A casa onde os jesuítas querem trabalhar com os “conspiradores do futuro”
São padres, designers, artistas plásticos e empresários. O mais velho tem 78 anos, a mais nova 26, todos aceitaram o desafio de levar para a frente o projeto, que já foi sonho de gerações de jesuítas. Dar à revista Brotéria uma dimensão maior: a de casa de arte, cultura e diálogo. As portas abrem no dia 23 às 18.00.
Assim que Benedita abre a porta lateral do antigo palacete dos Condes de Tomar, construído no século XVI, uma imensidão de espaço, de luz, de branco entra pelos olhos dentro. E a primeira reação de quem conheceu aquela casa nos anos de 1980, como Hemeroteca, e que retém a imagem, é certo, de um espaço de memórias, história, sabedoria, mas também fisicamente escuro, sombrio, é de que afinal, por ali, há um mundo novo, um projeto novo, e um imenso trabalho a fazer para trazer de volta a casa que ocupa quase um quarteirão de Lisboa, junto ao Largo da Misericórdia, no coração do Bairro Alto.
Afinal, aquela casa, que abrirá de novo portas ao exterior no dia 23 de janeiro, durante séculos albergou famílias aristocráticas, enriquecidas pela expansão pelos mares e políticos com destaque na sociedade portuguesa do século XIX – reza a história de que terá sido a última morada da família Costa Cabral. Tinha tetos pintados de origem, que mostram um outro mundo e a outras cores, tinha paredes que escondiam a robustez da pedra que hoje se mostra firme e maciça ao tempo, tinha escadas em mármore que fazem jus à designação de palácio, tinha um ponto de luz vindo do céu, através de uma claraboia gigante, que irradia em todo o espaço.
Afinal, tudo estava lá, mas adaptado à função dada ao palácio pelo Antigo Regime, em 1971, a de arquivo municipal, Hemeroteca, o que foi, até 2013, altura em que o transferiram para outra área da cidade, mais aos 500 mil jornais e revistas que albergava. A casa que agora vai ser dos jesuítas foi adquirida pela Santa Casa de Lisboa, em 2012, e só depois cedida à Companhia de Jesus, por um período de 25 anos, através de um protocolo que prevê a colaboração entre as duas entidades, para dinamizar aquele espaço e aquela zona da cidade do ponto de vista cultural e envolvendo o Museu de São Roque, a Igreja e o Palácio Portugal da Gama, a nova Casa da Ásia, com que divide paredes.
Passaram sete anos, e, quando Benedita abre a porta lateral do n.º 3 da Rua São Pedro de Alcântara, deixa à mostra todo o trabalho de restauro e de conservação feito nos últimos tempos. Os novos inquilinos vão ter em mãos o projeto que já foi sonho de algumas gerações de jesuítas ligados à Brotéria e à Casa de Escritores: a revista de botânica, criada em 1902 por três jesuítas, e que ao longo de quase 120 anos tem marcado a ciência e a cultura portuguesa, vai deixar de ter só a dimensão da escrita e do papel, para se abrir a outras linguagens e dimensões. Um projeto de gerações que pretendem que seja de mais outras tantas no futuro. E “não temos de fazer tudo hoje, porque o projeto é para 25 anos. É para se ir construindo e fazendo”, dizem.
Ideias há muitas, desejos, intenções e filosofias sobre o que aquela nova casa da Companhia de Jesus deve ser, também. Nas palavras do diretor-geral da Brotéria, Francisco Mota, 35 anos, jesuíta desde 2004, padre desde 2016, homem que já viveu em Boston, Londres, Oxford e Maputo, dedicado à investigação de temas sobre teoria política e teoria moral, “este projeto é de uma exigência enorme para nós, padres, que vamos viver aqui, e para todos os que trabalham connosco. Queremos que funcione mesmo
como uma casa, com uma marca forte na forma como recebemos e acolhemos todos os que passem na rua e queiram entrar. O desafio está em conseguirmos criar uma dinâmica de casa, familiar, mas juntamente com todo o trabalho rigoroso que aqui vamos produzir, sejam exposições, livros, conferências, debates”.
O regresso às origens, a São Roque
A localização do palácio leva os jesuítas às origens, a São Roque, ao local de onde partiram para tantas missões em séculos passados, depois de a companhia ter sido criada por Inácio de Loyola, em 1540. Agora, os jesuítas portugueses – ao todo, 147, espalhados por nove cidades – têm mais uma missão. E, de facto, a palavra que mais se ouve da boca de toda a equipa que integra o novo projeto é: casa – home, como diriam os ingleses, que por aquele palácio também passaram, de 1926 a 1966, e por este ser um local de encontro da comunidade que residia no país, sobretudo durante a II Guerra Mundial.
Ou seja, casa no sentido literal da palavra – porque irá albergar seis jesuítas, dos quais cinco padres, já distribuídos pelos quartos no sótão – mas também casa para a arte, sobretudo contemporânea, para a cultura, para todos os novos olhares que vagueiam pela cidade, crentes ou não, para as vozes que ainda não são ouvidas, para gente antiga, nova, que está a crescer, mas que esteja empenhada em “construir um mundo melhor”. Uma casa para “os conspiradores do futuro”, como dizem. Francisco Mota ressalva que esta poderá ser a diferença entre eles e outros centros culturais: “Não são uma casa, com pessoas a viver lá dentro. Esse é o nosso desafio.”
A visita do DN ocorre dois dias depois da mudança física dos padres e do resto da equipa. “As camas vieram há dois dias, portanto estamos cá todos desde essa altura, ainda com alguma tensão entre discussões sobre o que é fundamental e a programação, fios elétricos e e-mails para ler no telefone, mas vamos estando. Ainda é só um espaço físico. A outra casa já não é, e esta também ainda não”, diz o padre João Norton de Matos, de 56 anos, arquiteto de formação, professor de Estética e Teologia e de Teologia da Cultura, na Universidade Católica de Lisboa.
O DN encontra-os reunidos numa das salas emblemáticas do palácio. Entre planos, programação e discussão de ideias, o debate nunca será de menos, tem sido assim mesmo antes de se mudarem. Cada peça de arte, cedida por colecionadores que acompanham este projeto, algumas com a assinatura de artistas plásticos portugueses, como João Penalva e Rui Chafes, foi pensada e discutida meticulosamente para o espaço onde está. Neste momento, há já quatro peças distribuídas pela casa.
Dos céus de Osaka a Seda
A primeira, à entrada, tem a assinatura de Rui Chafes, Seda, 2017, segue-se, e trilhando o caminho da casa, um néon na zona da cafetaria, Give Me a Revolution, Paulo Mendes 2003, depois, na sala dos couros, as caixas de luz com impressões fotográficas – Chapa Quente (Blacklight 7) e Chapa Quente (Blacklight 8), Dias & Riedweg, 2014, e, por fim, na sala onde a equipa se encontra reunida, ao fundo, um verdadeiro altar para os céus de Osaka, Looking Up in Osaka, fotografia de João Penalva, 2005-2006. “Todas as peças que aqui estão são de autores conceituados, portugueses ou não, algumas são de colecionadores, que colaboram connosco, e que aceitaram disponibilizá-las para fazerem parte desta casa”, explica João Sarmento, 32 anos, diácono com ordenação sacerdotal marcada para junho deste ano.
É um homem da Maia – a terra que diz só ter a casa da mãe e da avó, “o que é o mais importante", ri-se – que começou por estudar numa escola de artes no Porto, idêntica à António Arroio, em Lisboa, que escolheu a escultura como formação e que cuja história de ligação ao catolicismo é simples. “Depois de ter crescido num ambiente tradicional, afastei-me. Voltei mais tarde, depois de conhecer jesuítas, que faziam trabalho na vila piscatória dos Açores de Rabo de Peixe.” João é hoje um dos moradores da nova casa da Brotéria e responsável pela área da arte naquele espaço, galeria e obras, juntamente com o padre João Norton de Matos, e mais duas artistas plásticas, Rita Rebelo de Andrade, de 27 anos, e Matilde Torres Pereira, também jornalista.
Como dizem, não interessa se têm 78, 26 ou 32 anos, o importante é que estão aqui para dar o melhor, “os mais antigos têm a sua experiência, a sua vivência, para nos orientarem e guiarem, nós temos outras coisas”, afirma Benedita Pinto Gonçalves, a jovem que se formou em Design de Comunicação em Belas-Artes, que fez mestrado em Gestão de Design e Cultura, em Londres, e que acredita que o “design pode fazer sobressair a arte e dar-lhe mais empoderamento”. Aos 26 anos, Benedita, que já conhece a casa quase tão bem como às palmas das mãos, confessa que sobre a palavra Brotéria só conhecia as revistas guardadas pelos avós nas estantes do corredor. Mas quis o destino que, um dia, alguém lhe falasse do novo projeto da Brotéria: “Que se ia tornar um centro cultural. E isto coincidiu precisamente com a altura em que pensava numa tese para o mestrado. Foi então que nasceu em mim a vontade de saber mais e mais sobre a Brotéria e de querer fazer parte do projeto”, conta-nos.
Rita Rebelo de Andrade, que como artista plástica assina Rita Ra, com formação em Designer de Comunicação, e que já abraçou outros desafios, como o Festival Eminente-2016, também diz: “Sinto-me em casa, em equipa. O trabalho que aqui estou a fazer é o de ajudar a pensar de que forma é que a arte nos toca, nos fala, como forma de comunicação, indo para além da palavra e do óbvio.” Sente-se atraída pelo facto de estar a pensar um espaço que “não tem o cunho ou a pretensão de querer desenvolver um trabalho com uma ideia fechada sobre o que é a arte e que caminho deve ser o da galeria, por exemplo. O interessante, sendo este um espaço que se quer de diálogo, é a procura para se poder trazer todo o tipo de artistas, de pessoas que têm algo a dizer. Pode ser um pouco naïf, mas é isso que me traz a este projeto”, afirma. João Sarmento remata explicando que o próprio espaço de galeria, no rés-do-chão, junto à entrada principal, está a ser pensado muito neste sentido, “e a primeira exposição reflete um pouco isso”.
Primeira exposição: memórias e futuro
“Todas as Coisas” é o mote para a primeira exposição que só abre no dia 25, apesar de a casa abrir as portas ao público no dia 23 e já com programação (ver caixa). “É um mergulho à memória da revista Brotéria, mas com uma perspetiva que pode ser o futuro para a forma como vamos trabalhar a matéria.” “Todas as Coisas” vai integrar as coleções de musgos, borboletas, cicíades feitas pelos fundadores da revista, vai ter instalações, vídeos, etc., no fundo, novas linguagens para “mostrar a memória da revista, de uma comunidade, de uma casa, mas também como uma galeria pode expor coisas normais e transformá-las em arte”, refere o padre João Norton de Matos. “Uma galeria é um dos espaços de maior liberdade que existe hoje em dia, e esta é um espaço que se quer pensar a si próprio”, sublinha ainda. João Norton de Matos seguiu primeiro o caminho da arquitetura, trabalhou uns tempos na profissão, que deixou para entrar na Companhia de Jesus. Aos 56 anos, professor de Estética e Teologia e de Teologia da Cultura, confessa que ainda gosta de arquitetura, que ainda descansa a ver sites de arquitetura.
Para ele, o objetivo desta galeria “é tornar mais porosos os limites entre a arte e a vida, o que é hoje o sagrado e o profano, no tempo da criação da Brotéria, para aqueles jesuítas era o campo, as plantas, as borboletas, descobriram mais de 2000 espécies", sublinha ainda.
Arte: ponto de encontro da fé e vida
A arte é silenciosa, mas é lida, é visual, e tem leituras diferentes, a arte pode ser o ponto de encontro entre a fé e a realidade, a vida urbana. "Quando olhamos para esta fotografia de João Penalva, dos céus de
Osaka, é impressionante”, deixa cair João Sarmento olhando para a obra colocada por cima do antigo oratório. “É impressionante este emaranhado que as cidades criam entre fios elétricos e ética. Nesta obra há um elevado contraste entre o céu amarelado, que deve ser das próprias luzes da cidade, e os cruzamentos de tensões e de conflitos da vida. Nela podemos encontrar sinais de esperança e de novidade. Para mim é isso que nos dá esta obra, alguém que vira a sua câmara para o céu, que se encontra com aquele emaranhado de fios, mas também com a luz que vem de cima. Foi isso que nos levou a colocá-la neste espaço”, explica.
A conversa flui e o padre João Norton de Matos não deixa de passar a mensagem de que “o diálogo com a cultura contemporânea tem de ter um olhar positivo. Vivemos numa sociedade plural, com outras velocidades, outras linguagens, mas os católicos têm de ter uma palavra a dizer neste contexto. Têm de procurar qual o diálogo que vamos ter e em que tom o devemos fazer. Temos de abrir esta caixa e tirar os tesouros que a linguagem e a mensagem cristã têm. Por exemplo, a fé cristã tem conteúdos para trabalhar a espiritualidade contemporânea, que também força o silêncio, a dimensão contemplativa, a dimensão de não ser só uma racionalidade muito dogmática e organizada”, vai explicando ao mesmo tempo que olha para a casa, para nos dizer: “No fundo, esta casa vai ter de fazer este trabalho, de passar uma mensagem e um olhar positivo através da linguagem visual.”
E é neste contexto que Manuel Cardoso, de 36 anos, o jovem que passou por Medicina
e deixou o curso para entrar no noviciado dos jesuítas, há 15 anos, que hoje termina o doutoramento de Filosofia Política ao mesmo tempo que colabora como padre na paróquia da Encarnação, no Chiado, desfia a expressão que dá título a esta peça. “Vivemos uma época social marcada pela guetização e, aqui, nesta casa, a Igreja Católica abre as portas para dizer: ‘Este espaço é nosso, mas queremos que seja de todos e para todos. Não é um gueto cultural católico, é um espaço eclesial, aberto a todos que connosco quiserem construir um mundo melhor.’ No outro dia estávamos a conversar e saiu-nos esta expressão: ‘Queremos trabalhar com todas as pessoas que tenham boas iniciativas, católicas ou não, com todos os conspiradores de futuro.’” No fundo é isto. Matilde Torres Pereira, jornalista e artista plástica, de 32 anos, mãe de três filhos, que se associou ao projeto, diz: “É um desafio permanente, de todos os dias, para se fazer que todos os grupos sociais, culturais e as comunidades que sintam que ainda têm de ganhar voz sintam que podem entrar em diálogo connosco, com esta casa e usufruir deste espaço.”
Por agora ainda é só espaço físico
A Brotéria tem nova casa, uma casa que ainda não tem os afetos nem as memórias do palacete da Lapa, que albergou os jesuítas desde o início do século passado, “mas lá chegaremos”, diz o padre Vasco Pinto Magalhães, de 78 anos e o mais antigo desta comunidade na Companhia de Jesus, e agora pároco da Igreja da Encarnação. Para ele, diz – enquanto nos mostra a sala dos couros e os três andares em que se distribui a biblioteca da revista, com as mais de 160 mil obras, que ficam agora disponíveis para consulta e investigação – “o sentido desta casa é o diálogo entre a vida e a cultura. É como se metêssemos a arte contemporânea na história, porque é preciso integrar, de alguma maneira, sempre que se faz uma rutura, se estou a negar alguma coisa, estou também a afirmá-la”.
A fronteira entre a casa da comunidade, no sótão, e o centro cultural é ténue. Eles próprios dizem que “o centro é uma extensão da casa”. Pode ser um caminho difícil, mas vai ter de ser feito. E as linguagens, quer sejam a da escrita ou a visual, vão ter de ser refletidas e discutidas, para isso servirá o espaço de gabinetes de trabalho criado também na casa. Embora o diretor do projeto reforce a ideia de que “todos andarão sem receio na zona aberta, para falar com as pessoas e para as acolher”. O edifício está dividido em três pisos, o último é o sótão, onde está instalada a comunidade. O rés-do-chão tem a galeria e os restantes as cinco salas, que funcionarão para leitura, encontro, debates e conferências. A completar esta simbiose entre a arte e a vida não podia faltar um espaço de gastronomia, Maria Sá da Bandeira, de 58 anos, empresária, com mais dois sócios, Marion Mendes Real e o chef Carlos Robalo, aceitaram o desafio de tornar aquele espaço, “uma segunda casa, para quem aqui entra, vamos cozinhar como se estivéssemos a fazê-lo para os amigos”.
A Brotéria mantém-se no papel e continuará a sua atividade editorial como revista de cultura – com a direção do padre António Júlio Trigueiros, de 53 anos, jesuíta, sempre ligado à História, agora capelão da Igreja de São Roque, que só não esteve nesta conversa por se encontrar doente. O futuro dirá do seu trabalho sobre este seu novo projeto e novas dimensões.
A Companhia de Jesus foi fundada por Inácio de Loyola, a 27 de setembro de 1540.
No mundo, há 16 090 jesuítas, espalhados por 120 países. Em Portugal, são 147, em nove cidades, 12 comunidades e 20 obras.
A localização do Palácio dos Condes de Tomar, em São Roque, leva os jesuítas ao lugar de onde saíram há vários séculos.
A nova casa da
Brotéria abre portas no dia 23, e já com programação, mas a inauguração oficial é no dia 25, com a presença do Presidente da República e do provedor da Santa Casa.