O “porta-voz dos invisíveis” que fez xeque a Netanyahu
Israel. Ayman Odeh é árabe, israelita e líder da Lista Conjunta. Graças ao voto favorável da aliança de partidos árabes, o centrista Benny Gantz foi designado para formar governo.
Em setembro, uma semana antes da segunda das três eleições parlamentares a que os israelitas foram chamados no espaço de 11 meses, Benjamin Netanyahu levantou a suspeita de fraude eleitoral nas assembleias de voto das comunidades árabes e quis instalar câmaras de vigilância. O seu partido, o Likud, já o havia feito nas eleições de abril, tendo filmado à socapa mais de mil assembleias com forte presença da comunidade árabe. A medida tinha sido rejeitada pelo Supremo Tribunal e criticada por vários grupos de defesa dos direitos. Netanyahu insistiu e levou o tema ao Knesset. Além de a iniciativa ter caído por terra, o primeiro-ministro foi desafiado por um deputado que sacou do telemóvel e, com este quase na cara do chefe do governo, disse “Pensava que estava tudo no Stories”– referência aos argumentos que Netanyahu usara dias antes, ao dizer que está tudo naquela ferramenta do Facebook. O deputado é o líder da Lista Conjunta, Ayman Odeh, que no Twitter espetou outra farpa: “De repente tem um problema com as câmaras.”
Quase um ano antes, quando a polícia recomendou a acusação de suborno contra o primeiro-ministro, Odeh não escondeu o que lhe ia na alma, ao defender que o seu lugar é na cadeia . “Um primeiro-ministro que só está empenhado em espalhar o ódio e o medo e os estritos interesses da sua família perdeu a legitimidade.”
Odeh e os seus parceiros já haviam conseguido um pequeno feito, ao reativarem a Lista Conjunta, uma amálgama de quatro partidos árabes das mais diversas tendências (nacionalista, secular, islamista, comunista...), e com isso alcançaram 13 lugares nos 120 do Knesset. Nas eleições de dia 2 de março, a aliança aumentou o número de eleitores em mais de cem mil e elegeu mais dois deputados, reforçando o estatuto de terceira força política.
Contra o plano de Trump
Desta vez Odeh teve mais um cavalo de batalha: lutar contra o plano de Trump para o Médio Oriente, o que implicava aumentar a representação parlamentar e desalojar o Likud e o seu líder do poder.
O plano, também conhecido como o “acordo do século”, foi apresentado pelo presidente dos Estados Unidos no final de janeiro, em Washington, com Netanyahu ao lado. Nem os palestinianos nem os árabes israelitas deram qualquer contributo para a iniciativa de Trump, e rejeitaram-na de imediato. “O problema central deste plano é que o primeiro-ministro está a falar sobre como se vai livrar de parte dos seus cidadãos”, disse Odeh à AFP. O projeto apadrinhado pelo presidente dos Estados Unidos prevê a transferência de habitantes da chamada região do “triângulo árabe” de Israel para um futuro Estado palestiniano. O plano de Trump, subscrito por Netanyahu, “lida com os árabes como cidadãos indesejados de um país que eles querem exclusivamente para os judeus”, criticou Odeh.
A comunidade árabe em Israel descende na sua maioria dos palestinianos que permaneceram em Israel após a sua criação, em 1948. São cerca de 20% da população de Israel, e queixam-se de discriminação. Cerca de 47% dos cidadãos árabes vivem na pobreza, quando a média nacional está nos 18%, diz a ONG Mossawa Center.
Odeh, de 45 anos, além de deputado, membro do partido comunista é advogado e a mulher é médica. Natural de Haifa, faz parte de uma elite árabe israelita que deseja a integração. “Sou filho de Haifa, cresci com os judeus, não podemos estabelecer uma fronteira entre nós e os nossos vizinhos judeus.”
O líder dos árabes israelitas costuma dizer que é o “porta-voz dos invisíveis”. Com o resultado das eleições, Odeh e a Lista Conjunta passaram a ter outra relevância. O objetivo continua o mesmo: impedir que Netanyahu e seus “aliados de extrema-direita e pró-colonatos” continuem no poder. Dos escrutínios de abril e de setembro, Netanyahu foi incapaz de construir uma maioria, pelo que novas eleições foram convocadas. Agora, apesar de o Likud até ter saído reforçado nas urnas, continua longe de chegar a acordo no parlamento – até porque os problemas de Netanyahu com a justiça pesam cada vez mais.
No início da semana, a extrema-esquerda da Lista Conjunta e a extrema-direita do Yisrael Beiteinu, do ex-ministro Avigdor Lieberman bem como o centro-esquerda, viabilizaram a Aliança Azul e Branca, do ex-militar Benny Gantz. Este foi incumbido pelo presidente Reuven Reuvlin na missão de constituir um governo.
Odeh e o seu partido puseram Benjamin Netanyahu em xeque. Mas a crise que estalou graças ao novo coronavírus pode ser o argumento que faltava para se constituir um governo de unidade nacional entre os centristas da Aliança Azul e Branca e a direita do Likud, prolongando o consulado de Netanyahu. Se tal acontecer, há um prémio de consolação: Ayman Odeh passa a líder da oposição. “É uma posição interessante, nunca antes ocupada por alguém da população árabe”, comentou o próprio em setembro.