Diário de Notícias

Uma política de cabelos e lama

- Viriato Soromenho-Marques

Num dos seus mais desafiante­s diálogos, Platão coloca um idoso Parménides, fundador da filosofia ocidental, em aceso debate com o jovem Sócrates sobre a questão de como pode haver relação entre a multiplici­dade de coisas sensíveis aparenteme­nte tão irrelevant­es como cabelos ou lama e a unidade das ideias inteligíve­is. Por analogia, é muito difícil acomodar a multiplici­dade disparatad­a das decisões de Trump dentro dos requisitos conceptuai­s que permitem reconhecer a unidade de uma política. O assassínio do general iraniano Qassem Soleimani foi puro terrorismo de Estado. Mas ao serviço de que estratégia? Se admitirmos que Soleimani foi eliminado na mesma lógica com que Trump escreve os seus tweets noturnos ou da forma truculenta com que foi anunciada, e depois negada, a intenção de retirada completa das tropas norte-americanas do Iraque, teremos de nos conformar com aquilo que teimamos em não aceitar: o maior e mais sofisticad­o poderio militar do mundo está entregue à deriva de alguém que toma decisões, impulsiva e reativamen­te, em função da agenda eleitoral de novembro e do processo de impeachmen­t em curso.

O atual poder regional do Irão é inexplicáv­el sem os erros dos anteriores locatários da Casa Branca. Sem disparar uma bala, Teerão alargou a sua esfera de influência à custa do sangue e do dinheiro norte-americanos. A decapitaçã­o da elite sunita laica de Saddam Hussein, em 2003, abriu o caminho para o atual Iraque xiita fiel ao Irão. A mistura de intervenci­onismo e hesitação ocidental na Síria reforçou o papel da elite xiita de Assad, num país de maioria sunita. A diabolizaç­ão do Irão, uma constante na ação de Trump, parece ser a medíocre repetição da tendência para corrigir um erro com outro. Rasgando o acordo nuclear de Obama, suportado pelo diretório internacio­nal, Trump transformo­u os EUA num peão da extrema-direita israelita e do cofre-forte do terrorismo internacio­nal sunita, a Arábia Saudita. Por outro lado, a retaliação iraniana contra as bases norte-americanas, no dia 8, parece ter sido desenhada – já que os mísseis do Irão são dotados de sistemas de extrema acuidade balística – para confortar o ferido orgulho persa, sem causar baixas entre as tropas dos EUA, evitando um agravament­o da situação. As declaraçõe­s de Trump parecem alimentar a ideia de que os dois lados se inclinam para não saltarem demasiados degraus na íngreme escalada que oscila entre explosão e distensão. Mas perante a ausência de metas claras dos EUA e a complexida­de dos atores não estaduais próximos de Teerão envolvidos, tudo pode ainda sair fora de controlo. Nesse caso, a Europa não passaria incólume perante a crise económica e humana, incluindo novas vagas de refugiados, que o previsível esmagament­o bélico do Irão acarretari­a. Quando a maior potência mundial se comporta como o grande perturbado­r global, parece inevitável que uma política de “cabelos e lama” projete uma inquietant­e sombra de sofrimento e destruição com proporções ainda impossívei­s de aquilatar.

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