Porque somos todos venezianos
Prémio Melo e Castro 2018 distinguiu a investigação da Universidade do Minho coordenada pelo neurocientista Nuno Sousa. Uso de exoesqueletos pode ajudar a devolver movimentos e a sentir o mundo.
Explica Viriato Soromenho-Marques, que é duro com os políticos portugueses, os homens de negócios… e a Europa.
Não é decerto a primeira vez que vemos corrupção, jogos sujos e crimes de toda a espécie em governos eleitos democraticamente. Isto, claro, apenas do que sabemos. E se nos ativermos só aos EUA não faltam exemplos, do óbvio caso de Nixon, que teve um processo de destituição (acabou por renunciar) por se provar ter conhecimento da espionagem política aos democratas consubstanciada na invasão dos escritórios daqueles no edifício Watergate, ao escândalo Irão-Contras, na administração Reagan – a venda de armas clandestina ao Irão, então sujeito a embargo decretado pelos EUA, e a utilização dos proventos dessa venda no financiamento da guerrilha contra o governo sandinista da Nicarágua (os “contras”), financiamento esse proibido pelo Congresso.
Temos pois amplos precedentes de ilegalidades e perversões dos mandatos constitucionais cometidos ao mais alto nível. O que parece novo – e pode ser, claro, que só pareça novo por se estar a passar agora – é o nível de desbragamento na exibição do desprezo pelos processos legais e constitucionais e pela aparência de ética mínima que caracteriza Trump.
Tudo o que o presidente americano fez desde que tomou posse, da nomeação de membros da sua família para cargos oficiais à proposta de que um hotel seu fosse escolhido para receber um encontro internacional organizado pelos EUA, passando pela forma como vilipendia pessoas que fizeram ou fazem parte da sua administração (já nem falemos de como se refere àqueles que considera seus adversários), evidencia uma total indiferença, senão mesmo desconhecimento, pelos mínimos de gravitas e de afetação de seriedade que se exigem no cargo que ocupa.
É como se Trump tivesse decidido desfazer e corromper, pela sua ação e discurso, tudo o que é o adquirido sobre o papel de um governante; como se tivesse ido para a Casa Branca como concorrente daqueles reality shows em que de resto foi produtor e apresentador, o tipo de concorrente que afirma “vou ser eu próprio”, e se guia única e exclusivamente por aquilo que lhe dá na bolha e por critérios de popularidade junto do seu público. O público que ele, não esqueçamos, garantiu ainda antes de ser eleito que o apoiaria mesmo caso ele matasse alguém numa das artérias mais movimentadas de Nova Iorque, a 5.ª Avenida. O público que, intui ele e é capaz de não estar enganado, gosta de o ver portar-se como um labrego.
O que o inquérito nos traz de novo, e de que já suspeitávamos, é a evidência de como aquilo e aqueles a que se costuma dar o nome desagradável de “sistema” – os chamados “burocratas” e “homens sem rosto” que fazem parte dos governos e das administrações, e incluem membros das Forças Armadas, Serviços Secretos, etc. –, de quem geralmente esperamos os mais elaborados e sinistros esquemas de bloqueio, maquinação e conspiração (vide os casos mencionados, nomeadamente o Irão-Contras), podem ser a última linha de resistência da democracia e do Estado de direito ante as ações ilegítimas de um governante eleito.
Pessoas como Fiona Hill e Alexander Vindman, assessores de política externa e segurança nacional dos quais normalmente nunca conheceríamos a existência e que encararíamos, à partida, como yes women e men mas que fizeram os possíveis para combater aquilo que lhes surgiu como impropriedade e corrupção dos poderes presidenciais e tiveram a coragem de, agora, o denunciar ante o país. E mesmo alguém como o ex-conselheiro de Segurança Nacional John Bolton, considerado um radical de direita mas que informado do esquema para trocar apoio dos EUA à Ucrânia por ataque a um adversário político do presidente o terá, de acordo com o relato de Hill, qualificado como “negócio de droga” (ou seja tráfico e ilegalidade), fazendo questão de se demarcar de imediato e mandando informar o conselheiro legal do Conselho Nacional de Segurança do que se estava a passar.
Pode ser, claro, que algumas destas ações não se devam a imperativos éticos mas a disputas de poder, e portanto não mereçam qualquer louvor – de resto, nenhuma destas pessoas, que se saiba, reportou o caso “para fora” até ser chamada a testemunhar. Mas, precisamente, o que ressalta disto que vamos sabendo é que apesar de todas as estruturas formais existentes num país como os EUA para, em teoria, evitar o sequestro do poder para benefício ilegítimo de quem o ocupa, a resistência passa por indivíduos – como o whistle blower que efetuou a denúncia e outros funcionários que terão tentado obstaculizar o que se estava a passar e vêm agora confirmar o que ele denunciou.
Teremos pois de concluir que aquilo a que damos o nome de “regular funcionamento das instituições” depende em grande parte do bom senso e sentido de decoro de quem ocupa lugares de decisão democraticamente preenchidos. E que é assim possível, mesmo em sistemas de checks and balances, ou seja, nos quais o poder está distribuído por várias instituições e existem várias instâncias de validação e fiscalização, como é o caso das democracias e Estados de direito consolidados, um “rei louco” transformar o governo numa associação mafiosa perante a impotência de uns e o aplauso e/ou cumplicidade de outros.
Pode assim Trump mandatar no seu advogado pessoal, Rudolph Giuliani, que não tem qualquer cargo formal na administração, o poder de dar ordens a embaixadores e desenvolver contactos e “negócios” que afetam a política externa americana e a segurança nacional, criando desta forma canais paralelos e sem qualquer controlo, sem rasto de “papelada” ou de necessidade de consulta dos organismos criados para esse efeito. É a autocracia no seu esplendor, com o que implica de absoluta corrupção da democracia.
E – essa é uma das lições fundamentais do que estamos a ver – isto pode suceder sem que, aparentemente, a parte dos americanos que apoia Trump, incluindo a maioria do Partido Republicano (e portanto uma porção considerável do sistema democrático), considere que se está a passar algo de errado. O mandato conferido por via democrática pode assim transformar-se num processo – exposto, exibido e televisionado – de destruição da democracia.
Porque, estamos a descobrir, para muita gente democracia será a existência de eleições, onde se esgota a produção de legitimidade. Legitimado por eleições e pelo voto do povo, um governante poderá, nessa perspetiva, desprezar os formalismos do sistema democrático, as suas regras constitucionais e legais, como um juiz que uma vez na direção do tribunal aplicasse uma lei própria, mandando os códigos fora. Pode dizer “a lei sou eu, o poder sou eu, a verdade sou eu que decido o que é e estou-me nas tintas para o que os burocratas dizem”.
Trump é apenas o sinal mais exposto, porque apesar de tudo mais sindicado, desse vírus que nos habituámos a dar por normal nas democracias “incipientes” da América Latina e de África e que, inopinadamente, está a tomar de assalto o Ocidente: o caudilhismo.
O inquérito de
impeachment de Trump demonstra que mesmo numa democracia consolidada e aparentemente robusta é possível transformar o governo numa associação mafiosa – e manter o apoio entusiástico de uma parte considerável das pessoas. Consideremo-nos avisados.
Jornalista
No concerto do Coliseu do Porto, numa noite de chuva dura, Katia Guerreiro homenageou José Mário Branco, uma noite intensa, emoções altas e baixas, maiores e menores, que sempre seria, mas que foi mais longe em cada um dos extremos pela morte nem dois dias antes do seu mestre que chorou e festejou. O fado é um porto de abrigo mesmo do próprio fado.
Desde muito cedo percebi que precisava do Porto na minha história com Lisboa, que Lisboa não era nada sem um Porto à espreita, um Porto contraste, um Porto possibilidade, um Porto outro. Foi muito claro isso, um dia, há muito tempo.
Porto tem porto no nome mas é Lisboa quem tem porto dentro. Lisboa é sempre porto, de chegada, de desabrigo, de caixotes, contentores, gruas, visitas breves e longas, de cruzeiros e cruzados – é sobretudo porto de partida e de começos. Mas nem Porto nem Lisboa são portos de abrigo. Porto é abrigo, Lisboa é porto. Lisboa não é porto de abrigo, coisa que se define por tirar o medo, esperar que amaine o pânico para depois seguir viagem, e Lisboa não é puta de marinheiros lívidos de temporais, que Lisboa tem as suas ondas e os seus vendavais. E o Porto é abrigo, mas não porto de. É abrigo, estabilidade e constância, um tempo mais lento, uma identidade cosida a fio mais forte, mas abrigo que dura e não abrigo enquanto chove. Até porque se chove, é no Porto que chove.
Quem achava que tinha porto de abrigo em Lisboa era Paul (Bruno Ganz), em Dans la Ville Blanche, de Alain Tanner (1983), mecânico de um petroleiro que ficou apeado na cidade, com uma câmara, para além da outra. Achava que tinha abrigo em Rosa (Teresa Madruga), empregada da pensão onde fica, enquanto escrevia cartas sobre nada à mulher na Suíça, uma Suíça não branca mas limpa, também com um rio, mas não o Tejo. No Cais do Sodré houve em tempos um restaurante chamado Porto de Abrigo, que era porto de abrigo. A super-8 de Paul a mostrar a crueza de uma Lisboa, ruas, pessoas, ruídos que ao mesmo tempo são de outro século e de ontem à tardinha. Mas o Tejo e as suas margens, a luz crua e completa como só Lisboa tem mas nunca avisa qual, estão lá como hoje.
Rosa um dia desapareceu, ou deixou de aparecer. Paul podia ter lido Silesius, trezentos anos antes, e achar que a Rosa não tem porquê (Die Rose ist ohneWarum). Mas não foi isso. Rosa desapareceu quando percebeu que Paul só buscava um porto de abrigo, e não queria um porto onde se começa, nem um abrigo onde se fica. No final, quando ele sai de Lisboa, de comboio vai sentado, e há imagens de uma Rosa. Mas vai como passageiro, e Tanner já tinha falado disto, em 1976, no “Jonas qui aura 25 ans en l’an 2000”, o passageiro apenas tem o que lhe mostram, mas o condutor penetra na paisagem, e os carris que parecem juntos abrem-se sempre à medida que se avança. O passageiro nunca tem de lidar com isto, mas o condutor descobre que as linhas são sempre paralelas, permitem andar, mas nunca se cruzam.
Jonas é um filme sobre o que não aconteceu do maio de 1968, como FMI do José Mário Branco é sobre o que não aconteceu cá. Katia Guerreiro fez uma linda homenagem ao seu mestre, à improbabilidade da relação que criaram e à força criativa e transformadora desta relação, a única coisa que conta. Katia Guerreiro e a sua voz verdadeira, profunda, quente, nasal, inteligente, poderosa, próxima mas nunca familiar, porque a familiaridade gera o desprezo. Também evocou Argentina Santos, que ousou os melhores rrs de sempre e os cantou em A Minha Pronúncia, rrs que contrastam com os rrs de Carminho que sintetizam o novo-riquismo que rodeia o fenómeno. Os rrs de Katia estão no ponto perfeito de intersecção entre uns e outros.
Katia cantou RosaVermelha do Ary dos Santos, mas tantas vezes cantou As Rosas de Sophia, rosa e rosas que têm rrs, que se casam com a Promessa “da vida multiplicada”. Paul escreve num telegrama, na estação de Santa Apolónia, que o “único país que realmente ama é o mar”. Talvez também fosse isso que Sophia realmente amasse, o mar, talvez abrigada na Casa Branca, na praia da Granja, que não é Lisboa nem Porto, mas é Lisboa e Porto. Como ela foi.
Nuno Sousa está empenhado em ajudar os doentes com lesões na medula espinhal a ganhar maior mobilidade e sensibilidade do mundo ao seu redor. O médico e presidente da Escola de Medicina da Universidade do Minho (UM) reconhece que não sabe quando é que começou a gostar de medicina, mas sabe quando começou a interessar-se pelas questões relacionadas com a biologia, a curiosidade de saber mais os aspetos que estavam ligados à saúde – “foi um gosto que fui desenvolvendo ao longo da adolescência”.
Durante esse período, o investigador em neurociências tinha a certeza de “querer estar ligado à geração de novo conhecimento”, a que se juntou a “felicidade de ter al
guns professores” que foram “indicando o caminho”. “Disseram-me que com o tipo de investigação que parecia interessar-me mais, se calhar, a melhor formação de base para mim seria medicina”.
E Nuno lá foi estudar Medicina, embora confesse que “os primeiros anos do curso não eram muito vibrantes”, pela falta de contacto com os doentes, o que acabou por não ser muito apelativo. Até que chegou a altura de fazer investigação: “Realmente sentia-me muito feliz e muito entusiasmado. Sentia uma enorme paixão por aquilo que fazia ali.” O curso terminou com a escolha de neurorradiologia como especialidade clínica.
Acabou a ser médico e a dar aulas na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, mas há cerca de oito anos que não pratica “atividade clínica clássica”. Hoje em dia está mais ligado à Escola de Medicina da UM e à investigação. A única ligação clínica que tem agora é “estar envolvido em investigação clínica”.
Tecnologia para devolver movimentos e sensações
Foi dedicado mais ao laboratório do que ao consultório que acabou a vencer o Prémio Melo e Castro 2018 atribuído pela Santa Casa da Misericórdia de Lisboa. Nuno Sousa e a sua equipa do Instituto de Investigação Fundamental da Escola de Medicina da UM estão a desenvolver uma investigação sobre o uso de exoesqueletos na recuperação de pessoas com lesões vertebromedulares.
“A medula espinhal é a forma como o cérebro se liga ao resto do corpo. E, portanto, quando há uma lesão da medula basicamente ela tem dois grandes componentes: um que é motor, e que é o que provavelmente é mais visível, e um componente sensorial.” A investigação de Nuno Sousa tenta responder aos dois. “Quisemos fazer alguma coisa de diferente. Combinando tecnologia que pudesse endereçar os défices motores, obviamente, e os défices sensoriais.”
Para esse resultado, o grupo de investigação usa esqueletos externos, cujo papel é “dar estabilidade e ser um complemento para o movimento”. “Fazemos uma leitura dos sinais elétricos do cérebro e tentamos interpretar esses sinais por forma a transmitir informação à máquina – ao exoesqueleto – para ajudar a mitigar parte do problema motor daquele indivíduo.” Através de um centro de controlo que permite que haja ação motora, ao integrar os sinais que dependem da vontade da pessoa para fazer movimento.
Ou seja, esta máquina vai tentar intervir no problema da ligação entre neurónios que impedem o movimento. Exemplificando, uma pessoa com lesão na medula espinhal diz ao cérebro para levantar o braço direito, mas não o consegue fazer, porque esta comunicação está danificada. “O que nós tentamos fazer é curto-circuitar este problema. Criamos uma ferramenta que permite que haja movimento e tentamos ler o comando do neurónio central e dar esse comando à máquina para ajudar o indivíduo a fazer aquele movimento.”
Mas esta é só a parte motora. Para acrescentar a parte sensorial – por exemplo, perceber as texturas, a pressão de pôr um pé no chão, o toque de uma mão na outra –, Nuno Sousa e a sua equipa estão a tentar construir mecanismos que permitam a quem tem este tipo de lesão ter uma informação sensorial e que ela seja relevante para que essas pessoas consigam interpretar o mundo externo. Este trabalho é feito recorrendo a diferentes técnicas, entre as quais, a realidade virtual.
Para já, o sistema ainda é relativamente simples, uma vez que estes são ainda “os primeiros passos de um processo de aprendizagem”, sublinha o neurocientista.
O entusiasmo de ajudar os doentes
Toda esta investigação foi distinguida pelos Prémios Santa Casa Neurociências, no valor de 200 mil euros. Um montante que, segundo o médico, representa duas coisas: “Um reconhecimento, que é por si só um estímulo para a equipa, e a segunda coisa é que é absolutamente instrumental para que possamos desenvolver este tipo de trabalho. Sem este apoio financeiro que o prémio traz consigo, obviamente não era possível para nós fazer este tipo de estudos e eles teriam de decorrer a um ritmo completamente distinto e eventualmente sem nunca conseguirmos alcançar uma boa parte dos objetivos a que nos propusemos.”
É que, apesar de muito satisfeito com a folga que bolsas deste género dão aos projetos científicos, Nuno Sousa tem a noção de que este é um trabalho sem fim, já que “há sempre uma pergunta nova” que nasce em cada investigação científica. “Costumo dizer que os bons trabalhos de investigação respondem a uma pergunta, mas abrem um conjunto vastíssimo de novas perguntas. E isso para um indivíduo com as minhas características de personalidade é absolutamente fascinante. Detesto a rotina. De facto, adoro estar envolvido neste tipo de trabalhos em que há sempre oportunidade de colocarmos novas questões, de nos juntarmos com outras pessoas que têm o mesmo entusiasmo e de ter a ilusão – espero que, às vezes, verdadeira – de que fizemos um pequeno contributo para ajudar os nossos doentes.”