A polícia fez centenas de detenções de cidadãos que andavam pelas ruas de cara descoberta, correndo o risco de pagarem uma multa de cinco dólares ou mesmo de serem encarcerados.
Em Lisboa, as primeiras hospitalizações tiveram lugar a 24 de Setembro de 1918, com uma particular incidência de jovens adultos – e, curiosamente, em números quase idênticos entre homens e mulheres, mas com muito mais elevada mortalidade masculina –, contrastando com um reduzido internamento de idosos e de crianças, o que constituiu uma singularidade desta Grande Gripe.
A esmagadora maioria dos internados era oriunda da própria capital, mas foi nos meios rurais que a mortalidade atingiu níveis mais elevados, o que é tanto mais curioso quanto foi nesses meios que se registaram menores taxas de incidência da doença. De início, foram usados em Lisboa os dois pavilhões de doenças infecto-contagiosas do Hospital do Rego, mas, numa “cidade suja e infecta, sem higiene e quase sem água, rica de toda a casta de espécies mórbidas”, nas palavras do então director-geral dos Hospitais Civis, cedo se sentiu a necessidade de novas instalações. Foi rapidamente reactivado, em condições precárias, o velho Hospital de Arroios, usando-se ainda in extremis parte do antigo Convento das Trinas e o Liceu Camões. Um médico em serviço neste liceu sintetizou numa frase toda a sua impotência: “Os doentes morriam e nós não sabíamos como evitar a morte.”
Falava-se de cólera, de dengue, de febre papataci, de peste pneumónica, ninguém se entendia. Mas todos presenciavam os efeitos devastadores da doença. O médico Simões de Macedo, que observou mais de 300 casos de tifo exantemático, recordou o imobilismo dos afectados pelo torpor ou estupor tífico: “Quem visitava as enfermarias de tifosos ficava impressionado pelas máscaras imóveis dos pobres farrapos humanos que a época de desgraças para ali atirou. E digo máscaras imóveis porque, embora crispações de músculos as agitassem, abalos de tendões as sacudissem, eram vazias de olhar, sem expressão, ocas de sentimentos. Aqueles olhos parados, obstinadamente fitos num ponto, ou movediços como o pêndulo dum relógio, davam a impressão de não terem retina que fixasse uma imagem; aquelas rugas da fronte, aqueles vincos dos lábios, não eram gerados por um pensamento ou formados por um sentimento.” Os outros sintomas não eram mais animadores: enfraquecimento e astenia, dores do pescoço que impediam ou dificultavam a deglutição, graves perturbações na fala (a ponto de Simões de Macedo afirmar que os doentes pareciam “ter um corpo estranho na boca”), escrita trémula, diminuição da acuidade auditiva, trémulos nos músculos da face, da região torácica e dos membros, contracção dos músculos da nuca, relaxação do esfíncter, perdas parciais ou totais de equilíbrio, erupções cutâneas muito visíveis e disseminadas, um hálito sui generis.
Curiosamente, um dos sintomas observados por Simões de Macedo foi um súbito aumento de apetite, com tendência para se converter em aparente bulimia. A par disso, outro sintoma peculiar: o medo. “O doente apresenta-se-nos aterrado não só pela rapidez do ataque – como se tivesse levado uma grande pancada, que não sabe de onde caiu, disseram-me alguns –, mas ainda pelo internamento num hospital de que o povo tem uma ideia horrível – um inferno povoado por diabos de casaco branco.” Acrescentou ainda Simões de Macedo: “Quem visitava as enfermarias de tifosos ficava impressionado pelas máscaras imóveis de pobres farrapos humanos que a época de desgraças para ali atirou.” Também o médico Adérito Madeira assinalaria que, nos contaminados por tifo exantemático, “a expressão do rosto é triste, estúpida e parada”, notando-se ainda como outros efeitos a anorexia, a sede intensíssima, a respiração acelerada, as vertigens, o cheiro característico da pele (a “palha podre”, segundo aquele médico), as insónias, os delírios, a incontinência. Um inferno.
A onda de mortalidade foi tal que os funcionários da morgue e dos cemitérios, assoberbados de trabalho, chegaram a ser acusados de falta de dignidade no cumprimento das funções. Na cidade de Lisboa circulavam carroças apinhadas de cadáveres cobertos apenas com uma serapilheira, enquanto nos cemitérios tiveram de abrir valas comuns para acolher os corpos, e os Armazéns Grandella fizeram uma campanha de redução de 10% no produto que as famílias mais necessitavam: vestuário de luto.
O Estado manifestamente não conseguiu satisfazer as necessidades das populações, sendo grande parte do combate à doença deixado a cargo das organizações tradicionais de assistência, com destaque para as associações mutualistas, para os bombeiros, para as sociedades recreativas e para as então criadas comissões locais de socorro, ou mesmo instituições como o Diário de Notícias, a companhia de seguros A Oriental, o Banco Português e Brasileiro, o Sport Lisboa e Benfica ou o Partido Republicano. Além da acção caritativa de particulares, como a condessa de Burnay, destacou-se, neste contexto, a Obra de Assistência 5 de Dezembro, apadrinhada por Sidónio Pais, e, em especial, a Cruz Vermelha.
Como sempre sucede nos momentos de grande pânico colectivo, tentou ultrapassar-se o medo através do humor. Dos sobreviventes da gripe dizia-se que haviam estado “na cama com a espanhola”, enquanto em Madrid chamava-se à doença “soldado de Nápoles”, nome de uma popular canção de opereta da altura que se dizia ser tão contagiosa como a enfermidade. E, como também é frequente, houve uma redescoberta do sobrenatural ou de causas extraterrenas, não sendo por acaso que a expressão influenza foi cunhada no início do século XVI em Itália para exprimir justamente a ideia de que a gripe sofria a influência das estrelas. Por uma crença algo obscura, os maoris da Nova Zelândia só aceitavam medicamentos castanhos, da cor da sua pele, enquanto, à semelhança dos médicos ocidentais, os lamas do Tibete velavam os doentes dia e noite, rufando tambores e tocando címbalos. Os russos continuavam a beijar os seus ícones, julgando que durante uma missa era impossível contrair a doença, e, em Nova Orleães, pessoas de todas as classes sociais passaram a abastecer-se de artefactos ligados à prática do vudu e a entoar uma prece capaz de esconjurar a praga (Sour,sour,vinegar-V / Keep the sickness off ’n me).
O Public Health Service recebeu cartas de cidadãos propondo que fosse aconselhado o uso de uma fita vermelha ao pescoço, com o argumento irrespondível de que “a gripe é o diabo e o diabo não ataca o vermelho”. Os Cientistas Cristãos questionaram as “terapêuticas materialistas” – que, de facto, mostravam-se incapazes de vencer o flagelo – e viraram-se para uma abordagem espiritualista da doença. Um soldado norte-americano, ao ver a morte grassar entre os seus camaradas de armas, reconfortou a sua mãe numa carta em que dizia estar a salvo da epidemia pois acreditava no “poder da mente sobre a matéria”, acrescentando: “Se todos tivessem a mesma fé no Pai-Mãe Deus tudo seria… diferente.” Para as Testemunhas de Jeová, cumpria-se a profecia das “pestilências e sofrimentos” que Cristo anunciara no Monte das Oliveiras. Em contrapartida, um astrólogo americano considerou que o culpado de tudo era o planeta Júpiter, já que o seu efeito sobre o electromagnetismo da Terra fizera crescer e desenvolver-se um microorganismo letal. Os astrólogos africanos, de seu lado, avançaram uma explicação diversa, que
Em 28 de Fevereiro de 1969, quando a terra tremeu violentamente em Lisboa pouco faltava para as quatro da manhã, a minha mãe e a minha avó acordaram sobressaltadas e perceberam que o meu pai não se encontrava em casa. Estava, como de outras vezes, a ouvir fado na Parreirinha de Alfama, onde cantou e cozinhou anos a fio a grande Argentina Santos, que recordo ora de avental ora de xaile. Foi do meu pai que herdei a paixão pelo fado, que ouvi ao vivo logo em criança, porque os psicólogos nesse tempo não davam palpites, a minha mãe pelava-se por uma noitada e o meu pai era, além de boémio, vagamente doido. Porém, ao contrário de mim, ele estendia o seu amor ao fado às respectivas intérpretes; e, já eu era adulta, contou-me que chegara a ter uma amante fadista a meias com um marquês, que era quem pagava a renda de um andar na Almirante Reis que ambos frequentavam, embora, claro, em horários distintos.
Mas, se o meu pai sabia desde sempre da existência do marquês, o contrário não era suposto, pelo que, entrando no prédio da fadista um belo dia, ficou o meu pai atrapalhadíssimo ao ver o marquês sentado na escada, com ar de quem estava à sua espera. Sem saber o que fazer, viu o rival erguer-se e caminhar na sua direcção; e, quando julgou que ia ser agredido, ameaçado ou enxovalhado, o marquês sussurrou-lhe com a nobreza dos da sua estirpe: “Meu caro, precisamos de arranjar mais um sócio: esta senhora está a sair-nos muito cara.”
O meu pai era um pantomineiro, pelo que esta história talvez não passe de uma invenção. Mas nos anos 1950 – se bem que já não morressem tuberculosas na flor da idade como acontecera à Severa – ainda havia fadistas que corrigiam a miséria que ganhavam com a ajuda dos clientes… No entanto, desde então já passaram… o quê, setenta anos? O estereótipo mudou radicalmente. As fadistas de hoje cantam pelo mundo inteiro em salas de referência ao lado de estrelas internacionais, tiram cursos, fazem palestras e workshops, têm cachês a sério, recusam os convites que não lhes interessam e até se dão ao luxo de mandar àquela parte os ricaços ordinários que se metem com elas. Então, como é que tantos dicionários de língua portuguesa, incluindo dois dos mais consultados online, apresentam em pleno século XXI “prostituta” e “meretriz” como significados de “fadista”, e teve de ser justamente uma fadista literata a pôr o dedo na ferida para que se procedesse à correcção? Adeus, futuro.