A conspiração contra o choque
A Conspiração contra a América da HBO revela falta de tacto na transposição de uma narração retrospectiva para diálogo dramático; é uma série que serve para passar o tempo.
E´o medo que preside a estas recordações, um medo constante”, informa o narrador na primeira frase de A Conspiração contra a América. A declaração didáctica – que estabelece tema e tom de uma assentada – faz que o livro, em muitos aspectos o mais atípico na obra de Philip Roth, pareça alinhado com os restantes.
Tal como muitos grandes romances poderiam teoricamente chamar-se “Grandes Esperanças” (de Dom Quixote a Guerra e Paz ao Grande Gatsby, é fazer as contas), também muitos dos livros de Roth, especialmente desde 1987, poderiam começar com a mesma confissão de medo. O medo pode ter várias causas, mas costuma estar associado a uma perda de poder – poder enquanto cidadão, enquanto portador de talento e carisma, enquanto criatura com um pénis funcional, etc. Os efeitos desse medo no protagonista, e os compromissos e as acomodações que o obrigam a fazer à medida que a sua identidade interage com o mundo, são depois explorados. Pelo meio, temos o humor, as tangentes, os monólogos exasperados, a sabedoria acidental da narração. Este equipamento permitiu a Roth escrever sempre de forma interessante, mesmo quando contava histórias que à partida não tinham grande interesse.
Em A Conspiração contra a América, tentou um truque diferente, munido de algo a quem nem sempre teve acesso: uma premissa original, um enredo complexo e todas as possibilidades de um exercício contrafactual.
Em 1940, impulsionado pela popularidade das suas proezas de aviação, dos seus discursos isolacionistas e do seu elegante anti-semitismo, Charles Lindbergh derrota Roosevelt nas eleições, torna-se presidente e começa gradualmente a descriminar judeus. De simpáticos programas de “relocalização e reeducação” a pogroms vão dois passos e duzentas páginas. Os eventos são recapitulados pelo narrador num futuro que já se reuniu ao nosso presente, e a narração misquanto tura essa conveniente perspectiva de 15 dioptrias com os dados imediatos absorvidos por uma criança. Os ganhos deste modelo implicam também perdas.
Ao contrário de quase todos os seus outros romances, a impaciência e a frustração sexual não são um factor aqui e, portanto, Roth abdica do seu instrumento mais fiável para revelar a consciência das suas personagens. Não é acidental que uma das cenas mais memoráveis e eficazes do livro seja a única excepção a esta ausência: quando o jovem protagonista apanha o primo (um veterano de guerra estropiado) a masturbar-se na cave enobserva estudantes de liceu a passar à janela. Ao aproximar-se da parede, vê a mancha resultante do exercício: não identificando a substância, imagina que é uma espécie de pus expelido pela boca de uma pessoa furiosa e frustrada. Tem razão, embora não saiba. Escrito numa prosa utilitária e longe de ser dos seus melhores, o livro não pode, apesar de tudo, ser acusado de ser desinteressante – algo que, a julgar pelo primeiro episódio, a televisão agora fez o favor de corrigir.
A adaptação da HBO, escrita por David Simon e Ed Burns (a dupla responsável por The Wire), estreou-se nesta semana, mas começou a ser planeada antes de 2016 e de a suposta “relevância” do enredo ter sido multiplicada por outra súbita anomalia eleitoral. (É interessante imaginar o que teria sido uma adaptação contemporânea de outra obra de Roth, Nemesis, sobre uma devastadora epidemia de poliomielite em 1944, na qual o protagonista, um portador inicialmente assintomático, contamina sem saber várias pessoas próximas.)
Mas essa “relevância” política parece ser o aspecto que mais interessou o guião, que faz sublinhados e negritos constantes num esforço para realçar os paralelos com o que tem sido o nosso presente. A juntar a isso, alguns problemas adicionais revelam uma inesperada falta de tacto na transposição de uma narração retrospectiva para diálogo dramático (há deixas tão artificiais e penosas que custa a crer terem sido escritas por quem escreveu The Wire) e um mundo onde os pequenos prazeres colaterais fornecidos por Roth – o mobiliário social e cultural da época, filtrado pela memória – são reduzidos a pano de fundo enquanto alguém expõe informação ou declama editoriais. O resultado é um mundo artificial, insuficientemente imaginado, adoptando com a habitual ultracompetência o aspecto oficial das “séries-passadas-nos-anos-40” e das “séries-sobre-nazis”; alguns filtros de câmara devem ter sido emprestados pela equipa que fez The Man in the High Castle.
O equívoco narrativo geral é achar que a história contada por Roth era um instrumento para fazer analogias. Querer mostrar como um passado imaginário é parecido com um presente real seria quase sempre uma intenção dramaticamente inerte. O sucesso relativo do livro depende da justaposição entre escalas: a escala pequena da rotina doméstica e a escala colossal da súbita ameaça. É essa tensão que gera os temas mais amplos: o facto de qualquer normalidade ser precária; de causas pequenas poderem ter consequências enormes (mas assimétricas); e o modo como essas consequências acabam por ser domesticadas e traduzidas para a normalidade seguinte. A fábula não é apenas sobre a facilidade com que tudo pode mudar rapidamente, mas sobre a facilidade com que a mudança é assimilada. O mundo inteiro é apanhado de surpresa pela eleição de Lindbergh, mas “no dia seguinte (...) já toda a gente parecia compreender tudo”. O “medo” que preside às recordações transforma-se primeiro numa ansiedade de baixa frequência e depois numa plácida resignação; e isto antes de o presente ser submetido às disciplinas do tempo e da história, que transformam “o incessante imprevisto” em algo inevitável.
O último terço do romance descarta alguma da sua paciência nostálgica e acelera a fundo na direcção da fantasia histérica, e pode ser que episódios posteriores reproduzam essa energia. Para já, e nos seus primeiros sessenta minutos, A Conspiração contra a América assemelha-se ao que acontece a todas as disrupções passadas evocadas no futuro, quando a história chega para contar a história: organizada, coerente, bem-comportada e inerte. Um objecto muito parecido com aquilo que é: uma série de televisão – nem boa nem má mas que serve para passar o tempo.
O medo costuma estar associado a uma perda de poder – poder enquanto cidadão e enquanto portador de talento e carisma.