Diário de Notícias

Obrigado, José Mário Branco

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Eu só queria agradecer. Queria dizer-lhe obrigado por ter escrito boa parte da banda sonora da minha vida. Agradecer aquela obsessão pela perfeição que mostrava por cada palavra e acorde que escrevia, pela forma como dizia e cantava, por cada disco que produzia ou arranjava, por cada banda sonora que compunha. Uma obsessão que era mais do que tudo um profundo respeito por quem o ouvia e por si próprio. Aquele que não lhe permitia, como disse numa das suas últimas entrevista­s, cantar para um público que dizia já não entender ou que tinha reações que ele não percebia. Era também esse respeito que fez que tudo o que fez fosse especial. Nem uma música que não fosse a que queria mesmo mostrar, nem um disco que não quisesse mesmo produzir, nem uma palavra que não tivesse mesmo vontade de dizer. Sem concessões a nada nem a ninguém, firme e solidário no seu caminho, pagando muito provavelme­nte o preço em solidão. Queria agradecer-lhe o exemplo de integridad­e, de coragem, de rigor, de coerência, de decência, mas sobretudo de desassosse­go e de não conformism­o. Aquela coisa de estar absolutame­nte certo sobre aquilo por que se deve lutar mas viver sempre na dúvida de qual a melhor maneira de o fazer. Talvez fosse essa a razão de tantas vezes parecer zangado. Talvez mais do que uma zanga com os outros e com o caminho das coisas, fosse com ele próprio. Uma inquietaçã­o sobre a sua vida, de enorme incómodo por não estar certo do caminho. Talvez fosse essa a sua sede funda, a sua fome antiga. O de o sentir a olhar de lado para mim a perguntar “tens a certeza de que isso é a coisa certa a fazer?”, uma espécie de “qual é a tua, ó meu?” para meu consumo privado. A mim, que nunca me cruzei com ele, com quem nunca troquei uma palavra e que se soubesse da minha existência era muito bem capaz de a julgar não coincident­e com a que ele acharia a mais apropriada. Nada disto a morte dele matará. Obrigado, José Mário Branco

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