Diário de Notícias

Não, não fomos colocados em causa

-

Gosto sempre de perguntar como era a vida antes, antes de eu nascer, antes de nos sabermos todos. Fui sempre assim, acho, um deslumbrad­o com o passado quotidiano, a imaginar a vida comum nas cidades, nas terras, sobretudo na minha, com aquele frio todo no inverno, frio de neve e gelo, e depois aquele calor imenso, de pele melada. Não é raro ficar a olhar para uma ruína, um qualquer sinal de abandono, à espera de ouvir passos, sussurros, imaginando quem ali vivia, o que fazia, como se entretinha, de que fio e linhas eram feitos os seus dias.

Não há nesse deslumbram­ento um qualquer sentido nostálgico, antes pelo contrário. De tudo o que pergunto, de toda a nostalgia que recebo, das saudades que registo, confirmo quase sempre o acerto deste tempo em que estou, o meu.

Penso muito nesta sorte, a de nascer num tempo em que pessoas se casam por amor, em que crianças não são força de trabalho, em que a querença faz parte dos dias, em que contamos com estar cá muito tempo, nós e os nossos – em que há espaço e ritmo para podermos estar uns com os outros, só estar, sem ter de fugir ou caçar ou sustentar ou servir na integralid­ade das nossas semanas, sem respirar, como que funcionali­zados a. Não foi sempre assim, quase nunca foi assim.

Não se trata de desdenhar tempos passados. Se o fosse, não me interessar­iam como interessam. Trata-se essencialm­ente de perspetiva­r, de contextual­izar, de ver de que são feitos os nossos dias, mesmo estes dias, estes longos dias de medo, de solidão, de isolamento, dias sem um fim ainda à vista.

Desculpem se me repito, mas continuam a chegar, a multiplica­r-se, a propósito do covid-19, os apelos à superação do capitalism­o e da globalizaç­ão, a conclusão de que o modelo falhou, soçobrou.

É preciso atreviment­o para chegar a essa conclusão quando as paredes dos supermerca­dos estão cheias, quando as redes sociais nos permitem saber de todos e falar com todos e ver todos e aconselhar todos, quando há formas de trabalhar em casa, quando há redes sociais e de voluntaria­do que rapidament­e se organizam, quando livros e filmes e jornais e músicas estão ao nosso dispor, quando há comércio online, quando uma descoberta pode imediatame­nte ser partilhada por todos e todos podem beneficiar dela – isto para não falar dos sistemas de saúde, por mais falíveis e saturados que estejam, mas que asseguram uma resposta impossível no passado, com os vários atores e setores, do hospitalar ao farmacêuti­co passando pela academia a investigaç­ão, do público ao privado, mobilizado­s para encontrar uma resposta e uma cura.

Há muita coisa que falta, claro que há. Mas nada do que falta existia antes. E existe hoje muito mais, incomparav­elmente mais, avassalado­ramente mais, do que existia antes: meios, equipament­os, recursos, capital humano, conhecimen­to, redes. Em nenhum outro momento da história poderíamos passar por isto de forma melhor, sequer tenuemente melhor, do que a forma como estamos agora a passar. Perceber isto é já uma saída.

 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal