeu uma grossa maquia de 600 mil libras e até os seus irmãos foram recompensados como embaixadores em Madrid ou governadores da Índia.
Assim se sedimentou uma nova casta, à cabeça da qual se encontrava o 1.º duque de Sutherland, com propriedades a perder de vista na Escócia e em Inglaterra, e investimentos milionários em redes de canais e caminhos-de-ferro. “Era um leviatã de riqueza. Creio que foi o homem mais rico que alguma vez morreu”, observou um contemporâneo irónico na altura do seu falecimento. Na esfera política, números sugestivos: mais de três quartos dos membros da Câmara dos Comuns tinham conexões fundiárias e 222 (ou seja, um terço dos deputados) estavam ligados à aristocracia. Quanto a títulos nobiliárquicos, também um aumento exponencial: entre 1776 e 1830, foram concedidos 209 títulos de par do Reino Unido, e a Câmara dos Lordes teve um aumento de 199 para 358 membros. Em 1784, existiam apenas dois marqueses em Inglaterra, em 1801 já eram nove, número que subiu para 23 em 1837. É ilustrativo saber que, à excepção de Disraeli, todos os primeiros-ministros que o Reino Unido teve no século XIX provinham de famílias que ascenderam socialmente entre 1780 e 1830. Mais do que pedigree imemorial ou sangue azul a correr nas veias, esta gente tinha muito dinheiro a tilintar nos bolsos e, como conclui lapidarmente Cannadine, o grande paradoxo do ancien régime britânico não era ser assim tão antigo, era ser tão novo.
A “invenção da tradição”
O dinheiro permitiu a construção dos palácios e das casas magníficas que hoje admiramos. As mansões já existentes foram ampliadas à grande e sofreram remodelações profundas, e muitos dos castelos medievais cujo esplendor contemplamos, julgando
terem muitas centenas de anos, não passavam de vagas ruínas que os novos proprietários recriaram ao gosto romântico dos romances de Walter Scott. As elites dedicaram-se ainda àquilo a que Cannadine e outros chamam a “invenção da tradição”, um processo ao qual se deve muito do imaginário que ainda temos da Englishness, a imagem de marca que a Grã-Bretanha continua a projectar no mundo e na História. A caça à raposa, que pensamos ser uma prática ancestral, começou apenas nessa época, finais do século XVIII, e o primeiro número da Sporting Magazine viu a luz precisamente na altura, em 1792. A “mania do jogo” e a moda do coleccionismo, de objectos exóticos à pintura dos grandes mestres, tiveram uma expansão extraordinária nesse tempo, o mesmo sucedendo com a jardinagem, as corridas de cavalos ou com os frondosos e imensos parques, decorados por ovelhas lanudas e gado de luxo. A “invenção da tradição” marcou também os rituais políticos e as liturgias do poder. A encenação e a coreografia das coroações, dos casamentos régios e de outros cerimoniais de aparato são, essencialmente, criações ou recriações do século XIX: as Houses of Parliament datam de 1870, o Big Ben de 1859 e a tradição dos casamentos reais na Abadia de Westminster só foi retomada em 1919, após 430 anos de interrupção.
Foi bonita a festa, pá
Foi bonita a festa, pá, mas durou pouco. Por uma conjugação de vários factores, desde a democratização do parlamento à ascensão das classes médias e do operariado trabalhista, passando por divisões sucessivas na propriedade fundiária, por impostos pesados e novas leis sucessórias, a aristocracia britânica entrou em decline and fall em finais do século XIX e princípios da centúria seguinte. Para isso também contribuiu, e muito, a decadência pessoal e familiar dos nobres ingleses, devorados por uma espiral de dívidas e de excessos, por gastos sumptuários, alcoolismo, infidelidades e rupturas matrimoniais, por escândalos tortuosos, e até horripilantes casos de crime e justiça. A família de Churchill, tido como o grande paladino dos valores conservadores e da Inglaterra tradicional, sempre se encontrou nos antípodas desses sólidos padrões nacionais e morais. Os Churchill e os seus parentes mais ilustres, os Marlborough, são uma linhagem dilacerada por divórcios, traições conjugais, jogo e álcool, corrupção e compadrio, depressões e suicídios (como o de Diana, a filha do próprio Churchill, em 1963), enlaces interrompidos (a mulher de Churchill, antes de se casar com ele, esteve noiva duas vezes), simpatias nazis ou fascistas, dívidas monstruosas (Winston teve frequentemente de socorrer o pai Randolph, em constantes apertos financeiros).
Perante a hecatombe, os nobres reagiram de modo previsível, desligando-se da realidade, fechando-se num casulo, perdendo o contacto com a envolvente agreste: Churchill, por exemplo, nunca entrou numa loja na vida, nunca andou de transportes públicos, a única vez em que se meteu no metro de Londres perdeu-se durante várias horas e teve de ser resgatado por um amigo. Aquele que já foi eleito “o maior inglês de todos os tempos” nunca se interessou verdadeiramente em conhecer os seus concidadãos e como estes viviam. É lendária a sua completa ignorância sobre o quotidiano das pessoas vulgares e, numa fase muito tardia da vida, nos alvores dos anos 1950, Winston Churchill ainda julgava que a maioria do povo britânico morava em cottages, rodeadas de flores silvestres e suaves arbustos.
Os betos, contra mundum
Vem isto a propósito, ou a despropósito, da controvérsia gerada pelo texto que um jovem Bourbon Ribeiro fez publicar há dias no site do Observador. Os mais benévolos viram na sua “Carta aberta ao meu país” o produto desculpável de uma mente imberbe, com erros de construção frásica e outras navalhadas fatais na língua pátria. Os mais críticos encararam-na como o fruto podre dos preconceitos de casta e vieram clamar que aquela missiva borbónica reproduz um a um, sem falhas, todos os estereótipos e todas as contradições do seu grupo social de origem, como se o rapaz Ribeiro, apesar de jovenzito, fosse já um diligente apparatchik do betismo, muito aplicado e furioso. Mas, sinceramente, não sei o porquê de tanta ofensa, já que o artigo do moço não é ofensivo, é defensivo, tristemente defensivo. Cannadine mostrou que os aristocratas britânicos, ao contrário do que eles ainda nos tentam fazer crer, não descendem de linhagens medievais nem são portadores dos valores intemporais e perenes da nação. São, isso sim, um grupo social que ascendeu e descendeu rapidamente, no espaço de poucos decénios, e de permeio recriou um universo imaginário de fantasias glamorosas e tradições inventadas. Agora, resta-lhe o capital simbólico dessa memória, e o seu snobismo e a sua clausura tribal são reacções instintivas – e, de resto, mais do que naturais – de um bando de mamíferos que se sente ameaçado ou pressente que se encontra em irrevogável declínio. Com os betos portugueses passa-se o mesmo. Nos descobrimentos marítimos, na monarquia brigantina ou no português suave do doutor Salazar glorificam um passado que passou e não volta mais ou, melhor dizendo, um passado que nunca existiu e que só existe no espírito atormentado da betaria ou sacrobetaria, a qual já intuiu certeiramente que, como as corridas de toiros, é ultraminoritária e está condenada à extinção (nas últimas eleições, a única líder partidária com religião declarada teve 4,22 % dos votos).
A carta de Bourbon Ribeiro revela a mesma desdenhosa indiferença de Winston Churchill perante o viver do povo concreto, perante as dificuldades do seu dia-a-dia, perante a realidade de um país onde já poucos se casam (3,4 casamentos por mil habitantes) e em que 60% a 70 % dos casamentos acabam em divórcio, sem que a Igreja ou a ideologia beta se preocupem em oferecer resposta de jeito ou o devido amparo cristão a toda essa gente carente, que é muita e será cada vez mais.
“Carta aberta ao meu país”, e muitos outros textos como esse, têm a tonalidade crepuscular dos derradeiros apelos, são o grito de estertor de uma tribo sitiada, condenada a afundar-se por culpa do seu sectarismo cego. Tenhamos dó dos betos, coitados. É que, além de intolerantes aos outros, são, acima de tudo, intolerantes à crítica e vêem no mínimo reparo ao seu suicidário caminho um terrível sinal do Demo ou um indício de perigosa opção esquerdista. Betos, que Deus os guarde.