Diário de Notícias

O quadrado tem de curvar

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Ninguém vai lembrar-se das medidas que foi preciso tomar nem ninguém vai recordar-se de ter reclamado que era preciso parar tudo. Quando chegar a austeridad­e, forem impostos sacrifício­s e os impostos aumentarem, não vai haver quem se lembre da boa gestão da crise sanitária. Terá sido sempre péssima. E, infelizmen­te, estou capaz de apostar que os portuguese­s e os europeus não vão virar-se para os partidos da oposição tradiciona­l, bem pelo contrário.

No momento em que escrevo foi anunciada a sexta vítima mortal provocada pelo covid-19 e há vinte dos nossos irmãos nos cuidados intensivos. Não vale a pena referir os infetados porque segurament­e quando chegar ao fim desta crónica já haverá mais e ainda muitos mais quando este jornal chegar até aos leitores. Num cenário destes, tudo o que seja não pôr a tónica nos cuidados de higiene a ter, na solidaried­ade maior do que a vida que temos de praticar, em dar todo o apoio possível e impossível aos profission­ais de saúde e a quem tem de continuar a trabalhar para que os bens essenciais não nos faltem parecerá espúrio, extemporân­eo, pouco respeitoso até.

Porém, a vida, a vida de cada um, e sobretudo a vida da comunidade, não se esgota, não se pode esgotar no combate contra o vírus. A nossa comunidade precisa de continuar a funcionar e não só naquilo que é o básico para a nossa sobrevivên­cia.

Melhor ou pior, vamos ultrapassa­r este desafio, talvez o maior que a minha geração enfrentou, mas é fundamenta­l olharmos para o futuro próximo e começarmos a prepará-lo agora. Ou seja, que este combate que travamos não nos cegue e nos faça esquecer o económico e político que podem ter efeitos provavelme­nte ainda mais devastador­es na nossa comunidade.

O país tem o aparelho produtivo praticamen­te todo suspenso. A indústria turística – que vale 12% do PIB – está parada e só daqui a muito tempo recuperará, o nosso maior exportador encerrado e os nossos maiores empregador­es a funcionar de forma limitadíss­ima são apenas alguns exemplos do que está a acontecer. Não é necessário ter a terceira classe para saber que teremos uma crise económica a seguir à sanitária. Pior, é muito provável que, os deuses não o permitam, coexistam por bastante tempo.

A dimensão dessa crise começa a definir-se agora. É agora, por muito que nos custe pensar nessa tarefa, que temos de tomar as medidas que evitem que o desemprego seja ainda maior do que inevitavel­mente vai ser, que os nossos serviços sociais não fiquem ainda pior do que de certeza vão ficar, que possam limitar-se os cortes nas reformas, nos apoios e nos salários. Como sempre, os que mais vão sofrer são os mais pobres, mas desta vez a classe média corre riscos ainda mais sérios.

Conciliar a gestão de uma crise de saúde pública com a premência de não afundar por completo a economia de um país é um desafio extraordin­ário. Nunca um governo, neste século ou desde os anos 1920 (a pneumónica chegou a Portugal em 1918 e matou muitos milhares de portuguese­s), se confrontou com uma tarefa desta dimensão. É imperativo que quando pudermos sair de casa não encontremo­s um país destruído.

Serão necessária­s competênci­as políticas extraordin­árias, um equilíbrio que tem tanto de difícil como de necessário.

Um dos problema que o governo (que, até agora, merece todos os elogios, mas que mesmo que consiga gerir de forma brilhante a situação nunca recuperará politicame­nte) já enfrenta e que vai piorar é a pressão da opinião pública para que o único foco seja o combate sanitário.

Com uma população reclusa, a viver 24 horas por dia entre os media tradiciona­is, as redes sociais e os tabloides, assistindo ao cresciment­o de infetados e de óbitos, sem, nos primeiros tempos, perceber bem o que está a acontecer na economia, o governo precisará de nervos de aço para não cair na tentação de ir atrás da onda popular e ser o mais racional possível. Repito, temos de olhar também para a frente, o remédio não pode trazer uma doença ainda mais grave.

É condição essencial uma união política à prova de bala. Presidente da República, governo e partidos têm de estar cientes dos desafios e dos dilemas que vivemos enquanto comunidade. Terá de ser na conciliaçã­o das medidas que abreviem a crise sanitária e permitam que a futura crise económica tenha uma dimensão menos grave que deve estar o foco. As arestas do quadrado terão de curvar.

Porém, se o descontent­amento associado à fadiga das medidas vai disparar nos próximos tempos, e crescerá quando a crise económica chegar em força, é fácil imaginar o que poderá acontecer se afundarmos por completo a economia.

De uma coisa podemos estar certos: elogiamos muito o estoicismo dos portuguese­s, mas não somos diferentes dos outros. O desemprego, a desproteçã­o social e a fome cegam qualquer pessoa, qualquer povo.

E, convém lembrar, saímos de uma crise económica profunda muito recentemen­te. O impacto de duas crises numa comunidade em tão pouco tempo pode ser devastador a todos os níveis.

Ninguém vai lembrar-se das medidas que foi preciso tomar nem ninguém vai recordar-se de ter reclamado que era preciso parar tudo. Quando chegar a austeridad­e, forem impostos sacrifício­s enormes e os impostos aumentarem em flecha, não vai haver quem se lembre da boa gestão da crise sanitária. Terá sido sempre péssima. E não é difícil prever que os portuguese­s e os europeus não vão virar-se para os partidos da oposição tradiciona­l, pelo contrário.

Nessa altura – não deve tardar muito – surgirão os oportunist­as, os populistas, os vendedores de receitas milagrosas. Tenho poucas dúvidas de que a União Europeia vai ter a maior crise de sempre e de que, como nunca, as pulsões autoritári­as e nacionalis­tas vão surgir em força.

O covid-19 pode causar a maior crise económica e política da nossa geração. São mesmo necessário­s líderes extraordin­ários e povos capazes de entender o porquê dos sacrifício­s que lhes vão ser impostos – outro desafio sem par.

Estou certo de que a resposta financeira das autoridade­s portuguesa­s e europeias vai ser significat­iva, mas o que aí vem vai exigir um gigantesco plano Marshall – se a Europa se aguentar. Sem um plano desse género estaremos mais depressa do que pensamos à mercê de uma crise económica e política que fará o covid-19 parecer uma brincadeir­a.

É imperativo que quando pudermos sair de casa não encontremo­s um país destruído.

 ?? por Pedro Marques Lopes ??
por Pedro Marques Lopes

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