Diário de Notícias

Bolsonaro tem uma declaração pública em que diz que “o cinema brasileiro precisa de um filtro”

Wagner Moura. O ator que interpreto­u Pablo Escobar na série Narcos está em Lisboa como júri do festival de cinema LEFFEST. Foi aí que apresentou a sua primeira longa-metragem, Marighella, que volta a ser exibido amanhã no Centro Olga Cadaval. O filme est

- INÊS N. LOURENÇO

“Se o filme tivesse sido lançado em 2013, não seria a mesma coisa. Ele ganhou um contexto muito grande e não me incomoda que, a propósito dele, se fale mais de política do que de cinema.”

A fila para assistir ao filme Marighella dava a volta ao Teatro Tivoli, em Lisboa, e a sessão com o ator e realizador Wagner Moura, acompanhad­o do argumentis­ta Filipe Braga e de Paulo Branco, gerou uma onda gigante de aplausos e palavras de ordem ditas em português do Brasil. As razões que uniram os espectador­es eram tanto exteriores ao filme como sobre o que se ia ver e no final a conversa com o público fez confluir as duas situações.

Marighella, a primeira realização do ator de Tropa de Elite e de Narcos, tem uma carregada marca política: Carlos Marighella (1911-1969), escritor, deputado e guerrilhei­ro brasileiro, esteve na linha da frente da resistênci­a à ditadura militar do país. O filme acompanha a sua vida e luta, desde 1964 até à sua morte violenta, em 1969, e não tem medo de ser uma mensagem direta à atual realidade do Brasil. Se Marighella, no seu tempo, foi considerad­o o “inimigo número um” do regime, o filme de Wagner Moura também paga um preço: a estreia no seu país está seriamente comprometi­da, o que impede a sua exibição em Portugal, onde já tem distribuid­ora (Alambique Filmes). Em entrevista, o realizador explicou o quanto o seu filme é incómodo.

Apesar de se passar nos anos 1960, Marighella tem uma evidente ressonânci­a do Brasil do presente. Qual foi a origem do projeto e como é que evoluiu até este momento da sua exibição em festivais?

Sempre me senti fascinado pela figura de Marighella, da mesma maneira que me perturbava ele ter sido apagado da história do Brasil. E em 2013 saiu a sua biografia, escrita por Mário Magalhães [na qual o filme se baseia]. Havia esse livro, existia também um documentár­io, e achei que um filme de ficção poderia ser um contributo interessan­te para recuperar a sua memória, no sentido de o dar a conhecer às pessoas, já que o cinema é uma arte mais popular do que a literatura. No começo, quis ser o produtor, mas depois achei que poderia ser um exercício desafiante para mim como realizador. Então, eu e o Filipe [Braga] fomos trabalhand­o o argumento – durante esse tempo, fui fazendo Narcos –, e quando voltei já o Brasil e o mundo caminhavam em direção ao conservado­rismo político, um moralismo evangélico muito forte no Brasil, em que o Bolsonaro se insinuava como a liderança da extrema-direita, mesmo que ninguém o levasse muito a sério… Estávamos em 2016, houve o golpe parlamenta­r que derrubou a Dilma Rousseff, e quando nós filmámos Marighella, no final de 2017, já estávamos no governo Temer e já o Brasil se tinha polarizado completame­nte. Essa nova realidade teve reflexo na rodagem do filme? Sem dúvida. Primeiro, foi muito difícil encontrar financiame­nto para o filme; sofreu um grande boicote financeiro e logístico, e recebíamos ameaças o tempo todo. Já se vivia um momento muito tenso, mesmo sendo o tempo de pré-eleição de Bolsonaro. Mas isso, de alguma forma, foi positivo, porque todos os que estavam envolvidos no filme ficaram imbuídos de um sentimento forte de urgência, um sentimento de que era mesmo preciso fazê-lo – o facto de os atores me terem pedido para que os nomes das personagen­s fossem os seus próprios nomes foi algo que me emocionou muito, porque é simbólico do comprometi­mento que eles tinham. Em Berlim, quando o filme se estreou no festival, estavam quase 30 pessoas, entre equipa técnica e atores. Gente que não tem dinheiro para comprar bilhetes de avião… mas eles queriam estar ali naquele momento especial. Este filme tornou-se ele próprio a resistênci­a. Exatamente, o filme é um ato de resistênci­a. E acaba por ser também a interceção do intuito que eu, como realizador, tenho, com o espírito do tempo, o Zeitgeist. Se este filme tivesse sido lançado em 2013, não seria a mesma coisa. Ele ganhou um contexto muito grande, e não me incomoda que, a propósito dele, se fale mais de política do que de cinema. É natural.

A escolha de Seu Jorge para interpreta­r Marighella também foi natural? Muito. Mas a minha primeira escolha foi o Mano Brown, líder dos Racionais MC’s, o grupo de rap mais importante do Brasil. Mano Brown é um grande poeta, com um discurso forte e aguerrido… Ele era para mim a peça fundamenta­l para uma personific­ação contemporâ­nea do Marighella. O que aconteceu foi que os nossos ensaios chocaram com o mês em que os Racionais tinham mais concertos, e imediatame­nte pensei no Seu Jorge, que é talvez um dos artistas mais talentosos que conheço. Ele canta bem, borda, pinta…

Marighella era para se estrear neste mês no Brasil… No dia 20 de novembro. O que é que impede essa estreia? O que se passa é que o governo infiltrou-se nas agências que fomentam a cultura no Brasil, colocou as suas pessoas lá dentro, e essas pessoas tornaram impossível, burocratic­amente, a assinatura de qualquer documento que permita que um filme como Marighella estreie. É isto que se passa. E quando falo de Marighella falo também de qualquer outro filme, por exemplo, com temática LGBT. O próprio presidente tem uma declaração pública em que diz que “o cinema brasileiro precisa de um filtro”, porque não se pode deixar que filmes que “agridam a moral da família brasileira sejam produzidos no Brasil”. Então não há uma previsão de estreia possível? Não há qualquer perspetiva. Enquanto figura do meio artístico e mediático, sente necessidad­e ou responsabi­lidade de se expressar politicame­nte? Sinto. Mas isso sou eu… Durante a ditadura militar no Brasil, um cineasta brasileiro, Carlos Diegues, cunhou um termo de que eu gosto muito, “patrulha ideológica”. Que é a cobrança que a esquerda faz para que as pessoas se posicionem, falem e se exponham. Sou um homem de esquerda e sei que a esquerda é muito chata. Sei que há gente que tem medo ou não está preparada… É a mesma cobrança que existe, por exemplo, para que homossexua­is saiam do armário. Sou contra isso. As pessoas devem colocar-se na medida das suas convicções. No meu caso, é natural, eu não conseguiri­a ser de outra forma. O que faço como artista é um depoimento. Acha que o Brasil está a debater-se com um certo esbatiment­o da memória histórica?

A memória histórica, sim. E a memória recente também mostra isso: onde estavam os 38 milhões de pessoas que Lula tirou da miséria quando o prenderam ou quando derrubaram a Dilma? Onde estavam quando Bolsonaro foi eleito? As pessoas acostumam-se a uma condição e pensam que essa condição é dada e não que é conquistad­a. Hoje, com a deterioraç­ão da economia, o desemprego e as conquistas comprometi­das, as pessoas começam a dar-se conta de que viveram um momento na história de um Brasil que não era assim. Pela primeira vez houve um presidente [Lula da Silva] que se preocupou em atacar o problema fundamenta­l que o nosso país tem, que é a desigualda­de social. Nunca houve tantos negros na universida­de, tantos pobres saindo da linha de miséria e tanta gente acedendo à classe média. Isto é uma reflexão essencial sobre a memória. E a Academia, as artes, mesmo o jornalismo sério, tem uma função muito clara, porque as narrativas são facilmente manipulada­s e transforma­das. A certa altura, no filme, fala-se da impossibil­idade de matar “palavras e mentiras”. Esse é um dos desafios atuais que se vive no Brasil? Estamos a viver um momento – e eu falo globalment­e – em que a verdade tal como a conhecemos acabou. O fenómeno das fake news, que é um fenómeno tecnológic­o, é assustador. Eu, por exemplo, que sou vítima frequente de fake news, nem sequer tenho rede social, ou seja, não tenho armas para me defender. Atualmente, posso fazer um vídeo com a sua cara e a sua voz e colocá-la a dizer qualquer coisa. A propósito, o Bolsonaro elegeu-se com uma história impensável, de que a esquerda tinha feito biberões com o bico em forma de pénis… Eles espalharam isto e as pessoas acreditara­m! É de um alucinado. O que é que se faz perante isto? Faz-se filmes... A sessão que aconteceu no Teatro Tivoli, no passado domingo, e que já foi apelidada de “histórica” pela emoção política que animou a sala, tem equivalent­es no percurso de Marighella em festivais? Todas têm sido mais ou menos assim. Em Sydney foi assim, em Seattle, em Berlim então foi das mais emocionant­es… O filme virou um símbolo da resistênci­a. E eu fico muito feliz, porque ao mesmo tempo que sei que existe uma onda de ódio em cima de mim, existe também aquilo que se viu nessa sessão, muita gente que quer que este filme se estreie, por várias razões: pela memória do Marighella, pela situação do Brasil, pela liberdade de os brasileiro­s o poderem ver e por respeito pela nossa equipa. A sessão de domingo foi muito bonita.

O ator Wagner Moura é mais conhecido pela sua presença no filme Tropa de Elite ou como protagonis­ta de Narcos. Mas é o seu lado de realizador que o põe no centro da polémica. “Ao mesmo tempo que sei que existe uma onda de ódio em cima de mim, existe também aquilo que se viu nessa sessão, muita gente que quer que este filme se estreie.”

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