+ Crónica de Ferreira Fernandes
Ontem, sexta-feira, o online do meu jornal abria com um título terrível. Estamo-nos a habituar a títulos assim, mas não devemos, pelo menos isso, não nos devemos habituar ao mal. O título: “Seis mortos e já mais de mil infetados por covid-19 em Portugal”. Sobre o título, a foto de uma senhora. Cara emaciada, olhos encovados, exausta.
É uma senhora em funções públicas há muitos anos e eu conheço-a de fotos, era bonita, cuidada. Ela envelheceu e cansou-se à minha frente, num mês. É a diretora-geral da Saúde, chama-se Graça Freitas. Eu conheço-a muito bem, de há um mês. Chamo-a, quando falo comigo dela, como a devo chamar: Graça.
Traz no nome um favor que nos faz: trabalha para nós. Num país delapidado pela banca, poderosa, cúpida e incompetente, nota-se a diferença quando temos pela frente uma cidadã. Graça trabalha, dedicada, desgastando-se como me diz a foto de ontem, aos 63 anos. A cara de Graça é para memória presente.
Bitaiteiros dizem que ela podia ter feito isto em vez daquilo. E saltam ideias coladas a cuspo: estados disto ou daquilo, já ou não já, e de faltas que são sempre apresentadas como indesculpáveis… Fala-se de máscaras e luvas, testes, camas e ventiladores, que os jornais do terceiro mundo (França, Itália, Espanha, Grã-Bretanha, EUA…) dizem também faltar por lá.
Pois não sei, confesso-me impreparado sobre vírus virulentos em assaltos súbitos. Para perigos inesperados, sobretudo quando planetários e não só de imprevidência tuga, espero das minhas autoridades autoridade, durante; e mais tarde, balanço. Entretanto, exijo o que posso confirmar: empenho. É o que me mostrou a cara de Graça, sobre um título terrível. Enquanto o terrível persistir, sobretudo porque sei que vai aumentar, prometo não estorvar.
Trago para esta crónica a doutora Graça
Freitas, diretora-geral da Saúde, também porque ela serve de símbolo. Ela representa outros abnegados e alguns deles dando de si ainda mais do que ela. Num livro-testemunho sobre a I Guerra Mundial, A Malta das Trincheiras, André Brun conta os diversos círculos do perigo para quem vivia à beira da tragédia. As trincheiras naquela guerra matadora, tal como a pandemia de coronavírus hoje, espalhavam a ideia difusa de que estamos todos no mesmo barco. E não é bem assim…
Brun, autor mundano de teatro ligeiro, partiu para Flandres como oficial e com uma qualidade admirável: amava os homens. E com eles aprendeu as nuances que a vida tem. Sim, todas as trincheiras são perigosas mas nem a linha da frente, onde Brun tantas vezes esteve, sobre lama e sob morteiros, era a situação-limite. Havia ainda a terra de ninguém. “Cheia de mistérios, povoada de perigos que não se veem, cada sombra que nela gira é uma patrulha, cada rumor vago que nela se ouve é um inimigo rastejando, e a morte espreita.” E, no entanto, cada noite, a terra de ninguém enchia-se de soldados, cumprindo.
Então, esta crónica é sobre os médicos, os enfermeiros e o pessoal hospitalar que está – porque para lá foram, e foram porque sim – onde cada sombra, cada rumor vago… Já pensaram que eles fizeram o caminho inverso ao nosso? Em vez de fugir do vírus, para as nossas casas (numa ilusão talvez, mas esperança), eles foram ter com a infeção.
E mais, e muito mais, oiçam aquele médico de Bergamo, que não fala do medo por ele, que o tem, mas de outro território de horror ainda mais fundo: a insuportável impotência por ter de escolher para morrer porque não dá para salvar todos.
E deixem-me comigo. Estou a olhar, de longe e tão junto, para um amigo. Médico, despede-se do seu bebé de 8 meses, durante semanas (meses?) vai ter com a infeção. Do que sei do meu amigo, não virá o mesmo se tiver de fazer escolhas como em Bergamo.