Sem piscinas, pistas e tatâmis. Como se preparam os atletas olímpicos
Coronavírus. Alexis treina em casa ou num jardim, Patrícia Mamona tem um ginásio na garagem, Jorge Fonseca corre no Jamor, Filipa Martins ocupa a sala de casa e Fernando Pimenta faz-se ao rio.
Cruzei-me com Juan Carlos e Shakira quase em simultâneo, em San Salvador, no Sheraton, um daqueles hotéis de cinco estrelas em cujos lobbies, durante certos eventos, as fronteiras entre as celebridades e os comuns mortais se dissipam, em especial se o mortal for um jornalista estrangeiro em reportagem. Não fosse Luís Amado, então ministro dos Negócios Estrangeiros, me acenar logo que entrei, mostrando onde estava sentado com o primeiro-ministro José Sócrates, e ainda teria pensado se não valia a pena tentar uma entrevista com a cantora colombiana, já mítica em 2008. Mas em relação ao rei de Espanha nem tal me passou pela cabeça: sabia que não era suposto os tais comuns mortais (neste caso, jornalista ainda pior) dirigirem a palavra ao monarca, quanto mais esperar que este lhes respondesse.
Talvez hoje com Filipe VI, que até se casou com uma jornalista, as formalidades sejam menores, mas com o pai era impossível imaginar ter ali alguém que não um inalcançável Borbón, um descendente de três séculos de reis espanhóis, também de Luís XIV, pois antes de haver os Borbóns havia os Bourbons. Sei que alguns portugueses que conheceram Juan Carlos jovem, quando passava o verão na casa dos pais em Cascais, veem nele um amigo, e recordam sobretudo o camarada de brincadeira, mas para o resto da humanidade tratava-se de um trineto do trineto (fiquemos por aqui) do Rei-Sol. Trata-se, retifico.
Sempre me senti republicano, mas não hesito em reconhecer que há monarquias felizes, como as do Norte da Europa, ou monarquias que são o cimento de uma nação, como a marroquina ou a Jordana. E se há monarca que admirei (admiro?) é Juan Carlos. Já li muito sobre ele, mas admito que tudo começou com uma longa entrevista em livro a José Luís de Villalonga, também conhecido como o marquês vermelho por, apesar de pertencer à nobreza, ter desafiado Franco, o generalíssimo que durante quase 40 anos mandou em Espanha. É uma biografia autorizada, simpática, mas não menos verdadeira por isso. E Juan Carlos revela-se nela como um democrata, alguém que em vez de governar com mão de ferro, como fez Francisco Franco, um país empobrecido e semifechado ao mundo, preferiu ser o monarca constitucional de uma nação moderna, aberta e ambiciosa.
D. Juan, conde de Barcelona, foi filho de rei e pai de rei. Franco, o militar que derrotou a República na guerra civil de 1936-1939, não o suportava, e era correspondido na perfeição. Mas o conde e o caudilho entenderam-se sobre o futuro de Juan Carlos, pelo primeiro visto como o salvador da monarquia, pelo segundo como o perpetuador do regime católico-conservador que, ao contrário do salazarismo em Portugal, deveu grande parte do sucesso na chegada ao poder ao apoio de alemães e italianos, de nazis e fascistas.
Quando Franco morreu, em 1975, Portugal há mais de um ano que se libertara da ditadura.
Em Espanha, sem revolução, tudo foi mais lento. Juan Carlos queria ser o herdeiro dos reis de Espanha e não o herdeiro de Franco, mas isso não era coisa que se gritasse. Houve muitas conversas secretas, como ouvi um dia contar numa livraria de Madrid Santiago Carrillo, um veterano da Guerra Civil Espanhola, histórico dirigente comunista, que negociou em 1977 a legalização do PCE.
Saltemos para 2020. Em Espanha, governa uma coligação de esquerda. E o vice-primeiro-ministro Pablo Iglesias defende o regresso da república, que seria a terceira, depois de uma efémera experiência no século XIX e do período de 1931-1939. Em paralelo, a Catalunha tem um chefe de governo regional que não só é republicano como é independentista. Ambas as posições são legais, desde que exercidas no respeito da Constituição de 1978, que enterrou de vez Franco (a tentativa de golpe de 1981 foi um ato de desespero, e mesmo assim Juan Carlos serviu-se dela para dar a Filipe uma magistral lição de como ser rei em democracia, acordando o filho de 13 anos para o ver dar via TVE ordens aos militares para voltarem aos quartéis).
Tão popular que muitos espanhóis, sobretudo socialistas, se diziam juancarlistas mas não monárquicos para justificar o seu conforto a viver com um rei, Juan Carlos perdeu o brilho quase de um momento para o outro. Naquele dia na capital de El Salvador, onde participava na Cimeira Ibero-Americana, ainda era o colosso (o célebre “Por qué no te callas?” ao venezuelano Hugo Chávez tinha sido na cimeira anterior) e sem rival naquele palco desde que Fidel Castro, doente, deixara de sair de Cuba. Depois, em 2014, abdicou. Para salvar a monarquia, percebeu-se.
Juan Carlos foi rei, mas nunca santo (e mesmo esses por vezes tiveram vidas complicadas, ou pouco castas, pensemos em Santo Agostinho). Que teria amantes pouco impressionava um povo de latinos, mas que com uma delas fosse à caça aos elefantes em África, em 2012, pico da crise económica, caiu mal e não só entre os desempregados, que chegaram a ser 27% dos espanhóis.
Agora, por causa de uma conta da tal Carina, a justiça suíça e depois também a espanhola começaram a investigar fundações ligada ao rei emérito e que teriam sido financiadas, entre outras situações, por dinheiro saudita. Filipe VI, sem dar sequer o benefício da dúvida ao pai, desligou-se de qualquer herança e tirou a subvenção pública ao ex-monarca. Quer salvar a honra pessoal, também a coroa que gostaria um dia de deixar a Leonor, a mais velha das duas filhas.
É triste que Juan Carlos se tenha tornado o elefante na sala para a monarquia espanhola. Mas a força desta, e de Filipe VI, vem do compromisso que teve e tem com a democracia. E esse é um legado deste rei emérito, já nada colossal, quase comum mortal, mas mesmo assim com um papel inapagável na construção da Espanha do século XXI, um país que quer estar à altura da sua história.
Nadadores sem piscinas, ginastas sem pavilhões, surfistas sem praias, judocas sem tatâmi, atletas sem pistas de atletismo e centros de alto rendimento fechados por causa do coronavírus. É neste cenário de calamidade e emergência nacional que os 33 atletas olímpicos portugueses já apurados têm de preparar-se para Tóquio 2020, depois de o Comité Olímpico Internacional (COI) ter decidido manter os Jogos Olímpicos ( JO) de 24 de julho a 9 de agosto. O nadador Alexis Santos treina em seco. Fernando Pimenta treina sozinho e em rio aberto. Patrícia Mamona montou um pequeno ginásio na garagem. Filipa Martins faz da sala de estar um pavilhão pessoal e Jorge Fonseca é um judoca que corre no Jamor. Tudo para representar Portugal da melhor forma nos JO.
Patrícia Mamona é atleta de triplo salto, algo que não pode treinar em casa. O ginásio e a pista do Centro de Alto Rendimento do Jamor fecharam e ela teve de encontrar alternativas. “Felizmente tenho uma garagem e tentei adaptar-me construindo um pequeno ginásio. Para o meu trabalho há três coisas que são essenciais, o treino de força, o treino de saltos, que estou impedida de fazer, e a resistência e a corrida. Nesta semana ainda tive a possibilidade de arranjar um espaço num jardim aberto para ir correr e saltar, mas agora com o estado de emergência não sei como será”, contou ao DN.
Por vezes, o namorado filma o treino e envia as imagens para o treinador, outras vezes José Uva acompanha a sessão em direto. Mas falta o essencial, correr em bicos, ter uma pista, saltar para a areia e fazer os movimentos técnicos: “Resta manter a condição física para depois aguentar o regresso aos treinos, que terá de ser mais intensa do que nunca.”
Patrícia passa os anos a “tentar melhorar um centímetro” e agora vê-se confinada a alguns metros quadrados, mas o “mais importante é não parar”. A preocupação com a família também não ajuda e só consegue concentrar-se no treino após falar com os pais.
A atleta do Sporting investiu muito em Tóquio 2020. Patrícia suspendeu o curso de Engenharia Biomédica para concentrar-se na preparação, mas agora resta-lhe trabalhar o melhor possível dentro das limitações gerais. Treinar duas vezes por dia, manter horários, cuidar da alimentação e manter rotinas como as idas ao psicólogo, agora por Skype. Mas há uma coisa que a preocupa – não tem ido à fisioterapia: “Sinto falta dessa recuperação, tenho tido algumas dores e tenho de ter muito cuidado a treinar com dores. Uso as bolas de massagem e o eletroestimulador para me ajudar a recuperar e aguentar o treino seguinte, mas não é a mesma coisa.”
Sem saber quanto tempo vai durar esta quarentena, a atleta considera que manter os JO na mesma data é dar azo a desigualdades, o que vai contra o espírito olímpico.
O cenário de Mamona não é muito diferente do de Fernando Pimenta. O eterno candidato às medalhas admite que tem sido “complicado” manter a preparação olímpica. O canoísta do Benfica teve de adiar estágios e alterar o calendário de treino. “Os clubes e os locais onde costumava ir treinar estão fechados, por isso é meter o caiaque em cima do carro e procurar um lugar para me fazer à água. A canoagem não é um desporto de contacto, por isso dá para gerir. Treino sozinho, o meu treinador vai no barco a motor a metros de distância. Sempre treinei desta forma solitária, por isso não estranho”, confessou ao DN o campeão do mundo de canoagem K1.
Treinar em rio aberto “não é o mesmo que treinar numa pista balizada, como nos Olímpicos, mas “tenta fazer o melhor possível”, mesmo num clima de incerteza quanto à realização da prova: “Sempre treinei como se fosse para os Jogos. Vou chegar lá de consciência tranquila.”
Pimenta não quer entrar em águas que não domina e por isso preferiu não tomar posição sobre a decisão do COI, mas lembra que os atletas apesar de serem pessoas saudáveis “não são autoimunes”.
Com a atividade no clube (Sporting) suspensa, Jorge Fonseca, campeão do mundo de judo na categoria de -100 kg, tem ido até ao Jamor correr e fazer exercícios no campo de futebol ao ar livre. Até hoje ninguém o impediu, mas admite que o estado de emergência entretanto decretado possa vir a alterar isso, o que lhe criará um problema: “Não gosto de treinar em casa, quando chego a casa gosto de relaxar e distrair-me, divertir-me com o meu filho.”
O judo é um desporto de contacto e treinar sem combates é “insuficiente”, mas ele “felizmente” ainda não sente falta deles. “Como estive quase dois meses em estágio no Japão, em janeiro e fevereiro, ainda estou em fase de recuperação”, revelou o judoca.
E como mantém a motivação? “Manter a motivação para mim é fácil. São os Jogos Olímpicos… o que é preciso mais?”, questiona Jorge Fonseca, apesar de defender que os Jogos “deviam ser adiados”, para que os atletas e o público pudessem desfrutar do momento que é único.
Se Jorge Fonseca não tem tatâmi, Alexis não tem piscina. Antes nadava todos os dias, agora há uma semana que treina em seco em casa ou num jardim. “Tenho um plano de preparação física feito pelo meu treinador e tenho feito o trabalho em casa. Também já cheguei a ir a um jardim isolado com uns pesos e uns elásticos para fazer uns exercícios. O resto é tentar manter os horários mais ou menos certos, não relaxar e manter uma boa alimentação”, contou ao DN o recordista nacional em 100 metros estilos.
Para Alexis nadar em águas abertas não é opção e considera que “faria mais sentido haver um adiamento dos Jogos”, defendendo que este clima de desigualdade de condições de treino “é pior do que o doping” e vai contra os princípios olímpicos.
Com 28 anos e a “viver o ano mais importante da carreira”, e estando “na melhor forma física de sempre”, o nadador do Sporting prepara-se “para os Jogos Olímpicos mais importantes da carreira”. Mas, a quatro meses da prova maior do desporto, nem sabe quanto tempo vai continuar sem treinar na água. E também não quer imaginar o cenário “assustador” de treinar em casa um ou dois meses, mas “também não imaginaria que algo assim, uma pandemia, acontecesse”. Por isso há que minimizar o problema: “Estou mais preocupado com as pessoas que estão na linha da frente no combate à pandemia, desde os médicos a enfermeiros e auxiliares. São eles que estão a lutar pelo bem-estar de todos. As saudades da piscina são muitas, mas o importante é que cada um faça o seu papel, e o meu não é treinar, mas sim manter-me em casa. Não tenho a solução perfeita, mas sei que não é hora de arriscar a vida de ninguém.”
Quarentena desportiva será solução?
A ginasta Filipa Martins já treina em casa há mais de uma semana. O seu clube fechou. Agora faz da sala de estar o pavilhão pessoal. Está sempre em contacto com o treinador e tenta fazer o máximo de exercícios possíveis dentro do plano estipulado. “Só me resta tentar manter a forma física, não tenho aparelhos para treinar em casa”, disse ao DN, lembrando a falta da mesa de saltos, das paralelas assimétricas e da trave, essenciais para “poder consolidar os novos movimentos” e trabalhar o esquema que pretende apresentar em Tóquio 2020.
“A ginástica vive muito da repetição dos exercícios, algo que agora não posso fazer”, lamentou, mesmo percebendo que a situação é extraordinária: “Aquilo que posso fazer enquanto atleta e o que depende de mim é levantar-me todos os dias e treinar de manhã e à tarde em casa para não perder a forma.” Mas até quando? Isso não sabe, mas há uma solução à vista: “O Comité Olímpico Português (COP) tem estado em contacto com os atletas no sentido de encontrar uma solução que sirva os interesses da preparação olímpica. A ideia é abrir um centro de alto rendimento só para os atletas do programa olímpico e ficarmos a viver lá. Em vez de estarmos de quarentena em casa estaríamos no centro de alto rendimento com outras condições.”
De facto, o COP pediu ao governo para ter em conta a situação dos atletas olímpicos no cenário de estado de emergência decretado por Marcelo Rebelo de Sousa e o Conselho de Ministros salvaguardou a livre circulação de atletas e treinadores. No entanto, o DN sabe que o COP e a associação de atletas vão insistir na ideia da quarentena desportiva, a exemplo do que está a acontecer em Itália, onde, apesar de a situação ser crítica com mais de 30 mil infetados e mais de 3000 mil mortos, é permitida a utilização das instalações desportivas à porta fechada sob prévia autorização do Comité Olímpico Italiano.
Já em Espanha as medidas em vigor são mais restritivas, sendo proibida a prática desportiva ao ar livre, tal como em França. Na Alemanha, os atletas olímpicos foram chamados pelas suas federações para reunirem-se em centros de alto rendimento nos próximos dias, onde ficarão alojados e seguirão a sua rotina. Em Inglaterra, Boris Johnson recomendou aos cidadãos para não participarem em concentrações sociais, incluindo treinos, mas não os proibiu.
As restrições prejudicam também a preparação de quem ainda procura uma vaga em Tóquio 2020. Até agora só estão preenchidas 57%. Nesta altura, 42 das 50 modalidades olímpicas ainda não têm o seu quadro de atletas totalmente preenchido. O COI delegou por isso nas várias modalidades a responsabilidade de redefinir os critérios de qualificação. E devem fazê-lo até ao início de abril. Podem basear-se nos rankings ou em resultados recentes, desde que reflitam o princípio de distribuição de vagas por cada continente.
Portugal tem mais de 50% da possível comitiva em Tóquio 2020 por apurar, tendo em conta que a comitiva dos JO Rio 2016 era composta por 92 atletas e atualmente apenas 33 dos 114 apoiados pelo programa olímpico têm lugar garantido. Os dois medalhados olímpicos Nelson Évora e Telma Monteiro estão nesse grupo.