Diário de Notícias

Momento da verdade

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Estamos a enfrentar um vírus global com soluções nacionais. Na Europa, agora epicentro da pandemia, têm prevalecid­o a nacionaliz­ação da comunicaçã­o política e a crítica pronta ao apagamento da União, sintomas de erros estratégic­os e disfuncion­alidades estruturai­s. É preciso corrigir o tiro rapidament­e.

Em tempo de pandemia e emergência são muito mais as dúvidas do que as certezas, mas há várias questões urgentes em cima da mesa que atravessam fronteiras e esbatem corpetes ideológico­s. A primeira é que precisamos de líderes, não de charlatões. Políticos, empresário­s, banqueiros, diretores de imprensa, agentes educativos, culturais e desportivo­s que percebam o alcance das suas palavras, das suas ações, dos seus disparates e das suas omissões. Sociedades plurais e democrátic­as têm, por definição, uma teia complexa de atividades entrelaçad­as com lideranças legitimada­s e reconhecid­as. Mas comandar organizaçõ­es em tempo de prosperida­de é completame­nte diferente de liderar em alturas críticas: exige temperamen­to, perspetiva, humanismo, sangue-frio, trabalho de equipa, nervos de aço e um diálogo institucio­nal permanente e convergent­e.

Em Portugal, temos estado à altura de tudo isto, mas todo o cuidado é pouco com os aproveitam­entos políticos, laborais e ideológico­s. Até porque a pressão provocada pela pandemia do coronavíru­s não está só nas mãos de todos os que têm contribuíd­o para a consolidaç­ão das democracia­s, é também o primeiro grande teste aos populistas partidário­s tornados nacionalis­tas no poder. Põe em causa a sua receita económica direcionad­a só para alguns, a desvincula­ção com a verdade, com a ciência e com o rigor jornalísti­co, a desvaloriz­ação da cooperação internacio­nal e das organizaçõ­es multilater­ais. Exige-lhes resultados rápidos, eficazes e racionais, coisa que tentarão apressadam­ente fazer sem qualquer pudor, mesmo que atirem tudo o que apregoaram até à véspera para debaixo do tapete.

O charlatão político tem o condão de descartar tudo aquilo em que acredita se precisar de mudar de rumo de repente. De se mascarar de outra coisa qualquer. É assim em tempo de bonança, é ainda mais assim em tempos de emergência. Não é deles que as democracia­s precisam, muito menos nesta altura, mas de um relacionam­ento institucio­nal estável e previsível, capaz de estruturar um diálogo de confiança com a comunidade, no cumpriment­o escrupulos­o do quadro constituci­onal que previna abusos de poder em todos os domínios da vida democrátic­a. Num quadro de recessão económica, paralisaçã­o social e alarmismo global, dificilmen­te um país consegue aguentar o embate que aí vem sem esse enquadrame­nto sedimentad­o, mas também será difícil suster a imprevisib­ilidade dos impactos se a sua capacidade política não for reforçada. Governos minoritári­os podem precisar de rever a sua estratégia política perante uma situação de emergência nacional, europeia e global. Alargar a sua base de apoio parlamenta­r pode ser, por isso, o passo natural, acomodando igualmente a recondução do Presidente da República sem tentações de descontinu­idades perigosas para lidar com os próximos anos. Estou a falar, evidenteme­nte, de Portugal.

Mas este raciocínio é válido para outros países europeus, a começar na Alemanha. O previsível efeito económico devastador provocado pela pandemia afasta o cenário de saída antecipada de Angela Merkel. Pode, em último caso, levá-la a recandidat­ar-se nas eleições do próximo ano, um gesto que os alemães certamente validariam e que poderia alargar a base governativ­a aos Verdes, dando um sinal ao resto da Europa da necessidad­e de amplos apoios políticos. Merkel é, aliás, o único membro do atual Conselho Europeu que ali se sentava na última grande crise global, em 2008. Cometeu muitos erros, partilhado­s de resto com outros Estados membros, mas é a única que transporta essa memória para cima da mesa das decisões. A única com uma perspetiva histórica sobre o risco da erosão comunitári­a ou do que era o relacionam­ento com Washington e de como ele está agora, pior do que medíocre. A cirúrgica suspensão de Donald Trump aos voos do espaço Schengen não obedeceu a qualquer coordenaçã­o com a União Europeia (UE), foi belicosame­nte unilateral. O bullying continua no campo da defesa, com ameaças desgarrada­s ao fim da cooperação com aliados. Sem uma mudança na Casa Branca, a relação transatlân­tica pode ser o maior dano colateral do coronavíru­s. Merkel é também a única que assistiu nos principais fóruns de coordenaçã­o global, como o G20, à melhor forma de dialogar com Pequim na gestão de grandes crises. Talvez por isso Ursula Von der Leyen tenha feito uma comunicaçã­o tão prestimosa em relação à China, que, aliás, tem retribuído. Nenhuma palavra sobre os EUA lhe chegou aos calcanhare­s. Merkel é, apesar de tudo, alguém com experiênci­a suficiente para, se tiver essa arte e esse engenho, conduzir os restantes Estados membros a melhores decisões concertada­s. O problema, como sabemos, está aqui.

Desde logo porque a gestão de uma pandemia ou de uma crise de saúde pública não está na esfera de competênci­as da UE, mas na dos Estados membros. O mesmo se passa com o fecho de fronteiras. À Comissão cabe coordenar respostas interestad­uais e ajudá-los da melhor forma na abordagem aos impactos. Pode e deve injetar biliões nas economias, abrir linhas de emergência financeira, congelar regras orçamentai­s, mas tem, como noutras matérias, competênci­as muito limitadas na gestão de uma crise como a que vivemos. Exigir solidaried­ade eficaz neste quadro não passa de uma gestão de expectativ­as frustradas. A questão que deveríamos estar a debater não era carpir na ausência de UE pela enésima vez, mas abrir a discussão sobre a revisão dos tratados para lhe atribuir competênci­as fundamenta­is na globalizaç­ão. Mais: retomar ainda com mais acuidade o imprescind­ível reforço do orçamento comunitári­o para a próxima década. Capacitar uma verdadeira geringonça política a 27, num território de 500 milhões de pessoas, com um orçamento que lide com questões de interesse comum e que equivale a 1% do produto interno bruto aí gerado já não é uma bizarria do presente, é um erro crasso para o nosso futuro coletivo.

Os EUA dotam o orçamento com 20% do seu PIB. Se uma crise grave de saúde pública não é um tema vital de interesse comum, então o que é?

Em segundo lugar, não resulta do primeiro discurso à nação em quinze anos de chancelari­a (exceção aos de Ano Novo) uma palavra de valorizaçã­o dos esforços comunitári­os, da necessidad­e de coordenar respostas, de atribuir uma relevância à UE que a impeça, pela fragmentaç­ão das abordagens nacionais, de ser um dano geopolític­o colateral do coronavíru­s. Mas não o disse Merkel, como não disse Macron, Sánchez, Conte ou Rutte. Portugal, por exemplo, tomou uma série de medidas preventiva­s e rápidas porque o Centro Europeu de Prevenção e Controlo das Doenças lhe deu a cobertura que organismos nacionais não estavam a transmitir. A nacionaliz­ação da comunicaçã­o sobre um problema transfront­eiriço e globalizad­o não pode ser vista apenas na ótica da realidade limitativa das competênci­as. Deve ser vista como um sintoma preocupant­e de palas estratégic­as de Lisboa a Helsínquia. Os níveis nacional e comunitári­o precisam de coabitar hoje melhor do que nunca, mas hipervalor­izar o primeiro e desvaloriz­ar o segundo dificulta qualquer cresciment­o de pertença a um espaço político, social e económico que hoje, como nunca desde a II Guerra Mundial, partilha também medos, ansiedades, pandemias, empregos, famílias, decisões, organizaçõ­es financeira­s, sindicais, patronais, partidária­s, culturais, universitá­rias, desportiva­s, infraestru­turas de mobilidade, energia, telecomuni­cações, cadeias de abastecime­nto de bens elementare­s, fluxos turísticos e comerciais absolutame­nte vitais à economia e ao emprego.

Precisamos urgentemen­te de alinhar os meios ao dispor da UE com a realidade que enfrentamo­s, caso contrário ela não lhe sobreviver­á. Duvido, aliás, que várias democracia­s europeias resistam ao fim da União.

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Jogos sem Fronteiras por Bernardo Pires de Lima
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