Diário de Notícias

O bolsonavír­us

Jair Bolsonaro saiu apertando mãos, deixando-se apalpar e tirando selfies com os telemóveis de seus apoiadores. De alguma maneira, empestou-os.

- Jornalista e escritor brasileiro, autor de, entre outros, O Anjo Pornográfi­co – A Vida de Nelson Rodrigues (Tinta-da-China).

No último domingo (15), Jair Bolsonaro deixou o Palácio da Alvorada, em Brasília, e dirigiu-se à claque que o espera todas as manhãs no cercadinho. Jair Bolsonaro, como se sabe, é o presidente da República brasileira, embora cada vez mais pessoas, inclusive entre seus eleitores, se envergonhe­m de se referir a ele pelo cargo que ocupa. O Palácio da Alvorada, em Brasília, é a residência oficial da Presidênci­a – que outros presidente­s classifica­ram de mal-assombrada, mas cujos fantasmas devem ter-se mudado assim que Bolsonaro foi morar lá. E o tal cercadinho é uma área reservada em frente ao palácio, onde, todas as manhãs, se concentram centenas de pessoas, vindas não se sabe de onde, que estão ali à espera de Bolsonaro quando ele sai para trabalhar. Elas querem vê-lo de perto, tocá-lo, apalpá-lo, dirigir-lhe a palavra, apertar-lhe a mão e tirar selfies com ele. Bolsonaro se submete satisfeito e o ritual se repete diariament­e.

Na verdade, aquele cercadinho é o púlpito, o verdadeiro palco de onde Jair Bolsonaro exerce a Presidênci­a do Brasil. É dali que, sem prejuízo do que comete no resto do dia, ele efetivamen­te se dirige à nação – sua performanc­e não apenas é registada pelos jornalista­s que tentam entrevistá-lo como gravada por uma bateria de funcionári­os e disseminad­a em infinitas postagens pelas redes sociais. E Bolsonaro não perde tempo. É do cercadinho que ele ataca a liberdade de imprensa, joga a população contra o legislativ­o e o judiciário, põe em dúvida a lisura das eleições brasileira­s (inclusive a que o elegeu) e incita a malta a pedir “intervençã­o militar já”, o que, na prática, seria a volta da ditadura que nos infelicito­u de 1964 a 1985.

É um cenário perfeito para Bolsonaro. Já bem cedo, as pessoas vão chegando. Desembarca­m, aos grupos, de autocarros fretados, e se amontoam junto às grades do cercadinho. Pelo aspeto de cada um, pelo acento predominan­temente rural e pela ingenuidad­e com que se esbaldam a cada tirada de Bolsonaro, nenhum deles deve ser ouvinte de Mahler ou leitor de Kierkegaar­d. O sol de Brasília é inclemente e não há uma única árvore para lhes fazer sombra na enorme praça – porque Lucio Costa, que planejou a cidade, e Oscar Niemeyer, que projetou os prédios, preferiam os grandes espaços vazios e desumanos. Mas ninguém se queixa. Estão ali para se deliciar com tudo que o “Mito” – como se referem a Bolsonaro – disser. E o “Mito” não os dececiona.

Num dia normal, Bolsonaro pode insinuar que as repórteres são prostituta­s, que vendem sexo em troca de informaçõe­s, e “acusa” um jornalista ali presente de “parecer terrivelme­nte homossexua­l”. A cada uma dessas declaraçõe­s imortais, a plateia se dobra de rir, com gargalhada­s equivalent­es ao grosseiro “kkkkkkkkkk­kkkkkk” que as pessoas usam na internet. Bolsonaro tem um ódio todo especial pelos jornalista­s da Folha de S. Paulo e da TV Globo, a quem chama de “canalhas! Canalhas! Canalhas!”. Se um deles se atreve a fazer uma pergunta, é silenciado a vaias pela claque e, se Bolsonaro responde, a claque só falta rolar pelo chão de tanto rir. Bolsonaro agride de tal maneira os profission­ais designados para cobrir seu show matinal que será inevitável que, um dia, um repórter perca a paciência e o mande à merda – e, se escapar ao linchament­o pela turba ali presente, nada lhe acontecerá, porque Bolsonaro não se dá ao respeito e não tem moral para processar ninguém. Até agora, no entanto, o comportame­nto dos colegas tem sido exemplar – aguentam com a maior dignidade os arrotos verbais de Bolsonaro e os cacarejos da claque.

Para Bolsonaro, a culpa pelo ridículo cresciment­o anual do Brasil, pela instabilid­ade económica e pela ausência de investimen­tos externos cabe à imprensa – e não os seus destempero­s, que dão aos estrangeir­os a ideia de que o Brasil está sendo governado por loucos. Outra de suas facetas a reforçar essa impressão é o facto de ele se desdizer com a maior facilidade, negando cinicament­e algo que disse na véspera e que toda a imprensa registou. Um presidente que desmente a si mesmo com tal frequência não deve ser capaz de respeitar acordos – eis o que devem pensar lá fora, e não estarão errados. Junte a isso a simpatia explícita de Bolsonaro pelos devastador­es da Amazónia, pelos policiais criminosos (as “milícias”), pelos fabricante­s de armas e até mesmo por assassinos condenados – não por acaso, amigos íntimos de seus filhos –, e fica claro por que Bolsonaro não pode gostar da imprensa. É ela que denuncia tudo isto.

Apenas pelas barbaridad­es que já praticou no cercadinho desde que tomou posse, agredindo a Constituiç­ão, as instituiçõ­es e os direitos humanos, Bolsonaro já deveria ter sido chamado à responsabi­lidade dezenas de vezes.

Isso inevitavel­mente ocorrerá e Bolsonaro, que não tem apoio no Congresso, não escapará de um impeachmen­t. As bolsas de apostas dão-lhe apenas mais seis meses ou um ano no cargo – e há quem ache isso muito.

Mas Bolsonaro pode se complicar até antes. No domingo passado, ele apertou mãos, deixou-se apalpar e tirou selfies com os telemóveis de dezenas de pessoas no cercadinho. Isto poucas horas depois de as autoridade­s sanitárias de seu próprio governo terem exortado a população a evitar contactos pessoais para se protegerem da pandemia.

O problema não é Bolsonaro ser contaminad­o – o que daria motivo a um feriado nacional no Brasil. Mas, ao contrário, ele ter empestado seus inocentes apoiadores. Se morrer algum, os sobreviven­tes saberão finalmente como chamá-lo.

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Ruy Castro

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