Combater o coronavírus é uma tarefa nacional ou europeia?
Na Europa há estratégias contra o coronavírus contraditórias. Cada país decide por si como testa os cidadãos, previne e gere o material médico. Uma reportagem de vários jornalistas europeus fala com especialistas que dizem: “A cooperação é fundamental.”
Quando os 12 médicos e enfermeiros chineses chegaram ao aeroporto de Malpensa, em Milão, Itália, na quarta-feira dia 18 – com 17 toneladas de equipamento médico (roupa, máscaras, ventiladores) – traziam consigo uma grande faixa. Nela estava escrita uma frase, do filósofo grego Séneca, em italiano: “Somos ondas do mesmo mar, folhas da mesma árvore, flores do mesmo jardim.”
A ideia é simples. Em Itália como na China, e em quase todos os lugares do mundo, o coronavírus está a espalhar medo e ansiedade, está a matar milhares de pessoas e a ameaçar o nosso modo de vida. Sendo uma pandemia, declarada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) a 11 de março, parece afetar todos os países de uma forma muito simétrica. Mas, até agora, em vez da coordenação internacional, ou da cooperação estratégica entre Estados, a luta contra a propagação da doença tem sido caso a caso. Os países estão a tomar medidas protecionistas, como a proibição das exportações e o encerramento das fronteiras e, em alguns casos, que parecem até ser contraditórias.
Essa era a mensagem na bandeira dos médicos chineses em Itália: devíamos cooperar. Mas isso não está realmente a acontecer na Europa neste momento. E terá consequências. A União Europeia (UE) é um mercado comum sem fronteiras, mas não tem uma palavra a dizer sobre questões de saúde. Esse é um assunto relegado para as políticas nacionais, de acordo com os tratados.
Até agora, os países europeus decidiram agir de forma diferente em aspetos tão importantes da crise do coronavírus como: testar a população, gerir os stocks de medicamentos e abordagens de cuidados de saúde, decidir se a melhor forma de prevenir a propagação do vírus é através do isolamento ou, pelo contrário, da “imunidade de grupo”.
Fechar fronteiras, por exemplo, tem sido uma medida comum por toda a Europa nos dias de hoje. Mas a agência de saúde da UE, o CEPCD, explica que pode ser uma medida errada.“As provas disponíveis não apoiam, portanto, a recomendação de encerramentos de fronteiras que causarão efeitos secundários significativos e perturbações sociais e económicas na UE.” Para o CEPCD, “a cooperação é fundamental em todas as ameaças transfronteiriças à saúde, incluindo o covid-19”.
“É preciso tentar ser-se o mais uniforme possível a enfrentar uma epidemia na Europa”, explica Roel Coutinho, ex-diretor do Centro de Controle de Doenças Infecciosas da Holanda. No campo da saúde pública, cada país tem agora a sua própria política, o que, afirma este especialista, é confuso.
Quem é testado?
Para compreender o problema desta falta de cooperação é necessário, em primeiro lugar, ver como cada país da Europa está a recolher dados sobre a propagação da doença. O diretor da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesus, disse que a “palavra-chave é testar, testar, testar”. Mas isso não significa “fazer testes em massa” – explica o vice-diretor da OMS, Raniero Guerra – porque “seriam inúteis do ponto de vista científico e logisticamente impossíveis de fazer”.
Neste momento, ninguém parece saber quantos testes estão a ser feitos, e não há uma estratégia comum clara para testar (e comparar os dados...). Isto é explicável por duas razões: os testes são escassos (e não podem atingir toda a população, neste momento) e também são caros, custam em média 15 euros.
Em Itália, por exemplo, existe uma estratégia nacional: o Instituto Superior de Saúde (Istituto Superiore della Sanità) diz que apenas as pessoas com sintomas de pneumonia ou que estiveram em contacto com casos infetados devem fazer testes. Mas algumas regiões italianas opõem-se, seguindo um caminho diferente.
A Alemanha, Portugal e a Holanda estão a testar as pessoas com sintomas que tiveram contacto com infetados ou regressaram de áreas infetadas. Até à última semana, a França testava apenas casos graves de pessoas sintomáticas.
Alguns países, como a Grécia, estão a testar principalmente os cidadãos mais velhos. Na Inglaterra, os testes comunitários pararam na sexta-feira 13. Esta abordagem tem sido criticada pela OMS, com Tedros Adhanom Ghebreyesus comparando-a a “combater um incêndio com os olhos vendados”.
Mas a situação é ainda pior se olharmos para uma simples pergunta: qual é a melhor maneira de evitar que o vírus se espalhe nas comunidades? A maioria dos países europeus decidiu fechar espaços públicos, como as escolas, e recomendar o isolamento voluntário. Mas outros, como a Holanda e a Inglaterra, preferem seguir a estratégia oposta. Acreditam na “imunidade de grupo”.
“Experimental” e “perigoso”
Num discurso à nação holandesa, na segunda-feira 16 de março, o primeiro-ministro Rutte mencionou explicitamente as palavras “imunidade de grupo” e explicou o conceito, que defende que a transmissão do vírus pode ajudar a criar defesas imunitárias na população.
Muitos cidadãos têm criticado esta abordagem. Parece, no entanto, que a Holanda também está a tomar várias medidas de mitigação (autoisolamento, distanciamento social, trabalho remoto, encerramento de bares, ginásios e restaurantes, cancelamento e restrição de viagens) em combinação com a abordagem da imunidade. Na Holanda, a maioria das lojas ainda está aberta e a maioria das fábricas ainda estão a laborar. A política oficial é adiar um “bloqueio total” enquanto for possível.
A OMS alertou também contra a abordagem da imunidade: testar casos e isolar pessoas infetadas deve ser a prioridade máxima, seguida de distanciamento social e aumento da capacidade médica.
A estratégia inicial do Reino Unido também dependia da “imunidade de grupo” e foi fortemente criticada por muitos, incluindo a OMS e os principais cientistas, e foi descrita como “experimental” ou simplesmente “perigosa”. No entanto, tudo isto mudou quando o Imperial College de Londres lançou um estudo que colocou o Reino Uni
A Dräger, na Alemanha, está a trabalhar 24 horas por dia para produzir dez mil ventiladores encomendados pelo governo. Enquanto isso, em março, a Alemanha proibiu exportações de material médico para os outros países. Na Polónia, numa loja online local, as máscaras eram vendidas por 100 euros. Agora que o negócio está proibido, algumas pessoas costuram elas próprias as máscaras em casa.
do numa trajetória para “uma epidemia catastrófica” com até um quarto de milhão de mortos e o serviço de saúde sobrecarregado.
Isto provocou a mudança imediata de rumo e, a 16 de março, Boris Johnson desaconselhou viagens e contactos não essenciais. Foi anunciado que as escolas fechariam no dia 20, mas não para filhos de trabalhadores-chave ou crianças desfavorecidas.
A teoria do empurrão
Enquanto a maioria dos países decidiu reagir rapidamente, sobretudo após a explosão de casos na Itália, outros decidiram esperar para ver. A razão pela qual ainda não é hora de fechar escolas ou proibir grandes reuniões em Inglaterra é explicada assim: a “fadiga” pode instalar-se, o que significa que as pessoas vão cansar-se das proibições e encontrar maneiras de contorná-las.
A estratégia do governo inglês é influenciada pela teoria do empurrão, uma ideia popularizada pelo economista comportamental Richard Thaler e pelo cientista político Cass Sunstein. Se a eficácia das medidas de distanciamento social é limitada no tempo, a melhor lógica, de acordo com esta teo
Para a agência de saúde da UE, “a cooperação é fundamental em todas as ameaças transfronteiriças à saúde, incluindo o covid-19”.
ria, é reservar essas medidas para quando se estiver mais perto do auge da epidemia.
Equipamento a mais e a menos
Como se pode comprovar, tudo parece ser contraditório na reação dos países à crise do coronavírus. O mesmo se passa com a gestão do equipamento médico. Alguns países têm escassez de máscaras, ventiladores, luvas ou produtos de limpeza alcoólicos. Na Polónia, numa loja online local, as máscaras eram vendidas por 100 euros – mas agora que o negócio está proibido, algumas pessoas costuram elas próprias as máscaras em casa. Enquanto alguns países as produzem regularmente, a maioria importa-as da China. A França e a Alemanha decidiram pedir à indústria para começar a produzir equipamentos médicos. Na Holanda, os prisioneiros estão agora a produzir máscaras.
Até agora, segundo a pesquisa do Investigate Europe à volta dos países europeus, os ventiladores só faltam, no presente, para o número de pessoas que necessitam de ajuda respiratória assistida em Itália. A fábrica Dräger, na Alemanha, está a trabalhar 24 horas por dia, sete dias por semana, para produzir dez mil ventiladores encomendados pelo governo. Enquanto isso, durante este mês, a Alemanha tem mantido uma proibição de exportações de material médico para todos os outros países europeus – mesmo sem ter, no momento, qualquer carência de ventiladores ou máscaras.
O atraso da Europa
Foi no domingo 8 de março, à noite, que o primeiro-ministro italiano, Giuseppe Conte, anunciou o encerramento de todo o país, pela primeira vez na história da Europa do pós-guerra.
No dia seguinte, Ursula von der Leyen foi à sala de imprensa da Comissão Europeia, em Bruxelas, fazer o balanço dos seus primeiros cem dias de trabalho. A presidente da Comissão optou por uma primeira declaração sobre o excelente trabalho que as instituições da UE fizeram na crise da fronteira grega com a Turquia. E só depois o vírus foi mencionado. Isso levou Von der Leyn a admitir o erro numa entrevista ao jornal alemão Bild: “Penso que todos nós que não somos especialistas inicialmente subestimámos o vírus.” Mas o conhecimento de quão perigosa era a pandemia estava disponível na UE na altura.
O Centro Europeu de Prevenção e Controlo das Doenças (CEPCD), sediado em Estocolmo, na Suécia, começou a trabalhar com as autoridades italianas desde o início (janeiro) e publicou, até hoje, seis avaliações de risco do covid-19. Mas os governos nacionais simplesmente não deram ouvidos a esta agência periférica, cujos relatórios não são vinculativos.
O CEPCD é uma das duas agências criadas pela União Europeia para apoiar (e não substituir) os governos nacionais em questões relacionadas com a saúde. “Existe desde 2005, tem sede em Estocolmo e apoia os Estados fornecendo dados, orientações e análises de risco sobre doenças e epidemias”, explica Massimo Gaudina, porta-voz da Comissão Europeia em Milão. “Sobre este problema específico do coronavírus, foi ativado imediatamente. A 22 de janeiro, “os membros do CEPCD trabalharam de perto em Roma com a task force do Ministério da Saúde italiano para dar a sua opinião de nível às nossas autoridades.”
As contradições continuaram: no dia 16 de março, o porta-voz da Comissão Europeia, Eric Mamer, disse, numa sala de imprensa vazia: “Recomendamos não fechar Schengen [para a livre circulação de pessoas dentro da UE] porque o contágio está agora em todos os países, pelo que fechar fronteiras é inútil.” Mas as suas palavras não foram ouvidas e, no final da tarde, já 12 países (Alemanha, França, Espanha, Áustria, Hungria, entre outros) tinham fechado as suas fronteiras à circulação de cidadãos.
Proibição de exportações
Poucos dias antes, o comissário francês Thierry Breton tinha repreendido publicamente a França e a Alemanha por terem declarado o embargo à exportação de máscaras e equipamento médico, recebendo da Alemanha a garantia de que o embargo em curso desde 4 de março seria levantado. Fizemos a experiência. Um dos membros do Investigate Europe, em Berlim, tentou enviar máscaras para o Hospital de Bergamo (perto de Milão), que vive a trágica situação de não ter mais camas de cuidados intensivos nem equipamentos médicos para proteger os médicos, como luvas, sapatos, máscaras. Quando o jornalista estava prestes a imprimir um selo online através da empresa privada DHL, recebeu um aviso: “Proibição de exportação de dispositivos médicos para o exterior.”
A Comissão Europeia lançou, na quinta-feira 19, três aquisições conjuntas urgentes de material médico e uma operação de RescEU (para armazenar equipamento médico num país da UE e depois distribuir de acordo com a necessidade urgente).
Trata-se de um mecanismo de curto prazo, que funciona sem concurso, sem contrato, sem orçamento, e em que a Comissão chama diretamente as empresas e propõe um acordo. É por isso que, para não influenciar este mercado tão sensível, a Comissão não revela quais as empresas que estão a negociar com Bruxelas. O primeiro contrato será assinado no final de março para máscaras, equipamentos médicos e ventiladores. Quando for concluído esse primeiro passo da UE, Portugal já terá 15 dias completos de isolamento e quase outro tanto de estado de emergência. *com Elisa Simantke, Harald Schumann, Ingeborg Eliassen, Juliet Ferguson, Leila Miñano, Nico Schmidt, Nikolas Leontopoulos, Maria Maggiore, Daphné Dupont Nivet, Thodoris e Wojciech Ciesla Investigate Europe é um projeto que junta jornalistas de oito países europeus. Tem o apoio das fundações Cariplo (Milão), Stiftung Hübner und Kennedy (Kassel), Fritt Ord (Oslo), Rudolf Augstein-Stiftung (Hamburgo), GLS (Alemanha) e Open Society Initiative for Europe (Barcelona).