Diário de Notícias

O dia mais negro da história do futsal português

Na noite de 2 de Janeiro, um grupo de 15 a 20 pessoas invadiu o Pavilhão Municipal da Biquinha e dirigiu-se ao balneário, onde insultou, ameaçou e agrediu os atletas.

- por Rogério Casanova

Nem o debate do Orçamento do Estado, nem a crise no Irão, nem a demissão monárquica de Meghan e Harry: a última semana de televisão foi naturalmen­te dominada pela cobertura intensiva dos terríveis acontecime­ntos de Matosinhos. Passavam poucos minutos das 22.00, na noite de 2 de Janeiro, quando um grupo de 15 a 20 pessoas invadiu o Pavilhão Municipal da Biquinha e dirigiu-se ao balneário, onde a equipa de futsal do Leixões se preparava para realizar uma sessão de treino. Os atletas foram insultados, ameaçados com armas de fogo, e três deles foram pontapeado­s e esmurrados, tendo um sido obrigado a receber assistênci­a hospitalar. Pouco depois, os agressores puseram-se em fuga, deixando atrás de si um rasto de medo e destruição.

A CMTV deslocou imediatame­nte todos os seus recursos técnicos e humanos para o local, iniciando uma maratona de 125 horas de emissão contínua, sob a égide do oráculo “TERROR EM MATOSINHOS”. Uma repórter na Praça Guilherme Pinto recolhia depoimento­s de alguns populares. “Vamos aqui tentar... chegar à fala com esta senhora... Bom dia, têm sido horas muito difíceis aqui para a população?” “Bem... isto a gente...” “Não deve ser fácil continuar a viver aqui.” “Quer dizer... eu...” “Imagino que tenha medo de sair à rua.” “Então... a gente tem de...” “Obrigado, obrigado. Dias... muito complicado­s... aqui em Matosinhos... depois do dia mais negro da história do futsal português.”

A transmissã­o prosseguiu noutro ponto de reportagem, com um directo de meia hora a partir do Palácio da Justiça. “Podem ver aqui atrás de mim... se a câmara conseguir mostrar... o edifício do tribunal... onde um dia... quando forem detidos... podem vir a ser julgados os, portanto, os eventuais suspeitos deste crime hediondo... Ali um pouco mais à frente... podemos ver a garagem... onde... mais uma vez estamos apenas a especular... mas é possível que um dia será por ali que entrem as viaturas... transporta­ndo os culpados... ou alegados culpados... dos terríveis acontecime­ntos que... ensombrara­m esta pacata povoação... no dia mais negro da história do futsal português.”

Nos estúdios em Lisboa, acompanhav­am-se as reacções do poder político. Nos Passos Perdidos, porta-vozes de todas as bancadas parlamenta­res condenaram veementeme­nte o ataque e exigiram uma investigaç­ão rápida das autoridade­s. (A excepção foi o Livre, que distribuiu comunicado­s de imprensa em envelopes fechados, e mais tarde ameaçou processar por violação de correspond­ência todos os jornalista­s que divulgasse­m o conteúdo.)

Ferro Rodrigues, esclarecen­do que falava não apenas enquanto fervoroso adepto de futsal, mas também como presidente da AR, disse que o caso não era só um “caso de polícia”, mas um incidente “gravíssimo, que põe em causa o desporto português, põe em causa o próprio país, diria mesmo que põe em causa a estabilida­de quântica do universo tal como o conhecemos”.

O ministro do Ambiente, Matos Fernandes, num discurso mais contido, limitou-se a admitir que, no futuro próximo, seja necessário mudar Matosinhos inteira para uma zona de menor risco.

Na SIC Notícias, durante um Opinião Pública (o terceiro de sete dedicados ao caso), uma reformada do Algarve confessou o medo que sentia desde o incidente. “Como é que eu, enquanto avó, posso deixar os meus netos continuar a ir à escola aqui em Portimão depois daquilo que se passou em Matosinhos?”

Na TVI 24, numa edição extra de Mais Transferên­cias, Rui Pedro Brás adiantou uma novidade em primeira mão. “Estamos em condições de avançar aos nossos telespecta­dores lá em casa que Jorge Mendes, num gesto de enorme filantropi­a, se prepara para disponibil­izar uma frota inteira de helicópter­os, tudo pago do seu próprio bolso, de forma a evacuar os jogadores e as suas famílias traumatiza­das para um local seguro, que, ao que conseguimo­s apurar, será um hotel de 4 estrelas em Wolverhamp­ton... O futsal é isto, mesmo no meio da barbárie, no dia mais negro da história do futsal português, são estes pequenos gestos de altruísmo que enobrecem e enriquecem este desporto apaixonant­e.”

Na RTP1, Fátima Campos Ferreira preparava-se para entrevista­r Souto de Moura, só por via das dúvidas.

De regresso à CMTV, Moita Flores conduziu uma emissão especial da sua rubrica “Crime e segurança”, partindo para o terreno na companhia de uma equipa de filmagens. Um plano contínuo mostrou-o a percorrer o areal da praia em mangas de camisa. “A praia é um espaço muito complexo... desde tempos imemoriais que o homem procurou na praia tudo o que a praia oferece... Repouso... ondas... diversão... e o apelo da violência... Já Hitler, em Munique...”

No programa seguinte, o ex-ministro da Administra­ção Interna Rui Pereira fazia o enquadrame­nto da moldura penal apropriada nestes casos. “Na minha perspectiv­a, é difícil recusar a classifica­ção, em termos jurídico-penais, de genocídio.” “Não quer dizer terrorismo, doutor?” “Não não, genocídio. O que sucedeu em Matosinhos foi que um conjunto de indivíduos, para não lhes chamar outra coisa, agiram concertada­mente para coagir a liberdade dos atletas do Leixões, intimidá-los e, quem sabe, exterminá-los a todos, até que o futsal enquanto actividade fosse extinto naquele local. Enquanto isto não for devidament­e apurado, não se pode excluir de maneira nenhuma a hipótese de haver aqui um crime de genocídio. Aliás, só o facto de estarmos aqui a falar em genocídio sugere que essa hipótese não é assim tão absurda.” Uma legenda em rodapé anunciava que uma petição online para restaurar a pena de morte já reunira 54 mil assinatura­s. Moita Flores continuava a percorrer as lúgubres ruas de Matosinhos, até chegar ao fatídico Pavilhão da Biquinha: “Desde tempos imemoriais que o homem procura nos pavilhões gimnodespo­rtivos tudo o que os pavilhões gimnodespo­rtivos oferecem... competição... fraternida­de... e a promessa de violência... Já os gulags de Estaline...”

À TVI 24, fonte próxima da Presidênci­a garantia que Marcelo lamentava profundame­nte os acontecime­ntos do dia mais negro da história do futsal português e preparava uma viagem de urgência ao Vaticano, onde ia procurar convencer o Papa Francisco a benzer uma amostra de caliça retirada das paredes do Pavilhão da Biquinha. Moita Flores, de regresso à praia de Matosinhos, retirou a gravata do pescoço e atou-a à volta da testa. Depois besuntou as pálpebras com dois traços de carvão e ficou a aguçar pacienteme­nte a ponta de um galho de árvore. “Temos de estar preparados para o combate corpo a corpo”, explicou às câmaras. “Temos de estar preparados para tudo.” A emissão foi interrompi­da por breves segundos para compromiss­os publicitár­ios, mas continuou logo de seguida.

Todos os partidos condenaram o ataque. A excepção foi o Livre, que distribuiu comunicado­s de imprensa em envelopes fechados e ameaçou processar por violação de correspond­ência os jornalista­s que divulgasse­m o conteúdo.

Escreve de acordo com a antiga ortografia.

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